Depois de me revelar quem ressuscitou, John se levantou de sua posição um tanto irritado e foi direto para seu baú.
-Onde coloquei o dinheiro. – John remexia em seu baú de madeira com decoração prateada, ele está fazendo uma chuva de roupas por todo o chão. – A encontrei!
Ele me mostra uma nota de 50 reais.
-Vamos, precisamos comprar uma coxinha. – diz ele. – Essa desgraçada vale 50 reais, mas é uma emergência.
O QUÊ?! 50 TEMERS UMA COXINHA! O que ela tem de tão especial? Perto da minha casa tem um bar que vende uma enorme com todo o frango que minha avó aguentar comer, por apenas 3 reais. Quase sempre compro pra ela, só pra ela, pois eu odeio coxinha. Sou esquisito, eu sei disso muito bem.
Saímos da Oca e começamos a andar, me pergunto que tipo de lugar vende uma coxinha tão cara por aqui. Por sorte aqui fora está sem ninguém.
-Onde vamos? – perguntei.
-Para a Oca da deusa da Agricultura. – suspirou ele. – Só espero que a Gabrielle esteja lá, ela é minha única chance para eu conseguir falar com minha mãe. Só espero também que Arthur atenda minha invocação, estou devendo um sorvete com pizza pra ele.
-Quem é Arthur? – questionei.
-Arthur é um Ceifeiro, meu irmão. – respondeu ele não parecendo estar muito entusiasmado. – Nós filhos da deusa da morte, temos uma opção extra depois que morrermos. Podemos virar ceifeiros. Ceifeiro é um serviçal da morte, ele que coleta as almas das pessoas que morreram e as levam ao seu devido lugar. Nós filhos da morte podemos receber a benção de nossa mãe, e isso aumentará nossas habilidades, nossa missão é ser os olhos de nossa mãe. Ela não é onipresente. Para falar com meus irmãos já falecidos que executam essa função, um semideus precisa estar perto de morrer. Algo que não será necessário para mim, já que posso invoca-los. No entanto eles seguem as regras entende, pra agradar a mamãe e ter mimos. Bando de falsos, mas tem alguns que por um pagamento extra, me ajudam quando peço, ou melhor, ofereço algo.
-Você está subornando seu irmão? – concluí.
Ele deu de ombros.
-Cada um luta como pode. – ele sorriu. – Chegamos.
A Oca da deusa da Agricultura havia mudado de aparência, agora ela está toda colorida com rosas vermelhas e brancas. Na porta haviam dois espantalhos horrorosos feitos de palha e feno, eles estavam se mexendo e estão armados com machados.
-Freedie, Salcicha, chamem a Gabrielle, por favor. – pediu John. Eu fiz uma careta achando graça. – Por alguma razão a Gabrielle é apaixonada por Scooby-Doo.
Também gosto de Scooby-Doo, principalmente do filme live-action de 2001 se me lembro bem, tenho até a fita VHS. Já umas 50 vezes.
Uma garota saiu da Oca, voando em cima de batata gigante, eu já havia visto ela no refeitório. Ela loira com lindos olhos claros que estão atrás das lentes de seus óculos. Seu cabelo está preso por uma raiz e ao contrário de muitas garotas que já por aqui, ela está usando roupas normais que cobrem o corpo todo. Ela parece cansada e pelo seu olhar, arrisco que ela acabou de acordar.
-Olá John, é sempre bom ver você por aqui. – respondeu ela com um sorriso debochado e olhou para mim. – Você deve ser a nossa nova celebridade, é mais bonito do que me contaram.
Fiquei sem graça... não consigo evitar. Não sou bom em receber elogios, pois raramente recebo algum.
-Entre, sabia que você viria cedo ou tarde, guardei uma especialmente para você e seu Ceifeiro guloso. – respondeu ela entrando voando em cima da batata.
Nós a seguimos, a Oca por dentro é gigantesca com diversas camas e redes. O chão é totalmente revestido com grama e flores. Também haviam mesas, cadeiras, estantes com livros e uma bola de cristal que estava ligada em um canal ambiental. O que me chamou mais atenção foi no final da Oca, tem uma mesa enorme com diversos fracos com líquidos verdes e de diversas cores.
Algumas partes do chão estão lotados de roupas e papeis de doces.
-Não reparem na bagunça. – disse ela. – Meus irmãos são alérgicos a limpeza e são contra dividir tarefas e deveres pela boa convivência. Qualquer dia vou explodir todo mundo com meus repolhos explosivos.
Ela ergueu sua mão e galhos de arvore emergiram do chão até suas mãos se transformando em muletas, ela se apoiou neles e desceu da batata. As muletas encolheram até ela alcançar o chão e ela foi dessa forma até sua cama, então ela não consegue andar...
Ela se sentou na cama e bateu a muleta no chão, a grama começou a se mexer e lhe trouxe uma enorme caixa que estava debaixo da cama.
-Desculpe a demora, John, ainda estou me acostumando com o fato de aposentar minha cadeira de rodas. – respondeu ela parecendo exausta. – Você deveria ver a cara de meu pai quando ele me viu me locomover dessa forma.
John sorriu.
-Ele está bem? Digo, depois de tudo isso? – perguntou ele.
-Está. – respondeu ela abrindo a caixa. – Pelo menos eu imagino que esteja... não foi culpa dele, sabemos disso, mas sempre que ele olha pra mim, ele se lembra do que aconteceu... e o clima pesa entre nós, é difícil.
-Eu imagino. – respondeu John com a voz rouca e baixa. – Tudo vai ficar bem, temos que acreditar.
-Obrigada. – Murmurou ela.
Gabriele abriu a caixa e dentro dela havia uma espécie de tigela térmica ou algo assim, ela a abriu e tirou de dentro uma enorme coxinha bem gorda.
-Totalmente recheada com Nutella e doce de leite, papai caprichou nessa. – ela sorriu. – A coca Diet está ali dentro da pequena geladeira ao lado da mesa. Meu pai está feliz, as vendas por aqui estão a todo vapor.
-Muito obrigado. – respondeu John pegando a caixa e entregando a nota de 50 reais. – Isso deve cobrir tudo que eu estava devendo, certo?
-Sim. – disse ela. – Você vai na reunião do conselho?
-Preciso ir, Yancy e eu descobrimos algumas coisas. – disse John. – Por acaso já chegou alguma notificação?
-Raoni passou dizendo que teria uma reunião daqui a pouco e se ele tiver sorte, uma execução pelo bem de todos. – respondeu ela olhando pra mim com pena, imagino. – Claro que ele não pode fazer isso sozinho.
-Eu não me importaria com as besteiras do Raoni, tem coisas mais urgentes no momento, muito mais. – John foi até a pequena geladeira e pegou uma coca diet. – Até mais tarde e obrigado.
-Até depois. – me despedi.
-Até bonitinho. Se não morrer hoje, vem aqui pra gente se conhecer melhor. – ela piscou pra mim e mais uma vez fiquei sem reação. John riu quando saímos da Oca e passamos pelos espantalhos.
-Cuidado, ela é famosa por prender os homens em vinhas e fazer o que quiser com eles. – respondeu ele rindo. – Claro, desde eles queiram.
-Como é?! – exclamei não acreditando que aquela garota fosse capaz disso.
-Não se engane pela condição física dela, Kauê. – disse ele. – Gabriele sempre foi uma líder forte e uma garota ousada, e agora ela é mais ainda, odeia ver que os outros sentem pena dela ou a tratem como uma incapaz por causa do que aconteceu com ela.
-Então ela não nasceu assim? – perguntei.
-Não. – suspirou ele. – Não é uma história feliz de se contar, mas cedo ou tarde você iria saber mesmo. Gabriele ficou dessa forma por causa de um ataque, ela estava na padaria de seu pai, eles estavam discutindo porque ele não queria que ela fizesse ensino superior, o sonho dela sempre foi ser Biologa Ambiental. Pode não parecer, mas ela tem 19 anos. No entanto seu pai não queria isso para ela, ele queria que ela trabalhasse com ele na padaria em período integral e que ela levasse o negocio da família em diante. Estava chovendo muito na noite, sem que ela percebesse qualquer cheiro ou sentisse qualquer coisa, um lobisomem invadiu a padaria e os atacou, Gabriele lutou contra ele usando suas adagas e as plantas que estavam no local, porém seu pai totalmente desesperado pegou uma arma que ele tinha na gaveta para usar contra assaltantes. Armas humanas não funcionam com criaturas folclóricas. O lobisomem conseguiu agarrar o pai de Gabriele e iria mata-lo, em um impulso para salva-lo, ela pulou em cima do monstro, ele soltou o pai dela, mas a agarrou e quebrou sua coluna com seus enormes braços. A legião que estava por perto conseguiu matar o lobisomem, mas já era tarde... desde então o pai de Gabriele se culpa pelo que aconteceu, ele sabe bem que se não discutisse tanto com a filha, se deixasse ela seguir o caminho dela, ela não estaria ali naquela noite... você pode imaginar.
Que incidente horrível...
-Mas ela está bem, como você viu, ela tem uma ótima personalidade e não se abateu com o que houve. – disse ele. – Sinto muito orgulho dela, agora vamos parar de falar dos outros e fazer o que devemos fazer.
Quando chegamos na Oca, John se sentou no chão. Ele pediu para mim pegar uma adaga que estava na mesa dele.
Nem reparei que havia uma adaga ali. Ela é diferente das outras, seu metal é totalmente preto. Eu a entreguei ao John e ele imediatamente fez um corte na palma da mão que me deixou todo arrepiado. Com sua outra mão, ele passou os dedos em seu sangue e desenhou um círculo no chão.
Ele ergueu a mão cheia de sangue e uma chama roxa das tochas foi até sua mão. Ele fechou os olhos e disse com uma voz rouca e tremula.
-Messorum evoco qui me titegit! – Vorificou ele depois bateu a mesma mão no chão em sua frente. – Arthorius!
A chama se intensificou e escorreu junto ao sangue de John no círculo. Formando um círculo de fogo, o fogo se alastrou para cima e derrapante uma imagem tremula surgiu entre as chamas, era um homem. Com capacete na cabeça, parecia um elmo e com um manto preto por todo o corpo. Seu rosto não estava visível.
- Quem se atreveu a invocar o servo da Morte?! – sua voz saiu como um estrondo.
-Sou eu, Arthur, pare de teatrinho. – respondeu John revirando os olhos. – Toda vez a mesma entrada, muda o disco.
-A é você, maninho, não sabia que era você que me invocou. – disse irmão de John. – O que quer? Eu estou ocupado, tem uma velha morrendo engasgada com suco de laranja neste momento. Quem é este seu amigo? Ele pode me ver e não está usando magia como seu amiguinho Bruno.
Amiguinho?
-Mereço. – suspirou John. – Olha, ele é filho de Anhangá, por isso ele pode....
-Oh! Senhor, me desculpe! – O Ceifeiro se ajoelhou perante mim tentando beijar meus pés. – Eu não fazia ideia de sua grande grandeza e nobreza.
Ele é o primeiro ser que parece feliz por mim ter o pai que tenho.
-Não é bajulando o filho do patrão que você vai ganhar pontos. – respondeu John. - Você não muda nem mesmo depois de morto, Arthur. Continua sendo uma raposa velha.
-Só quis demonstrar respeito. – respondeu o Ceifeiro. – E é a patroa, quem está ditando as ordens no submundo é a esposa de Anhangá, já que ele foi preso na jaula pelos demais deuses. Aí... aquilo é coxinha?!
Esposa? Então ele é casado...
-É sim. – respondeu John. – Uma suculenta coxinha, mas antes que eu considere dar ela a você. Preciso que entre contato com minha mãe.
-Impossível. – respondeu ele.
- Por quê?! – questionei John.
-Uma porque não é legal ficar chamando a morte, ela que chama a gente e ela está ocupada com outros assuntos até onde as almas só fofocaram para mim. - respondeu ele. – Estamos com problemas sérios, John. Muito sérios.
- Que problemas? – perguntou John parecendo estar surpreso.
-Existem pessoas que estão morrendo por terem sua energia vital extraída e sua alma não vai para lugar nenhum, quando um ceifeiro vai colher a alma, ele também desaparece sem explicação. – respondeu Arthur. – Ninguém vê ou percebe alguma coisa. Aquele filho da deusa da magia, o Bruno, seu amigo. Ele invocou um ceifeiro dias atrás para a perguntar o que estava havendo, até mesmo enviou uma mensagem para o Pajécique, acredito que já tenha chegado, ele estava em uma missão, mas se desviou para pesquisar sobre isso. E outra coisas que aconteceu, alguém ressuscitou, não sei quem, mas... foi usado uma energia enorme e não podemos impedir a ressureição.
-Estou ciente da ressureição... mas essas pessoas morrendo e tendo as almas extraídas é nova pra mim. – disse John pensativo.
-Está acontecendo faz um tempo, nem mesmo os anjos conseguem explicar, tem alguma coisa barrando a nossa visão. – disse ele. – Quando nossa mãe estiver disponível, falarei com ela sobre como podemos agir.
-E a esposa de Anhangá? – perguntou John. – Ela é a rainha do Submundo, deveria tomar alguma atitude.
-Ela disse que não fara nada, que apenas se responsabiliza pelas almas que entram, se nenhuma entrar já não é jurisdição dela. – respondeu ele. – Nós Ceifeiros estamos corridos esses meses, sem tempo para comer e meu horário de almoço começou faz uns 20 segundos...
O Ceifeiro olhava a coxinha praticamente babando, será que os mortos tem fome?!
-Pode comer. – John entregou a coxinha pra ele.
-Eu te amo, meu maninho favorito! – exclamou o Ceifeiro a pegando e a devorando.
John parece nervoso, tão nervoso que ele está até comendo as unhas dos dedos.
-Como isso tudo está acontecendo e não percebemos? – perguntou ele olhando pra mim. – Nossos pais tem autoridade nesse território, deveríamos sentir que algo assim está acontecendo. Qual será o problema?
-Não sei. – respondi, eu nem sei quais são meus poderes ou o que posso fazer ou sentir. No momento tudo que está me deixando inquieto é a minha situação.
-JOHN! – ouvimos o grito de um papagaio entrar pela janela, ele atravessou o Ceifeiro que ficou imóvel apreciando sua coxinha e o papagaio bateu na parede, caindo no chão.
-Ventaval! – exclamou John correndo até ele. – O que aconteceu?!
O papagaio é totalmente roxo, mas ele estava quase sem algumas penas e saia sangue de diversos ferimentos.
-John... – disse ele com a voz exausta. – Bruno precisa de ajuda... pegue uma pena, veja por si mesmo... A Cuca, ela ressuscitou o antigo Cacique...
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Livro 1: Kauê e os filhos da Amazônia - O Herdeiro Do Submundo
FantasyTodas as divindades existem, cada uma em sua esfera de controle. No Brasil predominam os deuses brasileiros dos povos indígenas. E como todos os seres divinos ao redor do mundo, eles adoram abrir uma fábrica de filhos, essas crianças são semideuses...