Capítulo-52

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O mês seguinte transcorre em meio a uma visão borrada por litros de bebidas baratas, entornadas umas depois das outras. Eu bebo muito o dia inteiro, geralmente sozinho, uma vez ou outra com outro sem-teto com quem eventualmente compartilho um banco, um gramado ou um chão de cimento.
Quando preciso de comida, pego um cheeseburguer duplo do McDonald's ou engulo uma sopa vez ou outra. Quando preciso de um lugar para dormir, encontro um beco entre alguns grandes recipientes de lixo ou um belo banco no Battery Park. E, quando preciso de dinheiro, peço esmolas no Village ou no SoHo ou, ocasionalmente, em Chelsea, mas nunca vou adiante da Penn Station. Não quero correr o risco de ir a algum lugar próximo do East Side ou aonde eu poderia estar propenso a correr na direção de Sara. Evito o Central Park de todas as maneiras.
Meu casaco está imundo e minhas roupas fedem, da mesma forma que eu, porque não tomo banho há um mês. Meu cabelo está pastoso e opaco e minha barba suja e desgrenhada, com mais de um fio encravado. Tenho sujeira sob as unhas e bolhas nos pés e meus sapatos estão encharcados de água e vinho e urina. Quando tusso, meus pulmões rangem. Quando vomito, minha garganta queima e meu estômago parece que está tentando escapar.
Qualquer prazer que eu tenha tido ao ajudar meus menos afortunados humanos se foi em uma espessa e dura camada de perda e desespero e autopiedade.
Quando não estou implorando por dinheiro, a maior parte dos meus dias com uma garrafa em uma sacola marrom e qualquer tipo de comida que eu possa conseguir, vagando sob a ponte Williamsburg ou no Battery Park, olhando
o vaivém das balsas. Vou até o Riverside Park, nos dias em que me sinto mais aventureiro. Às vezes, em dias claros como o de hoje, pouco antes do anoitecer, ando ao longo da avenida, depois sigo em direção ao caminho de pedestres às margens do Hudson e sento-me em uma pedra e fico olhando para a ponte George Washington.
Ultimamente, tenho pensado em dar uma olhada mais de perto.
É suficientemente ruim quando você vai de presidente do Morgan Stanley a fuçador de latas de lixo no Central Park. Mas quando você cai tanto quanto eu e perde tudo o que perdi, esperança se torna uma palavra com a qual você nem sonha, porque é impossível demais para imaginar. Finalmente, você esquece até mesmo o que significa.
E percebo que me tornei a personificação de tudo o que desprezei quando era Fado. Um humano bêbado, inútil, patético. Um desperdício de forma de vida à base de carbono.
Penso de novo sobre como tantos humanos têm tanta dificuldade em se manter em seus caminhos. Como eles fracassam em vivenciar seu potencial. Como se desviam do que há de melhor em seus futuros, com propriedades e álcool e outras distrações. Talvez eles não se desviem tanto de suas sinas, mas da luta que é ser humano.
Dou uma risada. Não uma risada doente ou desesperada, nascida de um acesso de loucura, mas um riso rápido, cheio de amarga ironia.
Estou sentado em uma pedra em um bosque de árvores cheio de cerejeiras, observando a George Washington, enquanto Nova Jersey se espraia do outro lado do Hudson como uma sombra de Manhattan. Atrás de mim, o tráfego ruge ao longo da Henry Hudson Parkway, enquanto o rio serpenteia nas rochas, uns quinze metros abaixo. Durante a alta primavera, as cerejeiras estão carregadas de botões rosa e brancos, mas na última semana de março, no fim de um longo, persistente inverno, as árvores estão estéreis como o meu futuro.
Estou tomando outro gole de vinho barato, a metade do qual se espalha sobre minha barba e meu casaco, quando surge uma voz no caminho de pedestres atrás de mim. - Fábio?
Não preciso nem olhar para saber quem é.
Destino contorna uma cerejeira para ficar em pé na minha frente. - Jesus, Fábio. Sua aparência está horrível.
- Graças a você -, digo, tomando um gole de vinho.
- Desculpe -, ela continua. - Eu não me dei conta... sinto muito. Destino está usando um casaco vermelho de lã com uma boina vermelha, jeans vermelhos e coturnos vermelhos Doc Martens.
- É uma aparência um tanto sutil para uma puta, não? -, digo, certo de que minhas ironias se deterioraram.
- Não perdeu seu charme, apesar de tudo -, ela diz, sentando-se em uma pedra ao meu lado.
Ficamos ali, sem dizer nada, apenas observando o pôr do sol sobre o Hudson e as luzes que enfeitam a ponte George Washington.
- Você está chafurdando outra vez? -, pergunto. - Veio ver como os outros cinco bilhões e meio de humanos vivem? Ou veio apenas rir da minha cara outra vez? Aproveitando a visão de a que ponto eu decaí?
Mais silêncio embaraçoso, seguido de um engasgo de Destino quando ela sente meu cheiro. Passo a ela a garrafa de vinho. - O que é isso? -, ela pergunta. - Barato -, digo.
Ela pega a garrafa de mim e dá um gole, cuspindo em seguida. - Isso é horrível.
- Obrigado -, digo, pegando a garrafa de volta.
Outro momento de silêncio, alguns minutos. Finalmente, Destino diz: - Nunca imaginei que as coisas iam ser tão difíceis para você, Fábio.
- Beleza, bem... nisso nós dois concordamos -, digo, pontuando minha afirmação com um arroto. - Talvez se você não tivesse matado meus humanos eu ainda seria imortal.
Embora, se eu fosse honesto mesmo, teria de admitir que Destino não tem culpa do que aconteceu comigo. Não posso culpar ninguém, exceto eu mesmo.
Ainda assim, isso não significa que não estou amargo.
- Então é para isso que você veio? -, digo, chupando vinho de minha barba. - Para me dizer que lamenta? Para limpar sua consciência?
- Mais ou menos -, ela continua. - Eu só queria ver como você está. - Não pode me ver sem se materializar, certo? -, digo. - Não estou exatamente em seu radar, não é mesmo?
- Não sei o que dizer -, murmura Destino. - Não posso desfazer o que fiz e não vou continuar me desculpando por matar humanos que não tinham o direito de estar em meu caminho, para começo de conversa. Você não pode misturar o caldo genético cósmico, Fábio. Isso reduz o valor das propriedades.
- Se isso a ajuda a dormir à noite -, eu digo.
- Olha, eu não vim aqui para brigar com você -, fala Destino. - Apenas queria explicar algumas coisas.
- Ótimo, obrigado pela explicação -, digo, sorvendo de novo a garrafa pelas últimas gotas de vinho. - A propósito, obrigado pelo conselho sobre Sara. Fico devendo essa a você.
Ela abre a boca para dizer algo mais, mas a fecha e fica olhando para o Hudson.
- Eu também pensei que você gostaria de saber que Jerry está viajando para a Terra, esta noite -, ela diz. O vinho começa a sair de minha boca e de meu nariz.
- Por que eu ia querer saber isso? -, digo, secando o rosto com a man- ga. - Como é que isso, supostamente, poderia me fazer sentir melhor?
- Eu apenas... parecia importante -, ela acrescenta.
- Para quem? -, pergunto. - Para você? Para que pudesse me atormentar mais um pouco?
- Lamento, Fábio -, diz Destino. - Eu só queria...
- O quê? -, eu grito. - Esfregar isso na minha cara? Para que eu saiba que a mulher que amo está prestes a cumprir seu destino?
sabe.
- Olhe -, ela diz, se levantando. - Eu não tinha nada de vir aqui, você
- Então, por que veio?
Ela me encara, depois olha à distância. - Apenas pensei que você de- veria saber - diz, antes de passar por mim e desaparecer entre as profundas sombras ao longo da margem do rio.
Só alguns segundos depois é que percebo que não queria que ela fosse embora.
Eu me viro para pedir a Destino que espere, para sentar-se de novo e me contar como é que vai todo mundo, para ver se ela tem falado com Dennis, para perguntar sobre Sara, apenas para ficar e me fazer companhia, mas ela já se foi. E eu estou sozinho de novo, sentado em meu banco vazio com minha garrafa de vinho vazia e minha vida vazia, cercado por sombras e estranhos e com uma existência que não me pertence.
Fico ali olhando o rio Hudson passar, meus olhos cheios de lágrimas, e antes que perceba o que estou fazendo, caio de joelhos no solo e começo a rezar para Jerry. Eu imploro aos céus, pedindo a ele que me leve de volta, prometendo que se me der mais uma chance eu serei um empregado padrão. Talvez até mesmo me inspirar em Subserviência ou em Adulação.
Qualquer coisa para que eu possa voltar a ser imortal. Ajudar a cuidar dos humanos. Ter a chance de ver Sara. Para estar perto dela mesmo que ela não saiba quem eu sou ou o que costumávamos compartilhar.
Espero por uma resposta enquanto o sol desaparece atrás de Nova Jersey. Espero a escuridão cair e a lua subir ao céu. Espero até que todas as estrelas saiam e que a noite oficialmente vire a página para a chegada da manhã.
E então começo a caminhar na direção da ponte George Washington.

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