Capítulo-44

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Com certeza, além dos confrontos comuns à maioria dos encontros de casais, estar em uma relação mortal com Sara pode apresentar alguns outros problemas.
Minha falta de experiência como humano.
A inevitável depressão que vou enfrentar com a perda de minha imortalidade.
O fato de que Jerry possa estar fazendo uma ligação para casa.
Embora seja verdade que eu não possa engravidar Sara em minha forma atual, se me tornar humano, todas as apostas podem ser encerradas. E se ela está destinada a ser engravidada com o futuro salvador, imagino que Jerry e o restante da equipe de diretores talvez torçam o nariz para o fato de que vivamos juntos.
Não sei em que trilha serei colocado se me tornar humano, mas espero que, se Sara fizer a parte da Virgem Maria, eu tenha a de José. Exceto pelo fato de que não sou lá muito dado a trabalhos manuais. Ou a ser um bom modelo de conduta. E meus amigos não têm as melhores maneiras à mesa.
Gula arrota e limpa o rosto com sua manga. - Você pode me passar o molho?
Estou em Chinatown, degustando comida chinesa feita no vapor com Preguiça e Gula. Gula acaba de sabotar uma conferência dos Vigilantes do Peso com sua terceira porção de bolinhos de camarão, enquanto Preguiça recém- emerge de um pico de apatia e de uma soneca de três horas.
Compartilhar pratos no vapor com um comedor compulsivo e com um moleirão desmotivado enquanto você espera para saber se sua imortalidade foi revogada pode não parecer a melhor maneira de passar a sua manhã, mas Preguiça e Gula sempre dão um jeito de fazer com que eu me sinta bem comigo mesmo.
- Cara -, diz Gula, com a boca meio cheia de bolinho de porco. -É pés- simo que você tenha sido destituído temporariamente de seus poderes.
- Pode crer -, diz Preguiça, bocejando.
Nem tive de dizer a Preguiça e Gula que fui suspenso. Fofoca e Boato já haviam feito isso. A comunidade inteira já estava sabendo.
Devo admitir que fiquei um pouco surpreso com a reação. Fé, Esperança e Amor ligaram para dizer que eu podia contar com eles para o que precisasse. Carma me enviou um telegrama animado. Dona Sorte mandou um e-mail avisando que mandava um pouco dela mesma em minha direção. E recebi um torpedo de Fracasso me convidando para ir com ele ao Paradise Club, em Midtown, assistir ao show de artistas nus cuspindo fogo.
Desnecessário dizer que estou um pouco desapontado pela falta de manifestações de Verdade ou Sabedoria ou Casualidade e por minhas ligações para Honestidade não terem tido retorno. Mas acho que você acaba descobrindo quem são seus verdadeiros amigos quando está sendo censurado por Deus.
- Como é que é não ser capaz de ler os humanos? -, pergunta gula.
- Meio assustador. Um pouco silencioso demais, se é que você entende
o que quero dizer. Mas durmo um pouco melhor à noite.
- Dormir é muito importante -, acrescenta Preguiça. - É algo como o mais importante alimento do dia.
- Dormir não é um alimento, cara -, diz Gula.
- To sabendo, mas bem que poderia ser -, diz Preguiça.
- Se dormir fosse uma refeição -, acrescenta Gula, enfiando um pedaço de inhame na boca, - eu comeria você.
- Cara, isso não tem graça nenhuma -, diz Preguiça. - Agora, eu vou ficar com essa imagem na minha cabeça durante o próximo século.
Além de dormir melhor à noite, eu descobri que ter sido suspenso e despojado de meus poderes me ajudou a melhorar minha meditação, me permitiu fazer ioga e a me relacionar melhor com meus humanos. Durante os últimos dias, eu me vi andando de metrô ou a pé, no Central Park, ou, ainda, vagando pelo shopping Manhattan, e descobrindo como eu consigo entender muito mais as pessoas.
Antes, quando eu estava grampeando as sinas de meus humanos, não podia me focar em nada senão em aspectos superficiais de cada indivíduo o que tornava difícil chegar à raiz do problema. Era como ter seis segundos para incutir duzentos e cinqüenta mil anos de sabedoria em alguém que está preocupado por estar tendo um dia de mau humor.
Agora, sem a distração de outros cinco bilhões e meio de alunos, mesmo que não possa lê-los, sou capaz de me concentrar em cada pessoa e ter uma noção do que as faz vibrar. Sou capaz de me relacionar com uma por uma. Sou capaz de apreciar o quanto temos em comum.
Na verdade, eles são formas de vida bípedes inferiores e frágeis, conchas biodegradáveis, e eu sou uma fulgurante bola de luz em uma vestimenta de tecnologia avançada com uma meia-vida de dois mil anos, mas no fundo todos viemos da mesma massa cósmica.
E fico imaginando se eu teria futuro como consultor no segmento profissional.
- Então, quem é que Jerry disse que vai assumir seu trabalho enquanto você estiver suspenso? -, pergunta Gula, entre rolinhos primavera. - Casualidade -, eu digo.
- Casualidade é um misógino -, diz Preguiça.
Não discuto isso. E se você quer saber, eu acho que ele vai fazer um péssimo trabalho ao administrar meus humanos. Ele é apenas uma pos- sibilidade. Um acidente. A ausência de qualquer propósito claro. Como é que isso poderia ajudar a dirigir uma pessoa para um futuro melhor?
Com certeza, antes de mais nada, foi esse tipo de pensamento que me meteu em uma situação como a que estou.
guiça.
- Quantos humanos você matou, de qualquer forma? -, pergunta Pre-
- Cara -, interrompe Gula, com mingau de arroz escorrendo pelo queixo.
- O quê? -, pergunta Preguiça.
- Você não pode questioná-lo desse jeito -, afirma Gula. - Por que não?
Gula solta um arroto. - Porque é falta de educação.
Muitos dos clientes do restaurante estão olhando para nós. Alguns, em especial os que estão próximos de nossa mesa, foram embora ou perderam o apetite.
- Tudo bem -, eu digo. - Não tenho nada para esconder.
Preguiça se endireita na cadeira. - Então é verdade que você disse a Jerry que ele era uma deidade barata com mania de grandeza? Boato. Aquela putinha.
- Não -, respondo. - Isso não é verdade.
Não que a idéia de repreender Jerry não tivesse passado pela minha cabeça.
Quase todas as crianças humanas, em algum instante de seu desen- volvimento emocional, acham que sabem dirigir suas vidas melhor do que seus pais. Geralmente, esse comportamento se manifesta durante a adolescência e continua na fase adulta. Não somos diferentes. Muitos de nós sentimos durante um período incalculável de tempo que podíamos fazer um trabalho bem melhor do que o Jerry na condução do universo, pois ele está longe da realidade desde a época de Moisés e, quando é confrontado com um desafio bastante razoável à sua autoridade, reage de maneira infantil e com despotismo.
Não sei calcular quantas vezes nossas discussões terminaram com a frase: Porque eu sou Deus e digo que é assim.
- Então, quantas? -, volta a perguntar Preguiça.
Eu penso um pouco, contando-as nos dedos. - Matei no mínimo duas dúzias -, digo. -Talvez uns quarenta e poucos.
- Quarenta humanos? -, diz Preguiça. - Cara, isso não é nada compa- rado a todos os humanos de que o Jerry deu cabo.
Embora seja verdade que Jerry se tornou uma deidade amável e gentil, ele costumava dizimar humanos a torto e a direito. Jezebel. Saul. A esposa de Ló. Blasfemos e prostitutas e queixosos. Ele até matou um homem que apanhava lenha no Sabá. Falemos sobre mesquinharias.
- Então, o que vai acontecer em seguida? -, pergunta Gula.
- Não faço idéia -, digo. - Depende do que Jerry vai fazer quando ele receber o relatório de Integridade e Confiança.
- Agentes -, diz Preguiça, tossindo a palavra com a mão fechada diante da boca.
- Mas há uma boa chance de que eu tenha minha imortalidade revo- gada -, falo.
- Cara, isso seria duro demais -, comenta Gula, alcançando um cardá- pio de sobremesas e pedindo duas de cada uma.
- Completamente -, continua Preguiça. - Se eu não fosse imortal, não sei o que faria.
- Provavelmente, a mesma coisa que fazemos agora -, afirma Gula. - Nada. -Bom argumento.
Na mesa próxima, uma menininha está olhando fixamente para Gula quando ele coloca um par de tortas de creme de ovos na boca. - Não é educado ficar encarando as pessoas -, digo a ela.
A garotinha me fita, mostra a língua e depois se vira em sua cadeira. Olho para Gula e dou de ombros. Ele sorri, arrota e sopra na direção da menina. Pouco depois, ela está agarrando toda a comida que há na mesa, enquanto seus pais a repreendem.
- Então, o que você vai fazer se for chutado? -, pergunta Gula, a torta de creme escorrendo de sua boca e caindo em sua camisa.
- Sei lá -, admito. - Ainda não entendo por que o universo não fez a correção devida. Carma disse que, apesar do impacto que houve nas sinas deles, meus humanos acabariam encontrando seu caminho de volta às trilhas originais.
- É assim que a coisa normalmente funciona -, lembra Preguiça. - Como é que você sabe? -, quer saber Gula. - Cara, eu não dormi em todas as aulas. Preguiça começa a explicar a teoria do caminho e o Princípio Universal da Correção, mais ou menos como fez Carma, só que parecia um pouco diferente dito por um maconheiro sonolento. Principalmente pelo fato de haver menos ênfase espiritual e muito mais dúvidas.
- Isso ainda não explica por que meus humanos começaram a morrer -, eu digo.
- Talvez algo mais tenha acontecido -, cogita Preguiça. - Quem sabe a culpa não tenha sido sua.
- Algo como o quê? -, pergunto.
- Não sei, cara -, continua Preguiça. - Só estou dizendo que é possível que haja algo que você não tenha levado em conta. Se fosse eu, iria querer tirar a limpo.
- Se fosse você -, acrescenta Gula, - ninguém teria morrido. Todos te- riam apenas caído no sono.
- É mesmo -, fala Preguiça, bocejando. - A propósito, garotos, vocês se importam se eu tirar uma soneca?
Antes que a gente possa responder, ele está inerte, sua boca aberta, roncando.
- A conta, por favor -, digo.

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