CAPÍTULO 48

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A fuga de Sikes

De todas as coisas ruins que aconteceram na grande Londres naquela noite, aquela tinha sido a mais abominável e cruel.

O brilhante sol iluminou a sala onde estava a mulher assassinada. O homem não se movera. Tivera medo. Houve um gemido e um mexer de mão, e, com terror e raiva misturados, ele havia batido e batido novamente. Então jogou um tapete sobre o corpo, mas foi pior. Tirou-o. E lá estava apenas carne e sangue!

Ele acendeu o fogo e queimou o taco. Lavou-se e esfregou suas roupas. E, em todo esse tempo, não virou as costas para o corpo nem uma vez. Então saiu da casa. De costas.

Atravessou a rua e olhou para a janela. Tinha sido um alívio sentir-se livre da sala. Assoviou para o cachorro e foi rapidamente para longe.

Passou por Islington. Subiu a colina de Highgate, onde ficava a pedra em homenagem a Whittington, desceu para Highgate Hill, sem saber o que fazer ou aonde ir. Fez uma longa caminhada até campos saudáveis de North End, onde se deitou debaixo de uma cerca viva e dormiu.

Logo estava novamente andando de volta em direção a Londres pela estrada principal, e de volta, por uma outra parte de um mesmo lugar que já atravessara. Então de um lado para o outro pelos campos, e descansando a beira de valas, e levantando-se para ir até um outro ponto. E de novo.

Não comia ou bebia havia muitas horas e não sabia para onde ir.

Vagou por milhas e milhas e voltou para o mesmo lugar. Manhã e tarde haviam passado e o dia estava acabando. Finalmente traçou seu rumo para Hartfield.

Eram nove da noite quando o homem e o cachorro, bem cansados, viraram o vale do tranquilo vilarejo e entraram em uma taverna. Havia uma lareira no bar, e alguns trabalhadores do campo estavam bebendo. Sentou-se no canto mais afastado. Comeu e bebeu.

A conversa dos homens reunidos ali era sobre as terras e fazendeiros. Nada com o que se alarmar. O ladrão pagou sua conta e ficou sentado em seu canto. Estava quase caindo no sono quando foi despertado pela entrada barulhenta de um recém-chegado.

Era um camarada grotesco, meio mascate, meio charlatão, que viajava pelo campo a pé, vendendo todo tipo de bugiganga, que carregava em uma caixa presa às suas costas. Ele jantou e abriu sua caixa de tesouros, misturando negócios com diversão.

– Isto – falou o homem pegando um cubo que parecia um pedaço de bolo –, isto é um composto infalível para tirar qualquer tipo de mancha, ferrugem, sujeira, mofo, tinta ou respingo, em seda, cetim, linho, cambraia, roupa, crepe, coisas, carpete, lã, musselina, algodão, sangue! Eis uma mancha no chapéu do cavalheiro – apontou para Sikes. – Vou limpá-la mais rápido do que ele pede uma cerveja para mim.

Sikes derrubou a mesa e, arrancando o chapéu da mão dele, saiu do lugar.

Com o mesmo sentimento de indecisão que o havia perseguido o dia inteiro, deu as costas ao vilarejo. Viu o brilho das luzes de uma carruagem que estava parada na rua, e reconheceu o carteiro de Londres. Atravessou e ficou ouvindo.

O guarda estava em pé na porta. Um homem, vestido como um guarda-caça, saiu e ele lhe entregou uma cesta que estava no chão.

– Alguma novidade na cidade, Ben? – perguntou o guarda-caça.

– O milho subiu um pouco – respondeu o homem. – E ouvi falarem de um assassinato, no caminho de Spitalfields, mas não sei muito sobre isso.

– Ah, verdade – falou o cavalheiro que estava dentro da carruagem. – Um terrível assassinato. Uma mulher.

Mas a buzina soou, o coche partiu, e Sikes ficou em pé na rua, agitado, sem saber para onde ir.

Seguiu obstinadamente até deixar a cidade, e, quando mergulhou na solidão e escuridão da estrada, sentiu um pavor que o abalou até a raiz. Cada objeto à sua frente assumiu a semelhança de algo temeroso. Mas não eram nada se comparados a sensação daquela figura fantasmagórica seguindo seus passos, que o assombrava. Podia ouvir suas roupas roçando nas folhas, e cada sopro de vento parecia seu último choro. Se parasse, era a mesma coisa. Se corresse, o seguia.

Às vezes se virava com determinação desesperada e resolvia espantar o fantasma, seu sangue congelava, pois continuava à sua frente e nas suas costas. Manteve-se em sua cabeça, silencioso, ereto e parado: uma lápide viva com o epitáfio escrito em sangue.

Um galpão em um campo oferecia abrigo para a noite. Não podia andar mais até que a luz do dia chegasse, e ali se esticou perto da parede, para submeter-se a nova tortura.

Primeiro, a visão daqueles olhos esbugalhados, tão sem brilho e vidrados, que apareciam no meio da escuridão, iluminados, mas não iluminando. E estavam em todos os lugares. Ele levantou-se e correu pelo campo. A figura atrás dele. Entrou novamente no galpão e encolheu-se mais uma vez. Os olhos estavam lá.

E ali permaneceu aterrorizado, quando de repente ouviu o barulho de gritos distantes. Recuperou a força ao prospectar perigo e correu para o campo aberto.

Erguendo-se no ar com chuvas de fagulhas e subindo uma após a outra, labaredas iluminavam a atmosfera por milhas ao redor e soltavam nuvens de fumaça na direção onde ele estava. Conseguiu distinguir o grito de Fogo! misturado ao som de um sino. Havia gente ali, homens e mulheres, luz, alvoroço. Era como uma nova vida. Correu naquela direção.

Havia pessoas correndo de um lado para o outro, tentando tirar cavalos dos estábulos, afastando o gado e algumas saindo do lugar que ardia. Paredes racharam e desmoronaram. Mulheres e crianças gritavam, e homens encorajavam uns aos outros. Ele gritou até ficar rouco e, fugindo da lembrança e de si mesmo, mergulhou na multidão. Ora trabalhando nas bombas, ora correndo por causa da fumaça, mas nunca deixando de estar onde os homens e o barulho fossem mais intensos.

Essa louca excitação acabada fez retornar com toda força a consciência de seu crime. Olhou com suspeita ao seu redor. Alguns homens que estavam sentados chamaram-no para compartilhar o que comiam. Pegou um pouco de pão e carne e tomou um gole de cerveja, ouviu os bombeiros, que eram de Londres, falando sobre o assassinato.

– Dizem que foi para Birmingham – comentou um –, mas ainda não o pegaram. Até amanhã à noite haverá um alerta em todo o país.

Saiu rapidamente e andou até quase cair no chão. Estava vagando de novo, irresoluto e indeciso, oprimido pelo medo de outra noite solitária.

De repente, tomou a decisão desesperada de voltar a Londres.

Agiu por impulso. Mas havia o cachorro. Se qualquer descrição sua tivesse sido espalhada, certamente incluiria o cachorro. Decidiu afogá-lo e procurou um lago. Pegou uma pedra pesada e a amarrou ao seu lenço.

Se por causa do instinto, ou se porque o olhar do ladrão estava mais ameaçador do que o normal, o cão encolheu-se quando ele diminuiu o passo. O dono avistou um charco e o chamou.

– Venha!

E quando Sikes se abaixou para amarrar o lenço em seu pescoço, ele rosnou baixinho, andou para trás e fugiu correndo.

O homem assoviou diversas vezes. Mas cão nenhum apareceu, e ele retomou sua jornada.

Oliver Twist (1838)Onde histórias criam vida. Descubra agora