Capítulo-7

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Estou no Bairro da Luz Vermelha, em Amsterdã. Acaba de anoitecer e eu caminho ao longo do sinuoso canal Achterburgwal Oudezijds, tentando descobrir como é que as pessoas se comunicam usando esse idioma. Eu mal consigo passar da primeira sílaba. Não ajuda em nada o fato de ter saído agora pouco do café Êxtase, onde provei uma coisa chamada Viúva Branca.

Geralmente tento evitar álcool ou maconha ou chá de cogumelo psicodélico com mel e gengibre, mas não venho a Amsterdã desde a Guerra do Vietnã, e algo mudou desde a minha última visita. E quem entrou na água é pra se molhar...

Do outro lado do canal, há um letreiro sob uma porta fechada que diz, SHOW PORNÔ AO VIVO. Ao lado, uma série de degraus conduzem a uma janela com um anúncio em néon, Cannabis College. Mais acima do canal, você pode visitar o Museu da Maconha e o Banco Sensi Seed de sementes aprimoradas, antes de ir para alguma casa de prostituição legalizada.

Começo a me perguntar por que ainda continuo vivendo em Manhattan. Do lado do canal onde estou, portas abertas com luzes vermelhas sob o batente e cortinas também vermelhas levantadas, mostrando mulheres de vários tipos e cores de cabelo, todas chamando os homens que passam. Algumas das portas estão fechadas, da mesma forma que as cortinas permanecem descidas vedando o vidro, e a luz apagada, indicando que a ocupante está temporariamente ocupada.

Um jovem casal francês bem na minha frente discute se deve ou não perguntar a uma das prostitutas se ela estaria interessada em um triângulo. A mulher, uma estudante de dezenove anos, de Paris, vai acabar com licenciatura em comunicação e um doutorado em relacionamentos fracassados, enquanto seu namorado, um estudante de história de vinte e um anos, está condenado a repetir a mesma dose. Eu não posso ajudar, só dar risada.

O casal olha na minha direção e o cara me chama de imbecil em francês. Aparentemente, eu esqueci que não estava invisível.

Talvez não tenha sido lá uma grande idéia ficar chapado antes do trabalho.

Dou uma guinada e me afasto do casal, seguindo pelo canal, depois de passar pelo Museu da Maconha e por um rapaz virgem de vinte e oito anos, de Branson, Missouri, que vai acabar se apaixonando pela primeira prostituta com quem dormir, até eu chegar a um beco onde posso ficar Invisível sem chamar nenhuma atenção. Uma espécie de Clark Kent procurando um lugar discreto para se transformar em Super-Homem; só que eu não estou aqui exatamente para salvar ninguém.

Sempre fiquei imaginando como seria ser um super-herói, dotado de poderes que eu poderia usar para ajudar donzelas em perigo ou impedir l a ação de vilões e criminosos. Mas não acredito que minha personalidade seria adequada para evocar um sentimento de segurança. Capitão Fado. Homem Fatal. Senhor Fatalista. Além disso, não acho que eu ficaria bem de collant e meia-calça. No meio do beco, percebo que não estou sozinho. Também noto que não há como atravessar para o outro lado.

Quando me viro nas sombras que se estendem até a entrada do beco, vejo o perfil de Nicolas Jansen, um rapaz de vinte e quatro anos. Embora não possa ver o rosto dele, sei que ele vai passar a maior parte das próximas duas décadas da sua vida entrando e saindo da prisão e do centro de reabilitação para drogados sem que isso faça alguma diferença.

— O que é que há? —, ele diz com um sotaque holandês, andando em minha direção.

Eu não costumo ter muitas interações com os seres humanos, especialmente desse tipo, e considerando que fico admirado com a inépcia global da própria espécie, não é surpreendente que as minhas habilidades como pessoa estejam um pouco enferrujadas.

- Sai daqui- ,eu digo. Ele hesita, momentaneamente pego de surpresa, por minha reação. Mas a confunde com urna simples bravata e reduz a distância entre nós. — Saio quando eu quiser —, diz ele sacando um estilete. Não que eu esteja preocupado com a possibilidade de ser ferido ou morto. Com certeza ele pode causar algum dano sério à minha vestimenta humana, mas eu posso simplesmente fazer com que Engenhosidade me providencie outra. A que eu estou usando, aliás, já está bem gasta, o que não é nada estranho, pois estou nela desde a Reforma.

Mas não quero ter de lidar com a possibilidade de ser assaltado e esfaqueado agora, especialmente porque acabo de ficar alto e iria cortar mesmo meu barato.

Além disso, ainda quero visitar a Casa de Anne Frank. — Dá aqui sua carteira —, diz ele.

— Não tenho um tostão —, eu falo. O que não é verdade. Além do meu próprio dinheiro, Preguiça me deu cem dólares, pedindo que eu lhe trouxesse um baseado dos bons.

— Passa a porra da sua carteira —, ele insiste, brandindo o estilete para enfatizar a ordem.

Posso ver o rosto de Nicolas Jansen agora, jovem e nervoso, a alguns dias de distância de seu último barbear. Ele ainda não foi consumido por seu estilo de vida, mas isso já começou a devorá-lo e lentamente está sugando a sua vontade até a medula.

Eu poderia simplesmente dar a ele minha carteira e deixá-lo seguir adiante rumo a sua espiral descendente para o desespero e o fracasso, mas realmente não quero lidar com o cancelamento de meu cartão de crédito internacional nem com a necessidade de uma nova foto para a carteira de identidade. Eu odeio ter de lidar com qualquer burocracia.

Posso inclusive simplesmente reverter o que vim fazer aqui e voltar a ficar invisível. Basta um piscar de olhos. Mas isso é proibido, como o Heroísmo, desde o fiasco de Joana D'Arc.

Regra #6: Nunca se desmaterialize na frente dos seres humanos.

Por outro lado, eu poderia tentar dissuadi-lo, argumentando que não é tarde demais, que ele ainda pode fazer algo por si mesmo, ainda que sua melhor perspectiva seja trabalhar no departamento de saneamento básico. Mas isso seria interferir. Envolver-se.

Em vez disso eu escolho uma abordagem diferente. — Vai comer caqui —, eu digo. — O quê? — ele se espanta.

A diplomacia nunca foi exatamente o meu forte.

— Vai comer caqui — digo de novo, dando um passo na direção dele. Ele dá um passo atrás, ainda mantendo o estilete em riste.

— Não ferre comigo — diz Nicolas, parando e mantendo seu território. — Eu te furo. Juro por Deus que te furo!

— Então fure — eu retruco, dando outro passo adiante, duvidando dele. Embora Nicolas Jansen tenha sido fadado a amedrontar e roubar pessoas, usando os frutos de seu trabalho para procurar e consumir drogas que perturbam a mente, ele não é violento. E, com toda a certeza, não é um assassino.

— Vou mesmo — ele afirma sem muita convicção.

— Aqui — eu digo, segurando minha carteira e a balançando na frente dele. — Pegue, se tiver coragem.

Seus olhos oscilam entre a carteira e eu. Posso ver a incerteza em sua expressão, posso até sentir a confusão saindo dele, em ondas. E sei que ele está prestes a dar uma guinada e descobrir que a vida como empregado serviço sanitário não é tão ruim.

Talvez seja porque eu tenha dado mais um passo adiante ou porque tive a ousadia de mostrar a ele quanto dinheiro havia na minha carteira ou porque o chamei de moleque safado. Ou talvez eu apenas o tenha subestimado.

Antes que eu tenha a chance de reagir, Nicolas Jansen está enfiando seu estilete em meu peito e arrancando a carteira de minha mão, correndo para se misturar à multidão no Oudezijds Achterburgwal, me deixando para morrer nas sombras do beco.

DesastreOnde histórias criam vida. Descubra agora