Capítulo-41

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Acaba de amanhecer no Queens, quando sigo para casa em um táxi que cheira a preservativos usados e suor rançoso. Eu poderia ter ligado para Sara, mas já é embaraçoso demais ter de usar o banheiro público e ser forçado a viajar em transporte idem, com um montão de humanos diante de desafios futuros. Pedir à minha namorada mortal que vá me buscar no aeroporto seria o fim da picada.
Embora meu voo de Duluth para o LaGuardia tivesse levado cerca de metade do tempo da escala anterior, ainda estou de mau humor. Depois de tudo, se você leva quatro horas, em vez de sete, para vivenciar uma morte lenta e angustiante, não há muito a comemorar.
Enquanto meu táxi atravessa a ponte Triborough, o silêncio que enche a minha mente é irritante. Não posso ler o motorista nem nenhum dos outros humanos que estão nos carros da interestadual conosco. Estou cercado por mais de oito milhões de pessoas, a maioria delas em meu caminho, e não posso ouvir nada. É como se todos eles estivessem mortos.
Desde o momento em que cheguei a Manhattan, estou me sentindo claustrofóbico. Depois de ficar horas encerrado no interior de pequenas caixas metálicas, preciso sair. Então, peço ao taxista que me deixe na esquina da rua 125 com a Segunda Avenida e começo a caminhar. A princípio, sem uma direção definida. Fico só vagando pela cidade, este lugar que tenho chamado de lar desde a primeira metade do século passado, visível para qualquer pessoa. Incapaz de me esconder ou buscar refúgio em minhas habilidades sobrenaturais. Compartilho esta cidade mais como os humanos do que como o imortal que sou.
Ando pela Quinta Avenida e pelo Central Park, depois sigo em direção ao centro da cidade e ao Distrito Teatral, antes de pegar a Broadway rumo à Lower Manhattan, finalmente parando quando chego ao Battery Park. Sento-me ali e fico observando o sol se levantar sobre o Brooklyn, enquanto surgem nuvens cinzentas, ameaçando chuva.
Nunca me senti dessa forma antes. Exposto. Vulnerável. Com a bunda congelando. Nunca percebi, antes, como Nova York esfriava em dezembro, porque fico invisível a maior parte do tempo. Quando você é invisível, sua vestimenta humana cria calor suficiente para aquecê-lo durante toda uma nevasca quando você corre nu pelo Central Park. E não pense que não gostamos de fazer isso quando temos oportunidade.
Mas agora estou apenas com frio. Com frio e ansioso. Não sei o que vai acontecer comigo, com minha relação com Sara ou com todos os humanos que tentei ajudar. Tudo o que sei é que preciso de uma cama quente e de alguma roupa íntima térmica.
No meu caminho para casa, paro para checar alguns de meus humanos, aqueles cujas sinas influenciei ao longo dos últimos meses, e descubro que a seqüência de imagens que Jerry me mostrou foi apenas uma amostra das conseqüências de minha presunção.
A sem teto bipolar que brigava consigo mesma perto do edifício Flatiron. Morta.
O músico de rua esquizofrênico, que tocava banjo no exterior do Madison Square Garden. Morto.
A moradora de rua que colecionava embalagens de goma de mascar e vivia no Central Park. Morta. Profissionais fracassados e sociopatas de meio período. Pervertidos sexuais e prostitutas corporativas. Viciados em drogas e consumidores compulsivos.
Todos mortos.
Mais de uma dúzia de meus humanos, alguns encaminhados à trilha de Destino, outros ainda lutando em minha trilha, e nenhum deles conseguindo completar seu próximo aniversário. O universo corrige, o caralho! Não sei o que me levou a pensar que Carma sabia do que estava falando. Eu deveria imaginar, em vez de levar em consideração alguém que trapaceou nos exames finais e que, habitualmente, desafia a Teoria Cósmica.
Não foi assim que eu previ que seria minha própria sina. Destituído de meus poderes. Responsável pela morte de aproximadamente duas dúzias de h manos. Vagando pelas ruas de Manhattan e congelando em minha vestimenta humana. Para tornar as coisas ainda piores, o céu cinza de Manhattan finalmente decide cumprir a ameaça e começa a chover.
É em momentos como este que fico pensando que deveria ter sele- cionado mais acessórios funcionais quando pedi minha nova vestimenta humana. Como pele à prova d'água ou cabelos que secam instantânea e automaticamente. Barriga de tanquinho e genitália autodepilada não ajudam muito quando você está sem guarda-chuva. Preciso de um trago.
Ainda estou a vinte quarteirões de distância de casa e o bar mais próximo é o Iggy's - um ambiente descontraído no Upper East Side e que sempre cheira a cerveja velha. Quando atravesso o canal vaginal da entrada, uma das paredes está recoberta de tijolos, a outra fica alinhada ao balcão. Além disso, o Iggy's se abre em um espaço com mesas e cadeiras e um aparelho de karaokê.
Embora o interior não seja lá uma maravilha, o Iggy's é um dos pontos mais quentes de karaokê em toda a Manhattan, quase todas as noites da semana. Mas, logo depois do meio-dia, a única música no ar vem de Johnny Cash cantando "God's Gonna Cut You Down", na jukebox.
Fico pensando que talvez devesse ir a outro lugar.
Além disso, os únicos clientes que vejo sentados no bar são Ego, Tédio e Culpa.
- Fábio, diz Ego. - Parece que você ganhou um pouco de peso.
Tédio faz um aceno indiferente e boceja, antes de voltar à sua Budweiser, enquanto Culpa apenas sorri e me dá um sorrisinho contido, para depois entornar o resto de seu uísque.
Por que eu não podia ter encontrado Humor, Riso e Alegria? Tomo uma Coca-Cola com uísque e Ego tagarela sobre suas mais recentes façanhas.
Termino outra enquanto Tédio fica zunindo como não há nada para fazer no século vinte e um. E então tomo um duplo enquanto Culpa divaga, confessando seu caso com Decepção. Na jukebox, The Clash está cantando "Should l Stay or Should I Go?".
Quanto mais tempo fico sentado aqui ouvindo Tédio e Ego e Culpa e mais drinques duplos tomo, mais me pergunto se minha escapada ao lggy's foi só uma casualidade. E mais imagino se não há um tipo de correlação cósmica acontecendo aqui.
Durante anos eu perdi o interesse em meu trabalho. Fiquei apático. O tédio aumentou. E então comecei a ajudar meus humanos, meu ego assumiu o controle e eu me convenci de minha própria grandeza.
Encantei-me com a maravilha de Mim. Agora, sinto muita culpa pela forma como as coisas foram acontecendo. Com todas as mortes que causei. Isso não pode ser uma coincidência.
- Que diabos é isso? -, digo, virando-me para os três, as palavras sain- do, arrastadas, com uma mistura de baba, saliva e uísque.
Os três olham para mim, como se esperassem por uma conclusão. - Que é o quê? -, pergunta Ego.
- O que vocês estão fazendo aqui? -, grito.
Percebo que provavelmente tomei doses demais de coca com uísque. - Estamos apenas bebendo -, diz Tédio.
- Sim -, confirma Culpa. - Estamos apenas bebendo. Só isso.
- Não -, eu falo, sacudindo a cabeça, balançando meu drinque no ar. - Vocês não estão apenas bebendo. Estão aqui por uma razão. - Você está falando sobre mim? -, quer saber Ego. Tédio se limita a encolher os ombros e, preguiçosamente, bebe sua cerveja, enquanto Culpa faz uma expressão de quem definitivamente tem algo a esconder.
- Você -, digo apontando meu copo para Culpa e derramando minha bebida. - Sei o que você está tentando fazer. Sei do que se trata tudo isso. Culpa olha ao redor, com uma expressão cheia de pânico.
- Jerry mandou você aqui, não é? -, falo. - Mandou você aqui para me espionar. Para me ensinar uma lição.
Percebo que estou gritando. E enrolando a língua. E que o garçom e os outros mortais que estavam por ali estão começando a me olhar. - Não está falando sobre mim? -, pergunta Ego.
Eu não respondo. Tudo que vejo são os humanos me observando. E não posso fazer nada, senão imaginar se, apenas pelo fato de estar ali, não estou afetando o futuro deles. Se é que ainda não alterei suas sinas. Se eles todos não vão morrer por minha causa.
Culpa jura de pés juntos que não quis fazer isso, seja lá o que for, mas eu
o ignoro enquanto tropeço para fora do bar e sigo pela Segunda Avenida, pegando um dezembro de chuva contínua, e esbarro em uma mulher que está lutando com seu guarda-chuva. Ela me xinga e eu grilo e corro para longe, imaginando se acabo de matá-la.

Avanço aos tropeções na direção oposta à do meu apartamento, com medo de ver Sara, com medo de que de alguma maneira eu possa matá-la, também. Sei que ela está na Trilha de Destino e que teoricamente não posso afetá-la, mas se posso mandar meus próprios humanos para o caminho de Destino, será que não dá para imaginar que a coisa pode funcionar nas duas direções?
Sei que não é provável e que posso mesmo estar exagerando, mas quando você bebeu várias doses duplas de cocas com uísque durante a tarde inteira, com Tédio, Ego e Culpa, porque todo mundo que tentou ajudar acabou morrendo prematuramente, tende a acreditar em sua própria inevitabilidade.
Enquanto vago sem rumo pelo East Side, em direção à Lower Manhattan, encontro homens e mulheres na chuva e tenho medo de me aproximar deles. De roçar neles. De manter contato visual com eles. Tenho medo de que, se fizer isso, possa condená-los à morte.
Na esquina da Primeira Avenida com a East 67th, atravesso a rua, quase sou atropelado por um táxi e imagino se o motorista acaba de cobrar a corrida final de sua vida.
Cambaleio ao passar por um sem-teto que está urinando embaixo da rampa da ponte Queensboro e me pergunto se ele desenvolverá uma infecção fatal na bexiga.
Um diplomata da Síria faz contato visual comigo em frente da sede das Nações Unidas e eu imagino se acabo de iniciar um incidente internacional. Não sei como Dennis lida com isso todos os dias. E, então, a ficha cai. Todas essas mortes. Dennis deve saber algo a respeito delas. Ele pode até ter sido responsável por elas. Afinal de contas, ele é a Morte. Imagino se ele está na cidade.
Imagino se ele esteve falando com Destino.
Imagino se ele está me dando o troco pelos últimos quinhentos anos.
O meu lado lógico, aquela voz tranqüila da razão que tem sido amarrada e amordaçada, está tentando me dizer que eu deveria voltar para meu apartamento ou encontrar algum lugar para me manter seco e dormir, para passar minha bebedeira, e reconsiderar todas essas idéias com a mente limpa. Em vez disso, eu me vejo cambaleando para East Village e Lower East Side - onde eu caio da escada e chego às portas de Morte.
Sento-me e encosto-me na porta. Embora a queda não provoque dor, eu consigo danificar minha vestimenta humana na descida. Há um corte em meu braço esquerdo que parece precisar de conserto.
Naturalmente isso não tem grande importância, considerando que não posso mais me transportar. Mas minha garantia não cobre Danos sob Efeito de Álcool.
Sentado ali na chuva, sentindo pena de mim mesmo, com as costas contra o porão sem janelas onde Dennis mora e com as pernas abertas em minha frente, eu me viro e bato na porta com minha mão direita.
- Abra -, eu digo. - Abra ou eu vou assoprar até derrubar... Então vomito no meu colo.
Pouco antes que eu desmaie, a porta se abre e eu caio de costas, para dentro.

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