Capítulo-53

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A George Washington é acessível a pé, de Manhattan, pela rua 178, através de uma rampa longa, íngreme, ideal para ciclistas. Nesta hora da manhã, não há nenhum ciclista e o tráfego é muito leve, então ninguém nota que estou subindo na estrutura de puro aço, pelo lado de Nova York da ponte.
Enquanto sigo em direção ao topo da torre, fico pensando nestes três meses como se não passassem de um longo, bizarro sonho de merda e que, na verdade, estou na cama ao lado de Sara ou desmaiado no quarto de Verdade e Sabedoria, depois de uma noite de bebedeira ou tirando uma soneca enquanto tomo um banho de lama no spa de Vênus. Quando eu acordar ficarei tão feliz ao descobrir que ainda sou imortal e que minha existência está cheia de amor e significado e de capacidade de combustão espontânea que vou me dedicar a ser
o melhor Fábio possível.
Não estou bem certo se penso isso para me distrair ou para me motivar a continuar subindo, pois é apenas um sonho. Mas definitivamente ajuda a afastar da mente o fato de que eu tenho de mijar.
A altura da torre é de mais de cento e oitenta metros sobre o rio Hudson, então, quando chego lá em cima, minhas mãos estão em carne viva, sangrando, e minha cabeça latejando. Provavelmente não foi boa idéia subir numa ponte suspensa depois de beber uma garrafa de vinho barato, discutir com Destino e ser ignorado por Deus, mas às vezes as pessoas fazem coisas idiotas.
Sento-me no alto da torre e olho para o sul, ao longo do Hudson, respirando profundamente, em pânico. Não costumo ter medo de altura, mas há algo sobre a possibilidade de morrer que faz você calcular que se trata de um longo trajeto para baixo.
- Você poderia ter se poupado do trabalho de subir -, diz uma voz atrás de mim.
Eu me viro e vejo Dennis em pé na torre. Se ele estivesse de terno ou vestindo algo informal ou mesmo um manto do apocalipse, eu poderia pensar que ele está aqui para me convidar para um jantar com um bom bife, talvez me oferecendo um lugar para dormir ou tomar um banho quente. Em vez disso, está usando sua capa de chuva preta e luvas funerárias azuis, então sei que não se trata de algo social.
- É bom ver você -, digo.
- Não faço isso com freqüência -, ele diz, sentando-se ao meu lado. - Mas, obrigado. Você já teve uma aparência melhor.
digo.
- Sim, bem... tente ser humano por três meses e verá como vai ficar -,
Dennis balança a cabeça. - A barba até que está bacana. Mais ou menos como a de Átila, o Huno.
rosto.
Nós sempre imaginamos Átila, o Huno, como se tivesse pelos púbicos no
Ficamos ali sentados na torre, em silêncio, dois campos de futebol acima da água, olhando através da escuridão da madrugada até os limites do Atlântico. Depois de um instante, Dennis dá uma olhada para baixo, entre seus joelhos.
- Você sabe que a queda daqui de cima será suficiente para fazer o trabalho -, diz.
- Eu sei, sim. Mas quero me certificar de que não vou apenas quebrar todos os ossos de meu corpo e ficar consciente enquanto me afogo. - Bem, acho que você não tem de se preocupar com isso. Mais silêncio, enquanto abaixo de nós os carros fluem para leste e oeste, sem saber que a Morte e o mortal antes conhecido como Fado estão compartilhando sua última conversa na torre acima deles. - Então, há quanto tempo você sabe? -, pergunto. - Sobre você? -, ele fala. - Desde a transformação. Tão logo você se tornou mortal.
- E você não pensou em me avisar?
- Você sabe, eu não podia fazer isso. Haveria um impacto em seu futuro. Você deveria saber disso melhor do que ninguém.
- Acho que sim.
- Além disso -, continua Dennis, - Jerry nos deu ordens expressas de não interagir com você.
Eu dou risada. - Aquele canalha fascista.
- Você precisa reconsiderar sua opinião sobre Jerry, antes que salte -, recomenda Morte. - Vai tornar as coisas mais fáceis para você. É apenas uma sugestão.
- Vou levar em conta.

Outros minutos se passam em silêncio, até que eu percebo que Den-nis está olhando para seu relógio.
- Precisa ir a algum lugar? -, pergunto.
- Bem, você me conhece. Minha agenda é muito lotada.
Eu balanço a cabeça. - Bem, então não se prenda por mim -, digo levantando-me.
Dennis fica em pé e me encara. No brilho que vem das luzes brancas que se delineiam na torre, seus olhos parecem embaçados, como se estivessem marejados de lágrimas. Ou talvez sejam os meus.
- Obrigado por ter vindo -, digo com a voz embargada. - Não tem de que.
- É um pouco estranho, você sabe. Depois de todo esse tempo, pensar que vou chegar ao fim. Que não existirei mais. Refletir sobre minha própria mortalidade. Lembra como costumávamos rir de Hamlet? Dennis sorri e balança a cabeça.
- Ser ou não ser, eis a questão -, digo. - Será mais nobre como um homem...
- Fábio -, ele fala.
- Eu sei, eu sei. Você tem de ir embora.
Ficamos ali, sem jeito, nenhum de nós sabendo o que dizer; então, Dennis dá um passo à frente e me abraça. - Se jogar de cabeça é provavel- mente a melhor maneira. - Obrigado -, digo. Ele dá um passo atrás e me deixa sozinho no topo da torre. Fico ali olhando para o sul, ao longo do Hudson, que deixa um rastro escuro entre Manhattan e Nova Jersey, as luzes se espalhando a leste e a oeste no horizonte, e então sobem as estrelas e a lua no infinito céu acima de nós.
Olho para trás uma última vez e sorrio para Dennis. E então me lanço para o nada, tombando devagar pela escuridão, o ar frio passando por minhas orelhas e o trânsito da torre passando como um borrão de metal e de luzes brancas e percebo que não estou tão apavorado como imaginava que ficaria. Não sei o que esperava sentir, mas essa sensação de calma me surpreende, como se fosse isso mesmo que eu tivesse de fazer. Como se o erro fosse estar vivo. E eu me lembro de Sócrates, que disse que a morte talvez seja a maior de todas as bênçãos humanas.
Dou uma olhada para cima e tenho um lampejo de Dennis inclinado sobre o pico, acenando para mim. Eu devolvo o aceno e então não o vejo mais e estou caindo, passando pelo piso superior, depois pelo inferior, a menos de sessenta metros do fim e subitamente faminto por um folheado de canela Zabar.
Sara sempre preferiu os de chocolate.
Soube que, para os humanos, a vida inteira passa diante de seus olhos momentos antes da morte. Mas, no meu caso, meus últimos pensamentos antes de bater na água são para Sara. Sua risada e seu sorriso. Sua face e seus lábios. Sua voz e...

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