A verdade era que eu nunca havia conhecido a fundo alguém do sexo masculino. Meu pai era o único homem com quem eu convivi minha vida toda. Claro que eu tinha vizinhos, andava com o restante das crianças que moravam perto de minha casa. Mas, depois que cresci não tinha mais coragem de me aproximar.
Os meninos com quem brinquei durante minha infância cresceram assim como eu, mas viraram garotos ignorantes, dos quais papai me mandava manter distância.
John, meu vizinho do lado, havia sido o primeiro que havia feito meu coração palpitar quando se aproximou num dia em que eu havia ignorado as ordens de meu pai. Lembrava-me perfeitamente de quando senti seus lábios grandes sobre os meus. Apesar de todo o momento mágico que foi meu primeiro contato com garotos, ele não perdeu a oportunidade de estragar tudo.
Quando dei por mim já ia correndo para casa indo de encontro a minha mãe, chorando assustada. Mamãe riu de minha reação e me disse que garotos eram mesmo apressados daquele jeito e que não havia motivo para me envergonhar de tê-lo afastado e corrido.
Ele era quem devia se envergonhar de agarrar uma garota daquela maneira sem a permissão dela. Lembrava-me como se tivesse acabado de acontecer, o modo como me debati em seus braços chorando enquanto ele passava as mãos pelo meu corpo.
Eu ainda não gostava de garotos. Mas depois que descobri o que os homens mais velhos costumavam fazer usando armas e explosivos, não conseguia odiá-los tanto.
Mas apesar de minha experiência ruim, eu ainda sonhava junto de minha mãe, o dia em que eu usaria o vestido que ela usou em seu casamento duradouro com meu pai.
Me perguntava se algum dia eu teria a sorte dela de encontrar um homem como meu pai. Ouvia as histórias contadas por ela de quando eram mais jovens, suspirava imaginando se algum dia eu iria encontrar alguém assim. Porém com tempos como aqueles era difícil pensar no futuro, tão incerto quanto o nosso presente naquele momento.
O cair da noite veio e com ele uma sensação estranha veio junto dela, a de que o tempo estava passando tão devagar que chegava a se arrastar. Eu não sabia dizer se era pelo fato de estar ali, trancada no meio do nada esperando notícias que nem sabia se chegariam.
— Fechem bem as janelas, vai cair um temporal. — Ajudei Cornélia a trancar as quatro que haviam nos quartos. A chuva já começava a cair, trazendo consigo uma forte ventania.
Coloquei Harriet na cama, enquanto Elizabeth ajeitava o cobertor de Amelie, que já estava sonolenta. Dei boa noite as três sob o olhar analítico de Juliet, parada na soleira da porta. Deixamos o quarto após fechar a porta deixando apenas uma fresta de luz, que vinha da vidraça do fim do corredor.
Segui para o meu quarto junto de Cornélia, despedindo-me da mais velha. Após me despir de meu casaco, aconcheguei-me entre os cobertores, preparando-me para fazer minha prece costumeira, pedir proteção não apenas para mim e minhas companheiras, mas também aos meus pais. Fui interrompida pela luz sendo acesa de repente pela menina, que ainda se encontrava sentada na cama.
— O que foi? — A encarei, vendo seu semblante preocupado.
— Juliet disse que invadiram o porto. Beth me disse algo...que me deixou com medo. — Abraçou os próprios joelhos, com os olhos marejados.
— Não ligue para o que Beth diz, ela apenas quis te colocar medo. Seu irmão vai ficar bem. — Fui até a mais nova, abraçando-a de lado.
A verdade era que não tinha como saber detalhes do ataque. Estávamos no escuro ali, Juliet não tinha acesso a detalhes, nomes de sobreviventes ou mortos nem ao menos o número de vítimas. Cornélia havia se despedido não apenas dos pais, mas também do irmão mais velho, que havia sido convocado para defender a União Soviética. Imaginava como estava seu coração, a situação dela comparada a minha era muito pior.
Nikolai era membro da marinha, participava dos ataques feitos pelos navios e submarinos nas batalhas navais. Havia a possibilidade de que Nikolai talvez estivesse no porto quando os ingleses chegaram, mas ele também poderia não estar ou ter saído vivo do ataque.
— Temos que pensar positivo. Ter fé. — Cornélia me abraçou, molhando meu ombro com suas lágrimas. — Olha, não sabemos nem se ele estava no porto! São tantas possibilidades, querida. — Sequei suas lágrimas. — Elizabeth apenas fez um comentário infeliz, não ligue para o que ela fala.
— Mas e se ela estiver certa, Grace? E se meu irmão estiver morto? — Teimou a menina.
— O que você sente aqui dentro? — Toquei seu coração, que batia num ritmo calmo por debaixo do pijama fofinho.
— Como assim, o que eu sinto? Eu não sei! Só sei que estou preocupada com ele, com minha mãe, com minha casa que deixei para trás, com tudo! — Disparou a falar, desesperada.
— Eu sinto em meu coração que as coisas vão mudar. — Interrompi seu pequeno surto atraindo sua atenção para mim. — Sabe porque? Porque algo me diz que meus pais estão bem, eu posso senti-los aqui dentro! — Sentia meu coração palpitar, só de imaginar que aquilo o que eu falava podia ser real. — Permita-se sentir, Cornélia! — Lhe sorri, recebendo um pequeno riso de descrença da mais nova.
— Eu não sei sentir isso, Grace. — Lamentou-se. Neguei com a cabeça discordando. — Nikolai nunca foi próximo a mim como você é com seus pais. Ele e a mamãe não são carinhosos, não depois que o pai morreu.
— Não importa se eles não te ensinaram a sentir, bobinha. — Trombei meu ombro com o dela. — Você sente por si própria. Olhe, quando eles estão tristes você não fica triste também? — Cornélia assentiu. — E você escolhe imitá-los ou fica por vê-los tristes?
— Por ver que estão tristes. — Encolheu os ombros.
— Então! Se consegue senti-los quando estão tristes, felizes ou preocupados, significa que consegue senti-los!
— Mas eu nem ao menos sei onde eles estão!
— Isso não importa! A distância é apenas um detalhe quando se ama alguém de verdade, ela não altera o sentimento. — Desdenhei. — Uma vez, enquanto eu passava o Natal em Sussex com meus avós, senti um aperto enorme dentro do peito, fiquei o dia inteirinho com aquela sensação ruim. Quando voltei para casa após o ano novo, soube que meu pai tinha sofrido um AVC bem no dia em que eu senti aquela dorzinha no coração. Vai me dizer que foi apenas coincidência?
— Não sei não Grace. — Revirei os olhos diante de sua implicância. Ouvimos passos no corredor, um jeito sutil de Juliet de nos mandar fechar a boca e ir dormir.
Ri baixinho enquanto ajeitava seus cobertores em cima de seu corpo esguio. Não me importava se ela não acreditava, mamãe também havia me olhado como se eu fosse louca quando a contei. Eu podia senti-los, como gêmeos que sentiam quando o outro estava em perigo. Tínhamos muito mais do que nove meses juntos na mesma barriga, meus pais e eu tínhamos um laço de sangue e anos juntos que nos conectava mesmo a milhas e milhas de distância.
Deitei-me e logo me revirei na cama, ficando virada para a parede. Se continuasse encarando os olhos grandes e negros de Cornélia, ficaríamos acordadas a noite toda papeando, eu sabia que ela não dormiria tão cedo, imersa em paranoias e pensamentos, mas me juntar a ela não ajudaria. Tínhamos tarefas a fazer no dia seguinte, e Juliet odiava quando fazíamos corpo mole.
Acordei com sede, como sempre. Todas as noites, às quatro da manhã, eu me levantava num completo silêncio indo até a cozinha beber água. Eu já havia decorado o caminho, podia fazê-lo de olhos fechados, ou mesmo tonta de sono. Perambulava pela casa no escuro, sem produzir um ruído sequer, a fim de não acordar ninguém.
Apoiava o corpo no balcão de madeira da cozinha, enquanto saboreava a água, que estava mais gelada que o normal por conta da temperatura baixa que fazia do lado de fora. Eu podia perfeitamente ouvir a chuva cair, cada vez mais devagar e amena, fazendo-me apressar em voltar para o aconchego de minha cama a fim de aproveitar mais algum tempo de sono até que amanhecesse.
Um barulho abafado me chamou a atenção, parecia-se com uma trovoada forte, como as que o céu emitiu no começo do temporal. Duas luzes fracas piscavam ao alto, fazendo-me inclinar meu corpo até a janela e puxar uma das finas cortinas brancas a fim de ver o que diabos era aquilo. Estreitei os olhos vendo o objeto grande ir perdendo altitude e ir ao chão no matagal próximo da casa, deixando um rastro de fumaça negra.

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The enemy | H.S.
RomanceO ano é 1940, o mundo vive os horrores da Segunda guerra mundial. Com temperaturas insuportavelmente baixas, a União Soviética decide ordenar que todos deixem suas casas e destruam qualquer coisa que possa ser proveitosa ao inimigo. Grace Dubrov é l...