Capítulo 18 - Meu pai me da dois presentes!

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John me levou até um lugar bem afastado de tudo, praticamente nos limites da barreira de Ceuci que cobre todo o lugar. Neste lugar não tem nada além de algumas coisas presas no chão, como uma cruz, monumentos de pedra e diversas outras coisas. Esse lugar... é um cemitério. Isso explica as flores nas mãos dele. E também tem algo que está chamando bastante minha atenção desde que cheguei mais perto... ouço vozes, como se fossem surrurros...

- Esse é nosso cemitério. – disse ele. – Imagino que não tenha vindo até aqui em sua excursão de boas-vindas.

- Não, eu nem fazia ideia. – respondi.

-Bom, não é um lugar agradável para muitos. – Ele deu de ombros. – Mas isso não significa que não seja um local importante.

- Não fazia ideia que vocês tivessem um local assim, achei que todos os mortos fossem queimados e depois os outros comeriam mingau com as cinzas deles. – disse eu, não sei se falei corretamente, só estou dizendo do que me recordo de ter ouvido da TV anos atrás, mas pela cara de desdém do John, acredito que eu bostejei pela boca.

-Bom, isso acontecia antes da gente nascer sabe, século XX em algumas tribos, mas hoje em dia não é mais assim, principalmente para nós semideuses. Está na hora de atualizar seu banco de informações. – respondeu ele. - Na parte de queimar, está correto, ainda fazemos isso, mas só com aqueles escolhidos pela divina vontade do nosso senhor primordial.

Não entendi nada.

- Não entendeu não é? – bufou ele. – Achei que já soubesse disso. Não te contaram o que acontece depois da morte?

- Não, ninguém me conta nada na verdade. Vocês precisam rever esse processo de acolhimento. – respondi

- Não discordo, pois bem. – Ele começou a andar e eu o segui. – Existe quatro alternativas para nós filhos dos deuses indígenas brasileiros após a morte. A que todos querem é a primeira, ir para o Vale da verdadeira Amazônia.

- Que lugar e esse? – perguntei.

- Pode chamar de paraíso, nosso paraíso. – respondeu ele. – Lá é um lugar agraciado e protegido pelos deuses, onde as almas dos justos e guerreiros e vida descansam eternamente. Um lugar onde só tem felicidade e alegria, plantas crescem sozinhas e vão até seu prato, a flecha traz a carne sem você fazer qualquer movimento. A floresta e mais verde, cheia de vida, a águas são puras e cristalinas. É o local onde todos aqui almejam entrar depois da morte. Lá só entram os corajosos, guerreiros que deram seus sangue pelo seu povo, pela amada terra que os deuses lhe deram.

Um lugar familiar não é mesmo?!

-E a outra opção? – perguntei.

-A outra é a segunda mais desejada, se você em vida foi virtuoso em algo, fez o seu melhor impossível e amou este mundo é todas as criaturas dele com sua própria alma e principalmente demonstrou humildade. Você ganha a bênção do nosso Deus primordial, Nhanderuvuçú, e tem a honra de se tornar um deus ou uma deusa. – respondeu ele com os olhos brilhando. – Acontecia com mais frequência antigamente.

Virar um deus? Tipo imortal e com todos os direitos?!

-É o que a grande maioria deseja também, ser um deus imortal e poderoso.  – disse ele fazendo uma careta. – Sinceramente, Tupã me livre desse destino.

-Por que? Não gostaria? – perguntei.

- Não, deuses são proibidos de fazer muitas coisas, praticamente o que eles fazem é ficar fazendo filhos o tempo todo. – respondeu ele. – Não parece ser divertido, talvez seja minha visão humana limitada. Enfim, o terceiro lugar é o submundo, os cristãos adoram dizer que é o inferno, mas não é bem assim. O submundo é um local de justiça, sim, naquele lugar vai todos nós. Lá que seremos julgados se merecemos ser deuses, se merecemos a Terra sem Males, se merecemos castigo pelos nossos atos ou então o sono eterno.

-Sono eterno? – perguntei.

-As almas que são puras ou então já cumpriram a penitência no submundo tem a escolha de repousarem eternamente, suas almas retornaram para as mãos de nosso Deus primordial é lá descansaram até o fim. – respondeu ele. – Mas raramente desejam isso. Você se transforma em nada.

Com certeza esse último lugar eu não quero ir.

Quanto mais andamos, mais me sinto estranho. Como se a marca tivesse voltado e estivesse me queimando.

Paramos de caminhar e John deposita as flores em um túmulo feito de mármore. Não havia nome, nem data, nem qualquer coisa, mas algo me ocorreu quando toquei na lápide. Minha cabeça começou a doer, eu sabia o nome da pessoa que estava ali, era Natália Lopes, filha da deusa da morte, morreu em uma troca de tiros da polícia da cidade dela com traficantes. Espera, como sei disso?!!

- Você sabe o nome dela não sabe? – perguntou John me surpreendendo.

-Natalia. – respondi.

-Correto, ela foi minha irmã, talvez nossa irmã. – respondeu ele.

Nossa irmã?! Opa! Opa! Isso quer dizer que sou filho da deusa da morte?!

- Como posso ser seu irmão? – questionei.

-Essa energia a sua volta, é familiar, quase igual a minha. Eu senti isso desde quando te vi. - respondeu ele. – Curupira também suspeita. Os únicos que tem essa aura de morte em volta são meus irmãos e eu. Faz todo sentido. E trazer você aqui só está confirmando minha teoria, só um semideus filho da deusa da morte pode saber como uma pessoa morreu, o nome dela é tudo mais sem ler qualquer tipo de informação. – respondeu ele. – Está ouvindo vozes não está? São as almas falando.

Estou e na verdade essas vozes estão insuportáveis, então é isso? Eu sou filho de Catxuréu?!

-Só é estranho que mamãe demore tanto para te marcar. – responde ele. – Vou tentar entrar em contato com ela.

- Você pode fazer isso?

-Posso, ela só tem eu de filho neste momento no plano físico, ela ir a perceber que estou chamando ela. . – respondeu ele. – Espere um segundo.

Ele fechou os olhos.

As vozes se tornaram mais intensas por alguma razão, meu cérebro parece querer explodir. Não sei explicar, estou sentindo algo muito ruim, um enjoou como se estivesse acontecendo alguma coisa errada.

John começou a grunhir como se estivesse sentindo dor.

-John, o que foi? – perguntei.

‘-Não... Isso não está acontecendo... que energia é essa?! Tão grande?! – exclamou ele.

- Que energia? – questionei e algo me dizia que tinha haver com o que estou sentindo também.

John começou a gritar com as mãos apertando sua cabeça. O que será que ele tem?!! Ele se debatia sem parar!

-O selo da morte foi rompido! O SELO FOI ROMPIDO! – berrava ele totalmente descontrolado. – CHAME O PAJÉCIQUE!

- Eu vou chamá-lo!  – respondi começando a correr, mas meu corpo se desequilibrou e quase caí no chão por causa de um tremor, o chão está tremendo... o que é isso?! Estou ouvindo um estrondo abaixo de meus pés, como se fosse um terremoto...

-MANADA BESTAS FERAS INVADIRAM! – ouvi um grito e uma corneta foi assoprada. Uma onça pintada com uma criança em cima dela corriam de alguma coisa que estava atrás deles, era um cavalo com um homem horrível em cima... não... não é um homem montado em cima, ele é metade cavalo e metade monstro!

Ele galopava com um chicote na mão que parecia um cipó com espinhos tentando chicotear a onça e o menino.

RAWWW!!!

A criatura soltou um enorme rugido, um rugido tão alto e assustador que senti minhas pernas se tornarem duras como pedra.

-SOCORRO!! – gritou o garoto.

E agora?! O que eu faço?! Olhei desesperado no chão tentando achar alguma coisa pra tacar no monstro e encontrei uma pedra, eu a lancei. Minha mira é tão boa que ela pegou de raspão no chifre do monstro, mas pelo menos serviu para atrair a atenção dele para meu azar.

Ele dirigiu seu olhar horroroso para mim, seus olhos são vermelhos como sangue, seus braços e seu peito são cheios de pelos pretos como se fosse de urso. Seu rosto é deformado com cicatrizes, seus dentes afiados e amarelos saíam por fora da boca. Acima de sua cabeça haviam dois chifres. De sua boca saia uma babá verde que caia no chão e fazia a grama apodrecer. Ele avançou pra cima mim.

BOSTA!!

Minhas pernas se mexeram e voltei a correr. Eu tinha falado para Yancy que geralmente eu corro de problemas! Nunca mais a vida vai ironizar minhas palavras tão bem como hoje! Corri em direção ao refeitório, Eldorado inteira estava sendo invadida, em todos os lados tinham esses monstros e os demais semideuses os enfrentavam como podiam. Um grupo de filhos de polo atacavam dois com vento, os monstros ficaram brancos de tão sufocados que estavam. O que corria atrás de mim grunhiu e se direcionou para atacar os filhos de Polo, mas também foi derrotado.

Ouvi gritos em todo lugar, tanto de humanos como dos monstros, mas como eles entraram?! Esse lugar não é protegido?!

Havia outro na minha frente, ele avançou pra cima de mim, no entanto nós fomos surpreendidos quando Maria pulou em cima dele com adagas em chamas em suas mãos, ela perfurou a cabeça do monstro e o encheu de fogo o fazendo cair no chão, morto.

-Onde está a Tainá? – questionou ela olhando pra mim.

- Não sei, ela disse que havia ido na estufa dos papagaios. – respondi.

Sem dizer mais nada, ela saiu correndo apressada, nem deu tempo de falar do John... meu Deus, o JOHN!

-RAWWW!!! – outra criatura corria em minha direção com uma lança, mas antes que pudesse me alcançar seus pés de cavalo foram cortados e ele caiu no chão em total desequilíbrio. Seu sangue verde fedia carne podre e os gritos de sua dor eram piores que seus rugidos. Uma sombra passou por cima de mim e um raio pulverizou o monstro na minha frente. Tudo que tinha em minha frente era uma coluna de fumaça e um cheiro horrível de carne queimada.

-Kauê! Você está bem?! O que está fazendo aqui?! – exclamou a voz de Yancy. Ele desceu voando até minha frente. Sua camisa está rasgada, ele tem cortes pelo corpo que sangravam. – Quer morrer?!

-O que houve com você?! – exclamei.

-Isso não é nada, tem muitos atacando sem parar. – respondeu ele. – Eu que pergunto o que diabos faz aqui na linha de fogo?!

-Yancy! O John precisa de ajuda! Estávamos no cemitério e do nada ele começou a gritar e parece estar com muita dor, ele quer que o Pajécique vá até ele. – respondi quase gritando desesperado.

- Não tem ninguém no cemitério, Kauê. Acabei de voar por cima dele. – respondeu Yancy. – John deve ter saído quando a invasão começou. Ele vai ficar bem, agora você que não vai ficar se continuar aqui.

Sem dizer nada, Yancy pegou minha mão e levantou voo. Lá em baixo todos lutavam, os filhos da deusa da agricultura fizeram uma espécie de grama movediça, os monstros estavam afundando dentro dela. Victor lançava projéteis afiados de gelo em dois deles enquanto uma garota os congelava com uma rajada de gelo.

-O que está havendo? – perguntei.

-Bestas feras, eles vivem de forma solitária e comem carne humana. – respondeu Yancy. – Não tem explicação essa manada inteira junta e ainda mais invadindo Eldorado! Fomos pegos de surpresa, eles simplesmente surgiram do nada.

Dois semideuses filhos de Rudá estavam cercados no chão por três criaturas. Yancy nos desceu perto da escola.

-Entre, na sala do Curupira tem uma entrada para o subterrâneo. Todas as crianças e os que não conseguem se defender e lutar estão lá, corre Kauê. Eu preciso ajudar os outros! – gritou ele soltando minha mão e voo para prestar socorro aos filhos de Rudá.

Eu fiz o que ele mandou e corri até a escola, mas antes que conseguisse entrar eu soltei um grito de horror quando senti minha perna direita ser agarrada e furada repetidas vezes. Era um cipó cheio de espinhos e na ponta dele havia uma besta fera, mas bem diferente dos outros. Ele é todo preto, deste o torço de cavalo, até mesmo o torço de homem. As únicas cores diferentes nele são seus olhos alaranjados e é seus dentes amarelos e podres.

-Venha aqui. – essa voz de mulher me deixou arrepiado, é aquela mesma voz de meus sonhos. – Se você entrar lá dentro não conseguirei falar com você.

Ela me segurava de cabeça pra baixo. Senti meu sangue deslizar pela minha perda e os espinhos perfurassem mais a minha carne, a dor é insuportável.

-Essa voz! Quem é você?! – exclamei – Por que está nos meus sonhos?!

- Não se engane, eu não sou esse monstro. Estou apenas usando ele para falar. – riu ela. – Estou bem longe na verdade.

O cipó se apertou mais, tão forte que parece querer quebrar minha perna, meu sangue escorria. O monstro levou seu rosto horrendo até minha perna e lambeu meu sangue com sua língua asquerosa.

-O que quer de mim? – perguntei não aguentando mais essa dor.

-É um espanto que esteja vivo, então aquele maldito do Azazel me enganou. – respondeu a voz, mas a boca do monstro não se mexia. – Mas até que isso foi bom. Vai causar uma enorme discórdia por aqui e digamos que eu amo assistir a desgraça dos outros nos bastidores, é hora do reconhecimento, meu caro amiguinho.

- Como assim? – perguntei ficando tonto e com mau estar.

Os olhos do monstro começaram a brilhar e ela começou a dizer palavras em outra língua. Pelo canto do olho eu pude ver duas bestas feras com sangue nas mãos e devorando carne vermelha... será que é. Não, não quero pegar nisso...

Vi Raoni, ele lutava com bestas feras de forma bruta e violenta com seu machado, ele montou em um e quebrou o pescoço do monstro com as mãos, seu olhar era cheio de raiva e prazer no que fazia, ele olhou para mim.

-Me ajuda! – consegui gritar, mas ele me ignorou totalmente com um sorriso de satisfação nos lábios e saiu como se eu não estivesse aqui necessitando de ajuda. Maldito!

-KAUÊ! – ouvi a voz de Ágata ao longe, mas não sabia de onde estava vindo. Logo a dor na minha perna sumiu e cai no chão.

-Isso é o suficiente. – disse a voz. – Boa sorte, menino amaldiçoado.

-ARGH!!! – gritei ao sentir meu ombro direito queimar como se uma ferro quente estivesse sendo colocado sobre ele. Minha pele parecia estar sendo rasgada por uma faca quente!

Os olhos alaranjados do monstro desapareceram e olhos vermelhos surgiram no lugar. Com certeza ele está livre daquela voz agora, o monstro levantou o punho e parecia pronto para me matar, desta vez não tenho força para correr. Estou perdendo meus sentidos de tanta dor... meu corpo suava por inteiro, sinto ele tremer desesperadamente.

Mas antes que ele pudesse fazer qualquer coisa, uma foice passou pelo seu pescoço o decapitando, seu corpo caiu no chão totalmente imóvel e John apareceu atrás dele em um vulto de sombras, ele disse alguma coisa e as sombras das bestas feras criaram vida e mataram seus anfitriões de forma bruta.

-Kauê! – John correu em meu socorro. – Sua perna! O que e isso em seu braço?!

Eu quase não ouvia nada e nem conseguia ver o que havia em meu braço. Ágata correu até nós, seu olhar era de espanto e tenho quase certeza que não é por causa da minha perna. Depois dela chegaram outros semideuses, principalmente aqueles que saíram de dentro da escola. Os olhares deles eram cheios de medo e pavor.

-Esse símbolo, Kauê. – disse ela em um sussurro. – Não pode ser!

Raoni e Yancy se aproximaram, Yancy foi direto para minha perna.

-Precisamos levar ele pro centro médico! – exclamou ele. – Agora!

- Seu cego idiota! Não pode ver e por isso não sabe a abominação que está na sua frente?! – gritou Raoni. – Fiquem todos longe dele! Isso tudo é culpa dele! Vamos mata-lo!

- Não! – gritaram Yancy e Ágata e ouvi trovões explodiram nos céus.

-Não sejam idiotas! Ele é perigoso! Não estão percebendo?! Toda a desgraça que está acontecendo é culpa dele! Isso explica tudo! Olhem quem é o pai desse maldito! Ele é filho de Anhangá, deus do submundo, da loucura e do mal. A nossa pior maldição!

E eu apaguei...

Livro 1: Kauê e os filhos da Amazônia - O Herdeiro Do SubmundoOnde histórias criam vida. Descubra agora