1° ATO: INVISIBILIDADE

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DANIEL

                                         DANIEL

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Você já se sentiu invisível?

Como se a sua existência não importasse e você fosse só mais uma partícula humana no meio de milhões de outros? Como se você não fizesse nenhuma mísera diferença no mundo?

Eu já.

Você come, bebe, respira, fala, sente, mas é como se não existisse. Ninguém te vê. Ninguém te sente.

Começou no colegial. Eu era uma criança magrela passando pela puberdade, tinha uma juba encaracolada e exageradamente cheia demais para a minha cabeça. Usava - bem, ainda uso - um óculos fundo de garrafa e quase ninguém estava realmente interessado em ser meu amigo ou pelo menos, falar comigo.

Quase.

Porque tinha uma única pessoa que era como eu. Ele se chamava Todd, um nome tão peculiar quando o dono. E você sabe oque dizem: os perdedores se unem.

Então eu não me importava em ser chamado pelos cantos de estranho e desengonçado. Estava tudo bem porque eu tinha o Todd, que era tão estranho como eu e que lia revistas de teorias de conspiração e passava horas jogando vídeo game comigo. Estava tudo bem porque nós tínhamos um ao outro. Nós passávamos pelas coisas juntos e ríamos das nossas próprias desgraças. Estava tudo bem porque eu tinha um amigo.

Tinha.

É incrível como a gente não percebe o tamanho da importância que uma pessoa faz na vida da outra até perdê-la.

E eu perdi o Todd em um acidente de carro em que eu também estava, em dezembro no final do ano, há uns 4 meses. Ele morreu. Eu perdi metade da minha perna. Ainda me questiono sobre quais das perdas foi a mais dolorosa - é claro que eu sei qual foi.

E depois desse trágico acontecimento, podemos dizer que, resumidamente, foi quando a minha vida começou a se tornar uma completa merda.

Voltei à escola em fevereiro, com uma prótese no lugar da minha perna esquerda, algumas marcas e arranhões ainda não cicatrizados e duas muletas de brinde.

No início, achei que não seria mais um invisível. Nem tinha como eu tentar ser, com um objeto de aço no lugar do meu osso. Recebi alguns abraços e sorrisos, umas mensagens de consolo bem clássicas como "sinto muito", mas oque mais me surpreendeu foi que algumas pessoas ainda perguntavam: "oque aconteceu com você?" - e então eu ficava com raiva de mim mesmo e lembrava de que é claro que eles não sabiam oque tinha acontecido. Eu era invisível e nunca deixaria de ser.

Enquanto os dias se passavam, o sentimento de pena passava também.

Voltei a rotina normal. Bom, quase. Porque nada nunca voltaria a ser normal como antes.

E eu agora era conhecido como o garoto do acidente. E meu apelido variava de "perna de pau" até "saci-pererê". Eu me perguntava como eles tinham tanta criatividade.

E crueldade também.

Todas aquelas coisas. Será que eles achavam que não doia? Por que doía, e dói até hoje. Dói? Ah, mas você é forte, segura aí... É. Uma das vantagens de ser invisível é que eu posso engolir quantas dores eu puder, que ninguém vai notar. Posso correr pra chorar no banheiro que ninguém vai perceber e nem sentir minha falta.

Porque sou invisível.

E eles podiam até me ver, mas não me enxergavam de verdade. Podiam ver o garoto que perdeu a perna, mas não o verdadeiro Daniel.

Você é forte. Levanta, engole o choro e faz cara de paisagem. A noite chega logo e você vai poder ser você mesmo dentro do seu quarto e chorar o quanto precisar.

Eu sou o único que consigo me enxergar mesmo.

Respira. É tudo o que eu posso fazer. Respirar. Todd se foi. Nada disso importa mais. Estou sozinho.

Sou invisível.

E pensando por outro lado, não é tão ruim não fazer parte de nada. Pelo menos eu não decepciono as pessoas, porque ninguém cria expectativas em cima do que não vê.

Tá vendo. Invisível.

Uma hora, de tanto passar despercebido e ficar sozinho, você vai acabar sumindo... e quando você sumir, acabou.

Foi exatamente oque aconteceu comigo quando decidir parar de ir à escola. Eu estava cheio, no limite. Não aguentava mais. Meus ataques de pânico estavam me consumindo a cada dia. E então, eu sumi. E acabei desenvolvendo essa síndrome estranha que a minha mãe chama de agorafobia. Como se já não fosse o suficiente ter uma perna de aço.

Eu sumi, mas só espero que não esteja tudo acabado para mim. Porque no fundo, ainda carrego à esperança e necessidade de ser visto.

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