Capitulo 19 - Meu pai e famoso, famoso e odiado

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Onde estou? Está tudo tão escuro... tão frio... sinto minha mente latejar, como se tivesse gritos desesperados e eufóricos querendo explodir meu cérebro. Essas vozes...

A escuridão sumiu e vejo um local iluminado com a luz do sol, tem um buraco no chão, mas o que... o que é aquilo? Me sinto sendo sugado pelo buraco! Meu corpo estava imóvel e a forte pressão me puxava com força, me deixando acima do buraco, flutuando no ar. Meus olhos não veem nada dentro dele, mas sinto um cheiro muito forte de ozônio... o que? ... o que é aquilo? Duas bolas de luz surgiram na escuridão do buraco e algo avançou até mim! E derrapante tudo ficou escuro novamente, mas as vozes não pararam.

-Matem-no! – disse uma voz, cheia de raiva. – Sabemos muito bem o que o pai dele nos fez!

- Não podemos deixar ele viver aqui! Só vai nos trazer desgraça! – gritou outra voz.

- Não podemos fazer isso, ele não tem culpa de nada! – essa voz era de Tainá. – Ele não fez nada! Pajécique! Por favor!

-FIQUEM TODOS QUIETOS! – uma voz poderosa como um estrondo de trovão fez tudo estremecer.

-NÃO! – berrou a voz de Raoni. – NÃO PODE FAZER ISSO, YAGURA! EU MESMO VOU MATA-LO! TODO FILHO DE ANHANGÁ DEVE MORRER!!!

BARUUMM!!

-AHH!! – gritei abrindo meus olhos em um sobressalto, sinto minha cabeça latejar como se tivesse um zumbido dentro dela. Estou totalmente suado e sinto meu coração acelerado. Onde estou? O que aconteceu? Olho para cima e para os lados, a nostalgia me invade por alguns segundos quando percebo que voltei a enfermaria, o primeiro lugar que conheci quando cheguei nesse lugar. Meu braço direito ainda dói, como se estivesse sendo queimado, mas não sei o motivo. Tem algumas faixas brancas em volta dele, assim como tem na minha perna. Minha cabeça dói tanto, preciso de um remédio urgentemente. O que será que aconteceu? Por que sinto minhas coxas molhadas? ... oh! não! Não acredito que isso aconteceu! Parabéns, Kauê! Você urinou na cama... e pensar que faz muito tempo que parei com isso...

“Anhangá... Anhangá” – pude ouvir uma voz profunda.

Anhangá? Quem é. É aquele deus que falamos na aula, mas...

-Com autorização de quem você quer entrar?! – ouvi a voz de um dos seguidores de Raoni do lado de fora.

-Me poupe, Arthur! – escuto Ágata. – Sabe muito bem que qualquer um pode entrar aqui! Sai da minha frente!

-Não, com autorização de quem? – ouvi o seguidor de Raoni insistir.

-Com a minha, algum problema? – essa voz era da Maria. – Não se esqueçam que eu sou a chefe se segurança agora, então deixem ela passar ou vai ter muito macho chorando com cuecas pegando fogo.

-Obrigada. – ouvi Ágata responder.

Ela entrou, seu braço esquerdo estava enfaixado com uma tala. Seus olhos e rosto pareciam cansados, mas eles mudaram totalmente quando olharam para mim.

-Kauê! Você acordou! – Ágata correu e me abraçou, quase me sufocando. – Rezei tanto a minha mãe! Tanto!

Ela parecia a ponto de chorar. Será que eu estava tão mal assim ou estou?

-Ágata, quanto tempo estou aqui? O que aconteceu? – perguntei, totalmente confuso. Minha mente está em branco, não consigo me lembrar de nada...

- Você está aqui a dois dias. – respondeu ela. – Desmaiou de dor por causa da sua perna e por... por causa de outro motivo.

- Que outro motivo? Por que os seguidores de Raoni estão guardando a porta? – questionei com a cabeça explodindo. Aí... Meu braço. Por que não lembro de nada? Tá tudo confuso... só lembro do John tendo um treco no cemitério e de alguns fleches da invasão. Ágata ajeitou seu braço com a tala, ela fez uma careta de dor. – O que houve com você?

-Uma besta fera me agarrou e me lançou, tive sorte de não ter quebrado o braço. – respondeu ela. – Tive sorte de não ser nada grave... alguns não tiveram tanta sorte.

Sua voz estava cheia de melancolia como se ela estivesse fazendo força para não chorar.

-Alguém morreu? – perguntei sentindo meu estômago embrulhar ao lembrar de um dos monstros cheios de sangue devorando carne.

- Não, graças aos deuses, ninguém morreu, muitos foram seriamente feridos, mas dessa vez ninguém foi morto. – respondeu ela.

Mas... Se tem tanta gente ferida assim, porque eles não estão aqui?

-Onde estão todos os feridos? – perguntei. – Já estão melhor?

Ela demorou um pouco para responder.

-Eles estão bem recuperados e saíram daqui antes de você. – respondeu ela virando o rosto e suspirando.

Tem algo de errado, Ágata está inquieta, parece nervosa. Talvez tudo isso tenha sido traumatizante e foi na verdade... mas ela parece estar com medo. Seu rosto transmite isso totalmente.

-Posso te ajudar com isso? – perguntou ela olhando para minhas pernas e short molhados, nunca senti tanta vergonha na minha vida. Eu quero morrer! – Não sinta vergonha Kauê, o que aconteceu com você foi algo muito forte. Afetou todo seu corpo e organismos.
Ela ergueu sua mão direita e disse algumas palavras baixas e logo pude sentir toda urina que estava na cama, nas minhas pernas e no minha roupa desaparecer. Que alívio...

-Obrigado. – respondi sentindo meu rosto arder de vergonha.

-De nada. – respondeu ela.

-E o John? Yancy? Tainá? Como estão todos? – perguntei lembrando do John surtando no cemitério.

-Estão bem na medida do possível. Tainá está tranquilizando os animais. – respondeu Ágata. – Eles estão muito agitados, John e Yancy saíram em uma missão ou algo assim. Foram pesquisar alguma coisa.

-O quê? – perguntei.

-Não sei, eles só pediram permissão para o Curupira e sairão. – disse ela. - Você está mesmo bem? Pode sair daqui?

-Sim, estou ótimo. Ágata, você não me respondeu. Qual o outro motivo do meu desmaio? – insisti. – Não me lembro muito bem, tá tudo uma zona na minha cabeça. Só lembro de Raoni gritar algo sobre filho amaldiçoado... O que isso quer dizer?

Ela me encarou, seu olhar parece transmitir pena.

-Yancy pediu para nós não falarmos disso até você estar melhor, mas acho que isso não irá adiantar. – ela suspirou. – Kauê, você foi identificado por seu pai. Ele queimou o símbolo dele em seu braço.

Meu pai?! Sério?!

-Quem é meu pai?! – exclamei. – Por que não me disse logo?

-Tire as faixas, você vai saber quando ver o símbolo. – respondeu ela como se quisesse morder a língua.

Imediatamente retirei as faixas, elas saíram de forma fácil e quando finalmente consegui ver o símbolo, pude ver uma cabeça de caveira de algum animal com chifres. É um veado... A tatuagem é bem horrenda, olhar pra ela me fez sentir algo estranho... um medo...  Mas o que significa?!

- Não entendi. – respondi. – Que deus usa esse símbolo?

Ágata levitou um papel até mim e pediu para eu ler.

“Não diga o nome dele, Isso não é bom, seu pai, Kauê... É. Anhangá, senhor do submundo. Deus do mal e da loucura.”

Anhangá, aquele deus que a professora e os alunos falaram tão mal e chegaram a dizer que o temem apenas em dizer o nome dele, pois ele é inimigo máximo de Tupã... Eu sou filho justo desse deus!

- Meu pai é.

- Não diga o nome dele. – pediu Ágata. – É proibido... Sinto muito, Kauê. Mas essa é a verdade.

Não sei o que sentir... Eu deveria estar feliz em saber quem é meu pai, estava ansioso por isso a meses, mas agora... Eu sinto medo... confusão, nem o nome dele eu posso dizer em voz alta. Meu Deus, o que eu faço agora?! Agora entendo o motivo do ábaco se John dizer que irei para o submundo e entendo por também poder ouvir as vozes das almas e saber quando e como as pessoas morreram, eu não sou filho da deusa da morte, sou filho do Deus pós-morte. O Deus pós-morte mais odiado e temido por aqui...

-Yancy não queria que te contasse até você estar totalmente recuperado, mas não podemos esperar. As coisas lá fora não estão boas, logo será seu julgamento. – respondeu ela.

- Que julgamento?! – praticamente gritei. Eu não queria, mas estou com muita raiva de tudo.

- Kauê... A invasão dos bestas feras, alguns estavam com a mesma tatuagem que a sua, não sei se você viu. Mas vários monstros folclóricos servem ao seu pai e está se bestas feras estavam entre eles. Não estou dizendo que a culpa é sua, mas isso nunca aconteceu antes e. – ela não terminou. Nem precisa... já entendi.

Mais uma vez a culpa cai sobre mim e eu não fiz nada... nada... Eu devia ter obedecido minha avó... Eu devia ter ido no acampamento evangélico... Eu...

-Sabemos que não foi você. John disse que você estava com ele o tempo todo. – respondeu ela. – Disso ninguém pode te acusar.

-O que vai acontecer comigo? – perguntei me lembrando que Raoni disse que preciso morrer.

- Nada. – ouvi a voz do Curupira, ele estava entrando com um arco na mão e uma bolsa de flechas. Ele olhou para mim com aqueles olhos que pareciam uma intensa chama e sorriu. – Fico feliz que esteja bem, me assustou.

-Acho que assusto todo mundo agora. – respondi um pouco chateado por tudo isso.

- Não, não neste sentido. Me assustou seu desmaio e o ataque que recebeu.  Sinceramente, não faz diferença pra mim você ser filho de Anhangá. – respondeu ele e Ágata arregalou os olhos. – Os filhos não devem ser julgados pelos atos dos pais ou pelo que eles são ou representam. Certo, Ágata?

-Sim. – ela engoliu em seco como se tivesse um caroço de manga na garganta. – Mas por favor, não diga o nome dele. Nomes tem poder, ainda mais ele.

- Não sinto necessidade de temer um nome. – respondeu o Curupira, calmamente. – Já suspeitava que ele fosse seu pai, mas não tinha certeza, Kauê.

-John disse algo sobre isso, mas ele deduziu que eu fosse filho de Catxuréu. – respondi.

- Não, com toda certeza não. – respondeu ele alisando sua barba ruiva. – Seus poderes podem ser semelhantes, mas podem ser diferentes Também. – Oi? – Por isso ele se confundiu e também pelo fato de ninguém imaginar que seu pai fosse Anhangá.

Ágata tossiu como se estivesse engasgado, seus olhos estavam arregalados e sua face em pânico.

- Bom. – O Curupira suavizou o olhar e pediu para ela se acalmar. – Vim aqui também a pedido do Pajécique e do alto conselho. Você deve imaginar o caos que está em toda Eldorado com o que aconteceu. Yagura mandou uma mensagem aos deuses sobre sua situação, enquanto uma resposta não chega, você está livre como qualquer semideus. Desde que cubra seu símbolo e bom, não fale o nome de seu pai. São as únicas condições. Quando a resposta chegar, seu julgamento será iniciado. Acredito que será em breve. Tudo bem?

Não está nada bem... mas não tenho muita escolha.

Assenti com a cabeça.

-Obrigado. – respondeu ele. – Se sente melhor? Se sim, já pode sair daqui.

Sinto algumas dores ainda, mas não é algo forte. É suportável.

-Sim, me sinto muito melhor. – respondi e meu estômago fez um enorme barulho.

- Ágata, pegue as roupas dele que Robert trouxe. – disse ele. – E o leve para o refeitório, pedirei para que permitam que ele coma algo antes de todos.

-Tudo bem. – respondeu ela se aproximando de mim. – Venha, vou te ajudar.

...

O caminho até o refeitório foi muito animador, todos os semideuses, inclusive os animais se afastaram de mim. Eles estavam com medo e alguns com raiva, posso admitir isso só de ver o olhar deles em cima de mim. O curioso é que tem alguns feridos. Cobri meu símbolo com uma faixa preta para que ninguém possa vê-lo, no entanto... isso não parece adiantar muito. Atrás de mim e Ágata estão os guardas que estavam na entrada da enfermaria, eles parecem ter ordens de ficar de olho em mim.

É um incômodo, mas não estou me importando muito com eles. Minha cabeça está cheia de perguntas sobre meu pai... sobre o ataque de dois dias atrás... sobre aquela voz de mulher que me causa arrepios só de lembrar. Quem era ela? O que ela queria comigo? Não tenho certeza, mas tudo está me leva a crer que foi ela que fez a invasão acontecer. Eu não fiz nada... Eu nem sei os poderes que possuo. Só queria ir embora e esquecer tudo isso. Minha avó tem razão... O mundo é um local perigoso. Se eu tivesse obedecido ela... que saudade dela. Tudo que eu queria agora era abraçar ela e ir viajar pra longe novamente. Bem distante dessa região Norte que nunca pisei em minha vida antes.

Tem diversas coisas destruídas, muitos estão tentando limpar e arrumar tudo em todos os lados. O teto do refeitório tinha uma parte destruída. Entramos dentro dele e uma senhora negra que se me recordo o nome é Maria, estava cozinhando.

-Maria. – chamou Ágata e a mulher levantou o olho para encara-la. Isso mesmo, o olho... ela não tem o olho direito. A pele dessa parte de seu rosto parece ter sido rasgada por algo. Mas quando isso aconteceu?

-Sim, minha querida. – respondeu ela com um sorriso contido e ela parece evitar olhar para mim.

-Poderia nos dar mingau de aveia. – pediu Ágata. – Não tem nada melhor para fortalecer um corpo que estava de cama dois dias. Sei que estamos fora do horário, mas por favor.

Mingau de aveia... Não tem chocolate não?

Maria olhou para mim com uma expressão irritada e nos entregou duas tigelas com um mingau branco e estranho.

Nos sentamos em qualquer mesa e comecei a comer. Como esse mingau é horrível, eu estava pensando que iria comer algo mais vivo e gorduroso, mas se depender de Ágata, meus planos irão por água abaixo.

Ouvi Maria abrir a torneira para lavar alguma coisa é pude sentir seu olhar nas minhas costas.

-O que aconteceu com ela? – perguntei.

-Uma besta fera a atacou enquanto ela corria com uma criança nos braços, o monstro arrancou o olho dela com seu chicote e quase a matou, se não fosse Yancy e Victor, ela estaria morta. – respondeu Ágata.

-Hum... – senti o mingau amargar em minha boca.

- Não foi sua culpa. – disse ela. – É um absurdo pensarem assim.

Talvez... Mas aquela mulher que possuiu ou controlou aquela besta fera estava atrás de mim. É se a invasão foi só uma distração para chegar até mim? Então a culpa é minha.

O que será que ela quis dizer com aquelas palavras... me recordo um pouco das coisas que ela diz. Garoto amaldiçoado, lembro que o símbolo de meu pai só foi queimado em meu braço depois dela recitar aquelas palavras ou feitiço e também me recordo de um nome, Azazel. Eu sei quem é Azazel, se é quem estou pensando. Por alguma razão, minha vó ordenava que eu estudasse e aprendesse sobre e os demônios e anjos caídos. Um estudo que somente ela pedia para mim fazer, já que os pastores da igreja não faziam isso. E eu aprendi algumas coisas sobre eles, lendo suas lendas. Azazel é um demônio de alto nível. Um dos 7 príncipes ou generais do inferno que recebe ordens apenas de Lúcifer em pessoa. O aparecimento dele quer dizer que grandes desgraças irão acontecer, algo assim. Me lembro de uma vez em uma das igrejas de minha avó, Azazel supostamente possuiu o corpo de uma mulher e começou a rodar como peão no meio de todo mundo. Não sabia se era verdade, afinal depois de ler tanto sobre ele, me perguntei na época por qual motivo ele possuiria uma mulher qualquer e não o presidente dos EUA e começasse uma guerra que destruísse o mundo. Lembro também que minha avó ria da situação da mulher possuída. Bom, não sei se era ele ou se a mulher estava mesmo corrompida.  Só não entendo o motivo daquela voz mencionar Azazel... ele a enganou como? Por quê? O que é que eu tenho haver com tudo isso?!

Essas perguntas sem reposta estão me deixando louco. Parece que sempre surgirá dúvidas e dúvidas e nunca irei sanar todas elas.

- Você acredita que tenha sido meu pai o causador do ataque? – perguntei

Ágata colocou os braços sobre a mesa.

-Kauê, eu não sei. Seu pai já atacou Eldorado uma vez, de uma forma tão violenta que muitos semideuses morreram, foi bem antes de qualquer um de nós nascer. Eu não sei os detalhes, os mais velhos e sobreviventes não gostam de falar disso. Tudo que sei que por causa desse ataque, seu pai foi preso pelos outros deuses e em teoria, não é capaz de fazer nada. – respondeu ela. – Totalmente nada.

Se ele não é capaz de fazer nada e se foi preso bem antes de eu nascer, como foi que minha mãe e ele ficaram juntos então? Como esse ataque pode ter sido feito se ele está impotente?

-Sabia que iria te encontrar aqui. – Robert entrou no refeitório. Ele está com o peito todo enfaixado até o ombro direito.

-Quantas vezes terei que dizer que é pra ficar em repouso?! – exclamou Ágata.

-Calma, calma. – Ele sorriu e olhou para mim. – Oi companheiro de quarto. Estava me acostumando com seus roncos intensos e você tem a coragem de me abandonar?

- Não foi planejado, acredite. – respondi. Robert é um cara agradável, ele está sempre sorrindo e animado. Ao contrário de quase todo mundo que me trata mal, ele me trata muito bem e não parece ter medo ou raiva de mim. – O que aconteceu com você?

-Nada demais. Eu estava tentando fazer um feitiço para dar vida a estátuas. Seria de grande ajuda contra os bestas feras. – respondeu ele. – Mas eu fiz algo errado BUMM!! Explodiu tudo na minha cara de trouxa, pelo menos transformou os bestas feras a minha volta em poeira.

-E quase te matou! Seja mais cuidado. – Ágata o repreendeu. Não havia raiva em sua voz, apenas preocupação.

- Eu sei, desculpa. – Robert beijou sua testa. – Não serei imprudente de novo. Então, Kauê, como você está depois de saber quem é seu progenitor divino?

Ágata pisou em seu pé e pediu delicadamente para ele não falar sobre isso, mas não senti necessidade de não responder ele.

- Não sei. Estou com raiva, cheio de perguntas e procurando respostas. – respondi com toda sinceridade. – Sinceramente, eu surtaria, mas estou com a cabeça cheia pra isso.

Meu pai de acordo com o que dizem é a criatura mais desgraçada e odiada desse mundo. Deus do mal, do submundo e da loucura. Com certeza eu jamais falaria da profissão dele na escola. Além de todo mundo me chamar de mentiroso, eu estaria mentindo para mim mesmo. Não estou feliz em saber quem é meu pai, não sinto orgulho... sei lá. Queria que tivesse sido outro, Guaraci, Deus do sol ou Tupã... Não, Tupã não, se eu fosse, seria irmão do Yancy e não quero isso... enfim, tinha muitas possiblidades e minha mãe foi justo no cara errado! Se é que ela teve escolha... E se ela foi coagida, enfeitiçada talvez ou pior... tantas perguntas! Só queria ela estivesse aqui para sanar todas elas.

-Se acalme, Kauê. – disse a voz de Yancy. Olhei para cima e ele desceu voando pela parte quebrada do teto parando perto de mim. – Da pra sentir sua respiração pesada e frustrada de longe.

Desta vez Yancy está sem camiseta. Como imaginei, ele tem a mesma estrutura física de Raoni, só é uns centímetros mais baixo que ele. E também tem algumas pequenas cicatrizes no peito. Em seu bíceps forte do braço esquerdo tem um símbolo de raio queimado.

-Seu coração está acelerado. – respondeu ele se aproximando. Claro que está, estou nervoso com tudo que está havendo... Minha mão está até suando...

Ágata me olhava de forma curiosa, assim como Robert. Oxi! Qual o problema?!

Eu ia responder a ele, mas fui pego de surpresa com seu toque de dois dedos na minha testa.

-Que bom que está bem. – disse ele sorrindo. – Não irei deixar ninguém te fazer mal, nós não iremos não é Ágata?

-Claro que não. – Ágata sorriu.

-Obrigado, gente. – consegui responder é Yancy se afastou, graças a Deus.  – Mas... Yancy, seu pai e o meu são inimigos mortais até onde sei. Isso não é um problema?

Ele deu de ombros.

- Você não é seu pai e eu não sou o meu. – respondeu ele. – Mas tome cuidado, Raoni não vai deixar isso barato.

-Acha que não sabemos disso. – argumentou Robert.

Yancy olhou para ele e o encarou de forma pensativa.

-Como se feriu? – perguntou Yancy.

-Com um feitiço. – respondeu Ágata. – Ele tentou atacar os bestas feras, mas acabou se ferindo também.

-Hum... – respondeu Yancy não parando de encarar Robert que pareceu ficar incomodado.

-Como foi sua pesquisa com John, ele disse que iria ver algo suspeito fora da barreiras você foi com ele. O que descobriram? – perguntou Ágata. Não sabia que eles tinham saído.

Robert se remexeu.

-Acabamos de voltar. As notícias não são boas. – respondeu e de forma calma. – Estava indo me reportar ao meu irmão, mas antes precisava saber se ele estava bem.

Ele se importa comigo, só queria saber o motivo disso me deixar nervoso.

- Bom, Kauê. Vou indo, te espero em nossa Oca. – disse Robert e ele beijou Ágata. – Vou repousar, amor. Como ordenou.

-E fique lá, mais tarde irei te ver. – respondeu ela.

-Tudo bem. Até depois, Yancy. – disse Robert.

Yancy não respondeu, ele apenas acenou com a cabeça. O que será que ele está pensando? Não apenas eu, mas Ágata também parece ter reparado.

-John quer ver você. Ele está muito preocupado. – disse ele.

-Onde ele está? – perguntei.

-Na Oca dele. – respondeu Yancy estendendo a mão.

-Melhor não voarem, Yancy. Vai que uma flecha “acidental” acerta ele. – disse Ágata dando ênfase na palavra “acidental"

-Tenho outro método. – Ele sorriu. – E este método também serve para despistar os cães de guarda do Raoni. Venha também Ágata, eu preciso falar com você sobre um assunto.

-Tudo bem. – respondeu ela.

Dei minha mão para Yancy e Ágata segurou em seu ombro esquerdo. Ele levantou a mão para cima um forte cheiro se ozônio misturado com chuva começou a imbregnar o ar.

- Pode causar enjoou, mas sei que você aguenta. – disse ele apertando mais ainda minha mão. Ela está tão quente.

-Como assim? ...

BARUUM!!

Um raio desceu sobre nós, tudo que senti foi um susto com um leve choque e parece que estou viajando em nuvens! Logo sinto meu corpo pesar e Yancy apertar mais ainda minha mão e quando abro meus olhos, me deparo em frente à uma oca com a cabeça de duas caveiras acopladas em duas lanças. Saía um fogo roxo dos olhos das caveiras.

-Você está bem? – perguntou Yancy rindo.

Eu estou, estou tão bem que desejo vomitar o que como no Jardim de infância agora mesmo!

Ágata também não parecia muito bem.

-Valeu, Yancy, por fazer eu vomitar o meu cérebro! – exclamou ela.

-O que aconteceu? – perguntei totalmente enjoado.

-Tele transporte. Eu posso viajar pelas nuvens em alta velocidade usando um raio. – respondeu ele. – Yagura me ensinou. Não sabia se iria funcionar com vocês.

-Oi? – questionou Ágata. – Ficou maluco?!

-Calma. – Ele sorriu. – Funcionou não é? Certo, Kauê?

- Você é doido. – respondi. - Completamente maluco.

-Talvez. – respondeu ele se aproximando e tocando em meu ombro. – Até depois e por favor, não saia andando sozinho. Está tarde o Conselho irá se reunir. Não sei o que vai acontecer depois que John e eu revelarmos o que descobrimos, mas faremos o impossível para provar sua inocência.

O que ele quer dizer?

-Ok, mas não entendi. – respondi confuso.

- John vai explicar tudo. – mais uma vez ele bateu os dedos na minha testa. – Ágata, venha, por favor.

Ele saiu andando.

- Ele está estranho não está? – perguntei.

-Yancy sempre foi assim. – respondeu Ágata beijando meu rosto. – Voltarei depois de falar com ele, não saia sozinho. Cuidado, Kauê.

-Tudo bem. – respondi.

Ela se foi, andando ao lado de Yancy e eu resolvi entrar na Oca de John.

Dentro da Oca é parecido com a minha, mas bem mais preto e roxo. A iluminação do lugar são tochas acesas com o mesmo fogo roxo das caveiras de fora.  O chão tem um tapete negro com a imagem de uma mulher indígena pintada. No lado direito havia uma rede. O Ábaco que estava na escola está em cima dele uma mesa com alguns livros. Na parede havia uma quadro pendurado, eu me aproximei para ver melhor. É o John e um homem, mas tem algo diferente nele.  Ele está sorrindo e John também.  Será o pai dele? Nas laterais haviam camas e redes com diversos baús, mas a Oca está totalmente vazia. Onde será que está o John?

Falando nele, onde ele está? Yancy disse que ele estava me esperando.

-Oi meu amigo. – disse a voz dele e dei um pulo quando ouvi ela bem perto de meu ouvido. John surgiu do nada, como se estivesse invisível e segurando uma foice. – Desculpa, não quis te assustar.

Eu não acredito nisso, nem eu, e muito menos meu coração super. acelerado.

- Como? Onde estava? – perguntei.

-Aqui, o tempo todo. Invisível. – respondeu ele. – Estava sentado em meditação, tentando entrar contato com minha mãe, mas ela não me responde, nem meus irmãos.

- Que demais! Você pode ficar invisível! – exclamei.

-Sim, mas Yancy pode me ver. Algo irônico não acha. – Ele sorri de canto. – As habilidades sensoriais dele são perfeitas.

Ele foi até a rede e se sentou. Parece cansado.

-Preciso limpar esse lugar. Infelizmente meus irmãos odeiam qualquer tipo de limpeza.  – bufou ele e me olhou de forma curiosa. – Eu observei que você parece ter gostado de nossa decoração.

-Gostei é tudo bem Batman na minha opinião. – respondi e John fez uma careta ajeitando os óculos parecendo estar indignado.

-Batman?! Por favor, Raveena é um elogio muito melhor e adequado. – respondeu ele. – Mas deixando isso de lado.  Como você está? Só te vi uma vez no hospital depois do seu desmaio.

-Estou ótimo. – suspirei. – Com um papai novo e famoso.

-Jamais imaginei que aquele deus fosse seu pai, fiquei surpreso. Podia jurar que você poderia ser meu irmão. – respondeu ele indo até um canto da mesa e colocando a foice encostada.  – Eu estava errado.

-Infelizmente. – murmurei.

- Não veja dessa forma. – respondeu ele. – Você não é seu pai.

-Yancy já me falou isso. – respondi.

- Ele é bom amigo e gosta muito de você. – sorriu ele. – Ele não deixou que Raoni ou qualquer um te fizesse qualquer mal desde do momento que desmaiou. Nenhum de nós deixou.

-E eu agradeço muito por isso. – respondo. – Ele disse que você queria falar comigo.

-Sim, é sobre o que aconteceu comigo no cemitério. – disse ele e as chamas roxas nas tochas pareceram queimar mais intensamente. – Sei que te assustei, pois eu saí assustado. Uma forte energia saiu de dentro da floresta, eu sei que você também sentiu.

-Sim. – parece besteira, mas só lembrar já sinto meus ossos tremerem.

-Um feitiço proibido foi lançado. – diz ele. – Não sei qual, posso dizer a finalidade dele.

-Talvez tenha sido esse feitiço que fez as besta e feras entrarem aqui. – disse eu.

- Talvez. – respondeu ele não parecendo acreditar muito nisso. – Meus irmãos e Yancy pensaram nisso, mas existe outro motivo muito mais preocupante que a sua atual situação. As coisas só irão piorar por aqui.

Ele está me assustando.

-O que você e o Yancy descobriram? – perguntei.

-Um feitiço de ressureição foi lançado. – respondeu ele. – Alguém ou algo profanou os mortos. Algo que raramente os deuses fazem, pois isso desiquilibra a ordem natural da vida é a Morte.

Era o que faltava... alguém querendo brincar de The Walking Dead.

-Sua mãe não pode intervir? – perguntei.

- Não, o feitiço usado não é algo brasileiro. É uma magia antiga, maligna e poderosa. Precisou de uma enorme qualidade de força pra faze-lo. Temo que talvez as coisas só pioram pro seu lado quando o Pajécique saber de tudo isso. – suspirou ele tirando os óculos.

-Por quê?! -  quase gritei. Meu Deus! Chega de problemas pro meu lado!

-Pois seu pai pode ressuscitar os mortos e conhece muitas magias poderosas. – respondeu ele. – Isso nunca aconteceu antes agora com sua presença aqui, sendo quem você é. Só coloca mais evidências sobre você.

-Mas eu não fiz nada! – gritei sentindo meu corpo formigar e chamas roxas explodiram pra cima, assustando John. – Desculpa.

- Não, tudo bem. Seus poderes já estão começando a se manifestar. – respondeu ele. – Isso é bom.

- Bom pra quem? – questionei.

-Eles serão úteis contra o morto ressuscitado. Não se esqueça, seu pai é o deus do submundo. – disse ele com o de fosse uma tarefa simples.

- Você sabe quem foi ressuscitado? – perguntei.

-E esse o problema. Essa notícia vai abalar toda Eldorado, talvez mais do que sua atual situação. Quem foi ressuscitado foi Shishima... o antigo Cacique. O mais forte e poderoso dos últimos 2 séculos...

Livro 1: Kauê e os filhos da Amazônia - O Herdeiro Do SubmundoOnde histórias criam vida. Descubra agora