Capítulo 54

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Quando o sol começou a se esconder no horizonte, eu já estava pronta, havia tomado um banho relaxante, feito os curativos nos machucados que tive durante os treinamentos, nada demais, apenas arranhões, pequenos cortes, coisas leves.

Fiz uma boa refeição, precisava sempre me manter firme e forte, precisava ter energia para aguentar o ritmo dos treinamentos e não me deixar levar pelo meu psicológico fodido, eu sentia falta de casa, eu sentia falta de todos, sentia falta da minha rotina melancólica antes dos caras, sentia falta de tudo mesmo, ou quase tudo.

Estava sentada em uma poltrona na varanda do meu quarto, olhando para a paisagem que já estava acostumada a olhar, sabia exatamente o lugar de cada pedra, cada folha de grama, sabia quando algo havia sido movimentado ou cortado, de tão acostumada que estava com essa visão.

Duas batidas na porta anunciavam que meus convidados haviam chego, e havia chegado a hora de revelar tudo, para dar o próximo passo na vida, precisamos as vezes mexer em nosso passado para nos libertar de amarras que nos impedem de seguir a diante.

Vou até a porta dando espaço para que entrassem, sinalizei para que fossem até a varanda, seria mais fácil conversar lá, o plano seria falar tudo o que tinha que contar, olhando para a paisagem, como se estivesse contando um segredo para o vento.

Tranco a porta para não haver alguma invasão indesejada, seguimos os três até as cadeiras da varanda.

- Peço que apenas escutem, não perguntem nada, deixem que eu apenas fale tudo o que tenho a falar, depois podem falar o que quiserem, perguntar o que precisar, mas me deixem colocar tudo para fora de uma vez, sem interrupção, pois não sei se terei coragem suficiente para falar tudo se tiver cortes.

Os dois concordaram apenas com um aceno.

Sentei em uma cadeira no canto da varanda, olhando para frente, respirei fundo algumas vezes, nunca é fácil lembrar de tudo, nunca é fácil lembrar de coisas que te machucam.

- Meus pais nunca quiserem ter filhos, eu nasci de um "acidente", hoje sei que meus primeiros anos passei com meu irmão, porém eu não lembrava disso e eles também nunca mencionaram nada sobre ele, pelo menos não falaram para mim no tempo que tenho lembranças, então seguirei a história a partir do que eu recordo, desde criança, meus pais nunca me trataram como uma filha mesmo, era apenas um ser que estava ali, uma obrigação, eu não entendia porque me seguraram ali, poderiam ter me dado para alguém criar, ou casa de adoção, mas hoje sei que foi meu irmão que pagou eles para cuidarem de mim, apesar deles nunca terem realmente cuidado como filha,  mas nunca deixaram faltar nada sabe, sempre tive roupas, escola, comida, só não tinha amor, uma base familiar.

Faço uma pausa, lembrar da minha infância sempre foi doloroso, era uma criança que não se encaixava, não me sentia amada, não era uma criança normal, não me sentia normal.

- Então sempre tentei, pelo menos, não chamar a atenção para mim, no caso em si a atenção que falo era o ódio, eu tentava passar despercebida em qualquer lugar, principalmente em casa, fui crescendo, na adolescência as coisas pioraram, quando criança eu era só uma coisinha na casa, apanhava as vezes por nada, tipo saco de pancadas, de um pós dia merda deles, mas nada demais, eu aguentava, mas depois eu fui sendo a escrava deles, na limpeza principalmente, e nos insultos e agressões, até o ponto que ele tentou abusar de mim, disse que eu tinha que servir para algo, no desespero eu fiz um acordo, eu conseguiria garotas para ele, claro que teria que pagar um valor para cada uma para que comprasse o silêncio delas, e em troca ele me deixaria em paz.

Lágrimas teimosas escorriam pelo meu rosto, mas eu estava séria, as lágrimas tinham sua vida própria, deixei que o vento as secassem, dei uma risada amarga.

- Eu não sabia que tinha gente cuidando de mim, eu não sabia que meu irmão estava lá fora caso eu precisasse, e eles nunca deixaram que o que acontecia naquela casa saísse de lá, para o resto do mundo era uma família normal como qualquer outra, eles sempre atingiam onde não era visível, então ninguém nunca percebeu, até porque ninguém era próximo o bastante para perceber que tinham coisas estranhas acontecendo, afinal eu era estranha pra todos e então eu ser daquele jeito era o meu normal.

Dei uma respirada profunda, desanimada.

- Então eu preparei um plano, várias garotas da minha escola, aceitavam fazer coisas questionáveis por dinheiro, então a ideia era convencer que elas fizessem o trabalho que queriam que eu fizesse, sim eu aliciava garotas da escola para fazer trabalhos sexuais para meu pai e sei lá mais quem, eu nunca quis saber o que acontecia de verdade, eu convencia a garota, combinava data, horário e local, e nunca mais falava com a garota, até porque nenhuma delas voltava a trocar mais de uma palavra comigo, então eu já não tinha amigos e com isso, afastei ainda mais as pessoas de perto de mim, então eu fiquei trocando de escola diversas vezes, para que eu tivesse mais opções para nunca chegar a ser a minha vez, eu tinha que manter ele ocupado com qualquer outra que não fosse eu, a mira tinha que estar longe de mim, até meus dezoito anos, ali eles desapareceram, e foi quando meu irmão voltou para minha vida e hoje eu me sinto tão culpada,

Olho para minhas mãos que tremiam desesperadamente, eu estava entrando em uma crise de ansiedade, mas eu precisava terminar de falar sobre isso.

- Sim, eu era como se fosse um cafetão, de menores de idade com caras que poderiam ser pai delas, tudo para tirar o alvo das minhas costas, se eu soubesse que meu irmão pagava eles para que ficassem comigo, que ele cuidava de mim jamais teria feito algo do tipo, eu teria corrido para ele, pedido ajuda, sinto tanta culpa, eu posso ter arruinado a vida de muitas garotas, não,  eu realmente arruinei a vida de muitas garotas, eu só pensei em mim, nunca fui nem atrás saber o que acontecia, talvez eu pudesse ter evitado, eu poderia ter feito muitas coisas para não destruir a vida delas, eu fui tão idiota, tão egoísta, tão filha da puta, eu realmente sou bem filha do meu pai, eu odiava tanto ele, e no fim, eu era igual, eu só queria poder fazer algo pra amenizar o estrago que fiz.

LunaOnde histórias criam vida. Descubra agora