I - Quando a desgraça é completa

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Retirou o pacote de cigarros amarrotado do bolso de trás das calças de ganga rasgadas nos joelhos. Não as usava assim por causa da moda recente de estraçalhar a roupa, num estilo forçado de rebelde despreocupado e elegante, ou coisa parecida. Usava aquelas calças velhas porque não tinha outras, nem tinha dinheiro para comprar umas novas. Deu algumas fungadelas. Também precisava de as lavar, mas não tinha máquina de lavar roupa no minúsculo quarto onde vivia e o magro salário, um salário miserável na verdade, não dava para ir experimentar uma daquelas lavandarias de self-service, em que as paredes se cobriam de máquinas gigantescas, brilhantes, tantos botões como a consola de uma nave espacial, com uns tambores tão grandes que dava para enfiar alguém lá dentro.

Agarrou no pacote, sacudiu-o, puxou um cigarro com os dentes. Enfiou a ponta de dois dedos no seu interior, encontrou o isqueiro vermelho. Acendeu o cigarro e puxou uma passa.

A nicotina salvava-o. Podiam alegar que ele deveria era gastar o dinheiro do vício no tabaco no tal par de calças novas, ou na lavandaria, mas andar bem vestido ou lavado não lhe dava o mesmo prazer, o mesmo refúgio de um cigarro. Bem, com as conquistas amorosas já era um problema, apesar de as mulheres serem tão fúteis que achavam que ele estaria bem vestido assim todo roto. Já a falta de limpeza afastava até a mais estúpida das tipas. O fumo do cigarro ajudou a disfarçar o odor peculiar e sebento da sua roupa. Enfiou o nariz no sovaco. Ainda tinha dinheiro para comprar desodorizante e aí não cheirava mal. O pivete a suor era-lhe insuportável e nesse departamento ele tinha algum cuidado. Não podiam faltar cigarros, nem desodorizante.

Envolveu o filtro com os lábios, sugou-o demoradamente, travando o fumo na garganta. A seguir expeliu-o pelo nariz, mostrando o seu domínio da técnica. O ato de fumar deixava-o pensativo e nostálgico, até um certo ponto. Subtraía-o do ambiente sombrio onde ele vogava sem um rumo à vista. Estava perdido? Um pouco... Mais do que um pouco, talvez muito. Queria fazer qualquer coisa de diferente mas nem sabia bem o quê. E se fosse comprar umas calças de ganga novas? Empenhava parte do salário que ainda iria receber, dali a dez dias, quando chegasse o dia de pagamento e iria telefonar a uma mulher que tinha conhecido no outro dia, quando fora ao talho comprar salsichas... E teria saldo no telemóvel, pensou intrigado? Provavelmente não...

Que se deixasse de loucuras! Precisava do dinheiro que lhe restava para comer, não para devaneios de consumismo. Comprar umas calças... Francamente! Aquelas estavam perfeitamente bem e adequadas ao que se usava naquela estação. Os rasgões até lhe davam um aspeto mais sensual, não fossem os seus joelhos serem demasiado ossudos.

Puxou uma terceira passa, sorrindo com os seus pensamentos doidos.

Uma música instrumental, elaborada com guitarras, elétricas e acústicas, um piano muito suave a sublinhar a melodia, evolou-se na lonjura. Apurou o ouvido. Se havia outra coisa que o retirava do seu quotidiano aborrecido era a música, qualquer que esta fosse, embora preferisse, de longe, a simplicidade do rock 'n roll.

Começou a murmurar para acompanhar a música...

Lembrou-se que a sua guitarra estava ainda mais velha do que as calças surradas. Tinha-a furtado a um rapazola distraído, durante um daqueles festivais locais em que se apresentavam bandas jovens e promissoras. Fora ouvir, não se cobrava entrada, caso contrário ele não tinha como pagar um bilhete. Saíra desiludido pois o talento era quase inexistente no punhado de grupos que se fizera presente no pequeno palco de madeira. Compensara o tempo que tinha perdido naquele jardim, ao entardecer, a escutar meninos esganiçados ao reparar numa guitarra abandonada. Colocou-a a tiracolo e saiu sem que ninguém lhe chamasse a atenção. De resto andavam tipos como ele a vogar pelo sítio com guitarras, com um ar displicente e pedante, ele passou por mais um músico.

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