Capítulo-31

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A última vez que fui preso, os seres humanos ainda acreditavam que o Sol girava em torno da Terra e as execuções de heréticos eram um bom, sadio entretenimento familiar. Naquele tempo, costumava-se referir às prisões como masmorras e não era incomum ter de compartilhar sua luxuosa suíte de dois metros quadrados por um com meia dezena de condenados, muitos dos quais precisando de um banho e alguns de um enterro decente.
Tenho de admitir que as acomodações melhoraram significativamente desde aquele tempo.
Nossa cela tem seis por três metros quadrados, com um banco ao longo da parede do fundo e um sanitário com uma pia no canto mais distante. Em vez de concentrar poeira e pedras misturadas com excrementos humanos, o chão é um piso de concreto, limpo. Há até ar-condicionado. E o único de nós que precisa de um banho é Carma.
- Dá pra me trazer um café com leite duplo? - Carma grita, sua face pressionada contra as barras, espinafre e queijo coagulados em seu cabelo e sua camiseta. - Não, espere. Faça aquele chá gelado chai.
- Ei, cara - diz o vendedor de seguros de trinta e nove anos de idade que acaba de perder seu emprego e está compartilhando a espaçosa cela conosco. - Pode me pedir um cappuccino? - De que tamanho?
- Grande - diz o homem.
- E um cappuccino grande! - grita Carma.
Estamos no compartimento para bêbados da 13ª Delegacia, o que, de fato, não é justo, considerando-se que estou completamente sóbrio Mas eu não poderia deixar Carma sozinho com medo de que ele decidisse fazer uma de duas coisas: um ato de sumiço ou um de combustão espontânea, então contei aos guardas que nos prenderam que eu havia comido alguns brownies de cortesia de Alice B. Toklas e, então, eles me lançaram no depósito com Carma.
É uma situação parecida com as circunstâncias que precederam minha última visita à prisão, no começo do século dezesseis, quando Carma ficou bêbado em um pub de Colônia, na Alemanha, e começou a falar sobre como ele havia conversado com Satã. Com certeza, era verdade. Nós havíamos, sim, jantado com ele, alguns séculos antes. Mas você não sai por ai compartilhando uma informação como essa, especialmente em um país em que havia uma histeria coletiva de caça às bruxas. Desnecessário dizer que, uma vez que eu era companheiro de viagem de um herético, me tornava culpado por associação.
Sair do cárcere em Colônia foi fácil. Quando os guardas não estavam olhando, nós simplesmente nos transportamos da Alemanha para uma praia, em Barbados. Os homens que estavam na mesma cela que nós foram torturados até admitir que usaram feitiçaria para que escapássemos, mas eles iriam ser mesmo torturados e estrangulados e queimados na fogueira, então, de fato, não pioramos as coisas para eles.
- Será que eles têm alguns biscoitos? - pergunta o vendedor de se- guros bêbado, cujo nome é Alex Dunbar e que está a caminho de gastar as próximas duas décadas descobrindo os limites de sua inteligência e desenvolvendo diabetes de adulto.
Carma olha de cima a baixo o corredor vazio que há fora de nossa cela. - Acho que todos os barmen estão de folga. - Isso aqui não é a Starbucks - digo. Carma se vira e olha para mim como se eu tivesse acabado de dizer que Papai Noel não existe.
- Não é? - pergunta Alex.
- Não. Esta é uma cela de cadeia. Nós fomos detidos por bebedeira e desordem e estamos na prisão, onde eles não servem café com leite, e cappuccinos ou biscoitos.
Alex Dunbar começa a chorar.
- Veja só o que você fez - diz Carma, que caminha em nossa direção e senta-se perto de Alex e põe um dos braços ao redor dele. - Já não basta rir ler perdido o emprego, hoje, mas você tinha de vir e tirar dele a única coisa que ele esperava.
Às vezes eu não entendo Carma. Realmente, não.
- Está bem - continua Carma, dando a Alex um abraço de um braço só e lhe oferecendo conforto. - A mulher que demitiu você vai ser atropelada por um ônibus, hoje, quando estiver voltando do trabalho para casa.
- É mesmo? - exclama Alex, se animando e parando de soluçar. - Vai? - eu digo.
Carma me faz um rápido movimento de cabeça, que Alex não percebe.
- Com certeza - confirma Carma. - Ela vai ser pega pelo ônibus qua- renta e dois, em Times Square.
- Que bom - comenta Alex.
- Agora eu quero que você se deite no banco e durma um pouco - diz Carma. - E quando você acordar, teremos cappuccino e biscoitos. - Teremos? - ele quer saber. - Pode apostar. - Que bom. Carma se levanta e Alex deita-se no banco, de lado, com a blusa sob sua cabeça. - Ei - ele diz. - Como é que você sabe sobre o ônibus? - Porque sou o Carma.
- Ah - diz Alex, que coloca as mãos entre os joelhos e fecha os olhos. Menos de um minuto depois, ele está roncando claramente.
Carma vem ao meu lado. - Então, está pronto para dar o fora daqui? - O que você quer dizer com isso? - pergunto.
- Você sabe - ele diz, cruzando seus braços e piscando, como Barbara Éden, no seriado Jeannie é um gênio. - Vamos lá!
- Este não é o século dezesseis - lembro. - A polícia tem nossas iden- tidades. Sabe onde moramos. Além disso, estamos sendo gravados em vídeo. Não podemos simplesmente evaporar.
- Saco! - ele diz. - Então, o que vamos fazer? - Eu já chamei Justiça.
- É mesmo? - Carma pergunta. - Quando você fez isso?
- Logo depois que eles nos trouxeram aqui - digo. - Você ainda estava insistindo no tema da causa e efeito e tentando tirar a ricota e o espinafre dos seus cabelos.
- Certo - ele diz, correndo os dedos no lado da cabeça e catando al- guns pedacinhos de espinafre. - E o que Justiça falou?
- Disse que estará tratando disso tão logo termine de cuidar de uni problema no Senado.
- Isso pode demorar um pouco - conclui Carma, sentando-se no banco.
Eu me sento ao lado dele. - Você ainda está bêbado?

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