Capítulo 34

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Atirei furiosamente o despertador ao chão. Não queria acordar, não queria estar ali, queria voltar para casa. Desde que tinha acordado do coma que nunca tinha pensado assim, mas agora estava a ser complicado aguentar-me aqui.  A minha sorte eram os rapazes que estavam nesse preciso momento a chegar ao aeroporto.

Sonhei com o acidente. Com os gritos de Kelly, os braços de Luke a tentar salvar-me do carro que veio contra nós. De Michael e Wesley cobertos de sangue e caras desfiguradas. Dei-me um safanão mental e levantei-me, indo para a frente do espelho pentear o cabelo, que estava com um aspecto bastante assustador. Enquanto olhava para o meu aspecto no espelho, a imagem assombrosa dos meus amigos cobertos de sangue aparecia-me diante dos olhos. Apetecia-me espancar Luke por causa disso. Se não fosse ele, o meu subconsciente não estaria a ressuscitar imagens escondidas no fundo da minha memória. Que linda primeira memória dos meus amigos.

Liguei para a central de táxis e pedi que um me viesse buscar, e enquanto esperava permiti-me pensar um pouco no que estava a acontecer. Acho que nunca tinha visto Luke assim, e apesar de não poder ter a certeza, quase que a tenho. Algo dentro de mim diz que a tenho. Ele excedeu todos os limites, quase que se atirou para cima de mim, momentos depois de termos feito as pazes. Como poderia eu ter-me apaixonado por alguém com aquele temperamento? Essa pergunta circulava na minha cabeça, e acho que a resposta era essa mesmo: eu não sabia que ele era assim. As palavras da sua mãe percorriam-me a mente, quando ela me disse que consoante as experiências que experimentamos na vida vamos demonstrando quem realmente somos. E se Luke fosse a pessoa que ele demonstrou ser hoje? Se ele realmente fervesse em tão pouca água e perdesse a cabeça tão rapidamente, não sei se irei aguentar o resto da vida com alguém assim. Aliás, nem sei bem o que iria acontecer se Josh e Daniel não tivessem aparecido no momento certo.

Fui acordada do meu mar de pensamentos quando o taxista apitou. Entrei com a minha mala e o telemóvel na mão, caso não fosse Brad ou um dos rapazes ligar a dizer a sua localização.

- Boa tarde menina, para onde deseja ir? - o senhor, que me fazia lembrar o meu avô da parte do pai com uma grande barriga e cara simpática, perguntou-me.

O meu avô da parte do pai? O quê?

Sorri perante a simpatia do homem, mas também da lembrança.

- Boa tarde, queria ir para o aeroporto por favor. - sorri-lhe enquanto prendia o cinto.

O senhor parecia que estava a precisar de falar com alguém, e eu precisava de ouvir alguém para não pensar apenas em mim. Assim, juntando o útil ao agradável, lá fomos o caminho todo a conversar sobre a vida do senhor: os filhos que o abandonaram, indo os dois rapazes já adultos viver para os Estados Unidos; a sua mulher abandonou-o para namorar com um rapaz brasileiro da idade do seu filho mais novo, que provavelmente só quer o seu dinheiro. O coitado do homem estava apenas à sua sorte, com o dinheiro que tinha do táxi e da reforma. Quando lhe perguntei porque é que não deixava o táxi, que não rendia assim tanto e que provavelmente o dinheiro nem era preciso, visto que o homem não tinha grandes vícios, dirigiu-me um sorriso amável, já estacionando, e respondeu:

- Minha querida menina, fique sabendo que não é o dinheiro que o táxi me dá que me faz continuar a levantar às seis da manhã para me pôr na estrada: são as histórias e a companhia. Companhia porque me sinto demasiado sozinho em casa e, se continuasse lá com a minha reforma, provavelmente daria em louco. E histórias porque, de vez em quando, encontro pessoas como você, que estão dispostas a ouvir histórias de uma pessoa velha e sábia da vida como eu, ou então que gostam de conversar sobre a sua vida, e eu limito-me a ouvir e comentar. Gosto das pessoas, vivo para as pessoas. Se não fossem as pessoas que seguem neste táxi todos os dias, eu seria um homem morto.

Amnesia {portuguese}Onde histórias criam vida. Descubra agora