Capitulo 46

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O relógio na cômoda marcava às duas da manhã. Théo estava adormecido ao meu lado, observei seu rosto angelical e sorri sozinha no escuro do quarto, dentro de algumas horas tudo ficaria bem. Me levantei indo até o banheiro e encarei minha imagem no espelho, as marcas roxas embaixo dos meus olhos pareciam se intensificar a cada dia. Meus cabelos estavam presos em um coque frouxo e descuidado e meu corpo parecia magro e frágil demais. Talvez Renata tivesse razão, eu estava mesmo morrendo por dentro e nem me dei conta disso.
Liguei a torneira deixando uma grande quantidade de água se acumular em minhas mãos e depois passei a água em meu rosto numa tentativa frustrada de melhorar minha aparência morta. Nem ousei me olhar novamente no espelho, apenas enxuguei meu rosto e voltei para o quarto acendendo a luz do abajur. As malas no chão já estavam fechadas desde o dia anterior, uma grande e uma menor, além da bagagem de mão. Algumas coisas eu deixei no apartamento, outras ficariam na casa de Rena , havia muitas lembranças que eu não queria levar comigo.

Saí do quarto com cuidado para não acordar Théo e ouvi um choro baixo vindo do quarto ao lado, Renata . Senti meu coração se estilhaçar, eu estava deixando pra trás algo muito pior que toda uma vida, eu estava deixando pra trás uma pessoa que sempre esteve ao meu lado, tanto nos momentos felizes como nos tristes. A pessoa que mais me apoiou e me deu bronca ao longo dos últimos anos. Deixar ela ali era como deixar uma parte de mim. Uma lágrima desceu livremente por meu rosto e eu respirei fundo caminhando até a porta do outro quarto e dando uma batida leve. O "entre" baixo de Santiago atingiu meus ouvidos como um grito ensurdecedor.
Abri a porta com minhas mãos tremendo e paralisei com a imagem de Renata chorando nos braços de Santiago . Saber que eu era a culpada por aquelas lágrimas que ela derramava era como uma faca enfiada em meu estômago. A dor passava longe de ser suportável, mas eu tinha escolhido aquilo. Eu havia sido egoísta o suficiente para pensar que eu seria a única machucada com toda aquela história. Pisquei meus olhos caindo novamente na realidade e encontrei os olhos magoados de Santiago me encarando.
'Santiago , você pode me ajudar com as malas?' Perguntei sentindo minha voz quebrar na ultima palavra. Ele concordou com um aceno de cabeça, deu um beijo na testa de Rena e se levantou deixando a namorada encolhida na cama passando por mim sem nem me olhar.
Outro soluço de Renata estilhaçou novamente meu coração. Uma lágrima salgada chegou até meus lábios e só então percebi que estava chorando também.
Passei a mão por meu rosto o enxugando e caminhei até a cama hesitando antes de sentar na beirada. Renata se encolheu ainda mais quando estendi minha mão e toquei seu braço. Ela segurou minha mão com força e fungou fortemente me fazendo levar a mão até a boca para controlar um soluço alto. Me aproximei de Rena com cuidado e ela levantou a cabeça fazendo com que todo o ar em meus pulmões sumissem ao encontrar a dor estampada em seus olhos. A abracei com força afundando meu rosto na curva de seu pescoço e ela fez o mesmo comigo.
Renata não falou nenhuma palavra durante todos os quase cinco minutos em que ficamos abraçadas, nós apenas compartilhamos uma dor que ninguém poderia imaginar a dimensão. Ela sabia que não iria adiantar falar qualquer coisa, que nenhuma palavra, nenhum argumento seu me faria voltar atrás. Durante todos os dias desde que decidir ir embora ela tentara em vão me fazer mudar de idéia e ficar em Londres, mas eu sabia o que tinha que fazer. Eu precisava sair dali, dar uma chance a mim mesma de esquecer tudo e tentar recomeçar minha vida longe daquela cidade, daquele país, e principalmente... daquelas lembranças.

Funguei passando a mão por meu rosto molhado e vi Renata fazer o mesmo. Um barulho vindo da porta do quarto chamou nossa atenção e quando me virei pra olhar, vi Santiago passando a mão sem jeito pelo cabelo.
'As malas já estão perto da porta, e eu já chamei o táxi.' Ele sorriu sem vontade e eu acenei com a cabeça agradecendo.
'É melhor eu ir, tá chovendo e eu não quero correr o risco de me atrasar.' Falei baixo e me virei novamente pra Rena . Ela segurou minha mão por alguns segundos e depois se levantou me puxando junto. Fomos em silêncio até o quarto em que Théo estava e eu o observei adormecido sem coragem de acordá-lo. Me aproximei lentamente da cama e me agachei ao lado dele tomando cuidado para não soluçar alto. Passei a mão por seus cabelos enquanto ouvia sua respiração tranqüila. Respirei fundo antes de pegá-lo em meu colo vendo-o despertar sem vontade.
'Mãe?' Sua voz saiu num sussurro e eu beijei sua testa.
'Volta a dormir, meu amor. Tá tudo bem!' O ajeitei em meu colo deitando sua cabeça em meu ombro e esperei alguns instantes para que ele voltasse a dormir.
'O táxi já chegou.' Santiago avisou chegando na porta do quarto.
Olhei pra Rena vendo-a apertar os lábios para controlar o choro e me aproximei dela pegando em sua mão e apertando-a carinhosamente. Caminhamos até a sala que só estava sendo iluminada pela luz fraca do abajur ao lado do sofá e Santiago abriu a porta saindo para chamar o elevador. Abracei Renata com cuidado para não acordar Théo .
'Desculpa.' Minha voz saiu falha e ela me apertou mais no abraço. 'Não esquece nunca que você é uma das pessoas mais importantes da minha vida e que eu não sou nada sem você!' Sussurrei tentando manter minha voz estável. 'Eu amo você.' Beijei sua testa e ela sorriu fraco.
'Também amo você. E eu vou tá sempre aqui torcendo por você e rezando pra você voltar logo!' Ela beijou minha mão e eu sorri. 'Tchau.' Ela sussurrou e eu me afastei de costas até a porta enquanto ela permaneceu parada onde estava. Se eu bem a conhecia, um passo ali e ela desabaria. Quando a porta se fechou e eu levei minha mão até o peito sentindo a dor ficar ainda mais insuportável.
Santiago me observava em silêncio segurando a porta do elevador, senti pena dele quando imaginei o estado em que Renata estaria quando ele voltasse pro apartamento. Théo se mexeu desconfortável em meu colo enquanto eu entrava no elevador e eu me abalancei calmamente para tranqüilizá-lo.
Quando chegamos ao hall vi que a chuva parecia ter ficado ainda mais forte. O porteiro ajudou Santiago com as malas e eles as levaram até o táxi.
'Sabe que eu não me importaria de te levar até o aeroporto, né?' Santiago falou caminhando até mim e eu concordei com um sorriso.
'Eu não iria agüentar.' Balancei a cabeça respirando fundo. 'Brigada, Santiago , por tudo!' O abracei pela cintura e senti seus longos braços me apertarem contra si. 'Durante todos esses anos você sempre foi como um irmão, e eu nunca teria palavras suficientes pra explicar o quanto você significa pra mim.' Sorri mesmo sem ele ver e senti ele depositar um beijo no topo de minha cabeça.
'É bom saber que o que eu sento é recíproco!' Ele se afastou sorrindo e eu percebi que havia lágrimas acumuladas em seus olhos. 'A gente vai tá sempre aqui esperando vocês voltarem.' Ele apontou pra Théo e depois esfregou um olho.
'Não esqueçam de me mandar o convite do casamento, e eu exijo ser madrinha!' Falei brincando e ele riu.
'Acho que isso não vai demorar muito pra acontecer.' Ele admitiu sem graça e eu abri um sorriso enorme e sincero.
'Vocês vão ser sempre minha segunda família.' Segurei forte em sua mão. 'Eu amo você, Santiago , muito mesmo!' Uma lágrima escapou de seus olhos e eu passei a mão por seu rosto.
'Amo você também, irmã!' Ele beijou a palma da minha mão. 'Agora vai lá antes que o taxista te deixe aqui!' Ele apontou para a rua escura do lado de fora e eu concordei.
O olhei uma ultima vez antes de me afastar e sorrir em agradecimento para o porteiro que me esperava com um guarda chuva. Caminhamos até o táxi e antes de fechar a porta pra mim ele desejou uma boa viagem.

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