• QUATRO • ANDRÉ

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Me mexo desconfortavelmente no banco do motorista pelo que parece ser a décima vez desde que deixamos a casa dos amigos do meu tio. Ele está um tanto abatido mas nem isso faz com que sua curiosidade seja aplacada, seus olhos claros não me deixam pois sinto - os me queimando e isso tem me tirado do sério. Aquiles late no banco de trás, na certa incomodado por estar preso dentro do carro por muito tempo. Viro outra curva quando a imagem do tal de Pedrinho com o rosto machucado e olhos úmidos por lágrimas não derramadas pisca em minha mente, sinto minha mandíbula enrijecer tamanha a raiva que sinto. Raiva do maldito que agrediu ele e dele, o motivo no entanto eu desconheço. Não o conheço, só nos vimos duas vezes e isso isso não é meu negócio.

- O quê? - digo sem paciência, seguido de um suspiro. Tio Mikael ri baixinho.

- O que o quê?

- O que tanto me olha desse jeito?

- De que jeito garoto?

- Como se soubesse o que estou pensando.

- E eu não sei?

- O que estou pensando? - jogo a pergunta ainda com os olhos focados na estrada.

- Em um certo rapaz de intrigantes olhos azuis talvez?

- Nem fodendo!

- Vocês formam um belo casal.

- Isso é influência daquela mulher, a tal da Lu. Você não era assim.

- Assim como garoto?

- Leve e um tanto intrometido.

- Nada permanece o mesmo. - murmura com o olhar perdido na paisagem composta de casas de mesmo modelo do lado de fora do carro.

- Eu vejo! Amanhã iremos ao hospital. Henrique me disse que teve um mal estar hoje.

- Não é nada filho.

- Está doente tio. Então, sim. É alguma coisa. Deixei Londres para ficar em seu lugar e não para vê - lo se matar. - digo quase grunhindo, meus dedos ficam brancos tamanha a força com que aperto o volante.

- De onde puxou esse drama todo? - diz com um tom de alegria na voz.

- De você, de quem mais? E não desvia o assunto. Vamos amanhã ao hospital, está decidido.

Ele não diz mais nada pelo restante do caminho. Enquanto o silêncio dominava o espaço entre nós, que era quebrado vez ou outra por latidos baixos de Aquiles, me peguei pensando em Pedro. Os olhos doloridos, o rosto machucado e a postura de quem perdeu uma guerra. Pisco algumas vezes com o propósito de tira - lo de minha mente enquanto desço do carro e dou a volta para ajudar meu tio a descer. Ele diz de forma rabugenta que não está morto e que pode descer sozinho do carro, o ignoro enquanto o levo para dentro. Volto em seguida depois de ajuda - lo a se sentar para pegar Aquiles e as pastas contendo os arquivos que peguei hoje pela manhã no escritório. Alguns casos que precisam de atenção urgentemente.

[....]

Fico por mais alguns segundos na porta de seu quarto, as janelas estão firmemente fechadas e o ar condicionado na medida certa, meus olhos não saem do movimento de seu peito subindo e descendo vagarosamente e a expressão calma. Pensar que ele pode não estar aqui daqui há alguns meses me machuca por dentro, fazendo a ferida antes fechada sangrar. A forma tosca e tão chula que perdi minha mãe ainda é viva em meu peito e parece que não vai sarar algum dia. Eu sei que uma parte disso é culpa inteiramente dela, só dela.

Se não fosse tio Mikael estar lá por mim, ferido, com raiva e desconfiado do mundo, não sei o que seria de mim. Ter que cuidar de um garoto de treze anos de idade, machucado e com raiva não era o sonho de um jovem advogado e com uma carreira brilhante pela frente. Mas ele me acolheu, me amou e me educou pelos poucos anos que passei com ele. Não sai de casa, sendo educado por professores que Gustavo Lins fazia questão de pagar mensalmente. Não tive uma família digamos estruturada mas tive amor.

RENDIDO A ELE - COMPLETOOnde histórias criam vida. Descubra agora