Capítulo-23

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A contrapartida budista para os conceitos de sina e destino é o carma, a soma de tudo o que um ser humano fez, está fazendo e fará. Os efeitos de todas as ações e façanhas criam experiências passadas, presentes e futuras. Mas carma não é destino, uma vez que, em certa medida, os seres humanos agem por livre-arbítrio para criar o seu destino. E uma determinada ação, realizada agora, não vai condenar você a alguma sina predeterminada. Simplesmente conduz a uma consequência cármica.
Como o indiano nativo que está sentado na mesa próxima à porta da frente.
— Esse sujeito não para de ajudar uma mulher que deixou cair sua sacola de compras, quando estava a caminho de casa — diz Carma, engolindo um pouco de seu cordeiro ao curry, com um pedaço de naan, e lavando tudo com seu último gole de cerveja. — Não queria ser incomodado, o cacete. Agora veja isso.
O indiano, que será infeliz no casamento, traindo sua esposa ao longo de nove anos, procura por seu copo de água e enfia a manga de sua camisa branca no dahal amarelo. Quando percebe o que fez, afasta o braço tão depressa que bate no cotovelo do garçom que passa, fazendo com que ele deixe cair sua bandeja cheia de chai no colo do próprio indiano. — Na mosca! — diz Carma.
Conheço Carma desde que comecei a existir. Nós nos encontramos no Caldo Primordial 101, que deu origem à vida, e ficamos instantaneamente amigos, até mesmo compartilhamos o quarto durante a Orientação para Trajetória e ficamos colegas de laboratório nos Fundamentos para a Existência Humana. Jerry deu aquele curso, do qual Carma e eu escapamos mais de uma vez para fumar maconha e pegar umas ondas nas praias da África do Sul. Apesar nossas tentativas de convencer Jerry de que estávamos fazendo pesquisas sobre o Homus erectus, tivemos de repetir nossas aulas durante o declínio do homem de Neandertal.
Faz algum tempo que não vejo Carma, desde a Grande Depressão, porque ele tende a ficar a maior parte do tempo na índia. Não é nada fácil tentar encontrar alguém entre mais de um bilhão de seres humanos apinhados em um subcontinente. Mas, além de Morte, é bom ter Carma do seu lado, por isso eu o localizo em um bar em Nova Delhi e o convido para o almoço. O problema de Carma é que ele é alcoólatra.
Cerveja, vinho, uísque. Qualquer coisa que se elabore, fermente ou destile. Suas atividades favoritas são ir à Oktoberfest, em Munique, a um bar no Dia de São Patrício, em Dublin, e beber uns tragos durante o Cinco de Maio, em Tijuana. E quando Carma bebe, não fica um bêbado feliz. Pense em barulho.
Pense em algo detestável. Pense num turista americano. — Ei, Apu — diz Carma, chacoalhando sua garrafa vazia para o garçom.— Que tal outra cerveja?
O rapaz, que está pegando um pedido em outro lugar, dá uma olhada fulminante para Carma, o que provavelmente não seja uma boa idéia. Tão logo
o garçom se vira, ele escorrega e cai sobre uma mesa de turistas russos.
— Então, qual é a sua parte nesse grande acontecimento do qual Jerry anda falando? — pergunta Carma.
— Sei lá — digo, observando o garçom pedir desculpas aos turistas. — Não tenho pensado muito nisso, na verdade.
Durante os últimos meses, Jerry enviou mais alguns e-mails sobre esse Grande Acontecimento, cada um mais enigmático do que o outro. Apesar de ele ter mencionado algo sobre significativas implicações globais.
— Bem, Casualidade está fazendo um bolão, se você quiser entrar — informa Carma. — Uma aposta inteligente seria investir em uma pandemia mundial, embora haja muitas outras se inclinando para outra idade do gelo c de um holocausto nuclear. E a última que ouvi é que o retorno do Messias está na proporção de doze para um. Vai entender.
O retorno do Messias sempre fica nessa média de apostas, de doze para uma. Vai entender.
— Então, o que diz? — pergunta Carma, tentando acenar para outro garçom, para trocar sua garrafa vazia de cerveja.
Que tipo de pandemia? —, pergunto. — Estamos falando de gripe ou praga?
— Não importa — responde Carma. — Uma pandemia é uma pandemia Casualidade não se fixa em detalhes.
Embora eu não tenha pensado muito nisso ultimamente, uma praga mundial poderia fazer maravilhas para liberar meus dias de férias.
Estou pensando em colocar meu dinheiro em uma pandemia, ou talvez em um holocausto nuclear, mas ambas as alternativas me batem como um mau carma, então decido pela idade do gelo. Não é tão ostensivo, ma', se trata de uma aposta segura. Faz tempo que não temos uma dessas.
aqui!
— Ei! — Carma grita para que todos possam ouvir. — Estou com sede
Todos os clientes das outras mesas olham em nossa direção. No fundo do restaurante, posso ver o gerente falando com alguns sujeitos da equipe de segurança.
— Você deveria abaixar a voz — eu sugiro, inclinando-me para a frente. — Os humanos estão começando a notar a sua presença.
— Faz tempo que eles perceberam — ele diz, enfiando na boca uma garfada de masala vegetal. — A maior parte do tempo eles passam por sua vida sem sentido usando antolhos, completamente inconscientes de como suas ações afetam sua patética existência.
Você pode notar por que nós nos damos tão bem. Um garçom finalmente traz outra cerveja para Carma, calando sua boca por algum tempo, o que me dá oportunidade de perguntar a ele sobre uma questão que está na minha cabeça desde que Sara disse que pensava que estávamos destinados a nos encontrar. Claro, é altamente improvável. Mas assim foi a evolução humana.
— Tem alguma chance de que eu esteja na Trilha de Destino? — pergunto. Carma suga metade de sua cerveja.
— Você andou saindo com Insanidade outra vez? O problema de Insanidade é que, você sabe... — Não — digo. — Estou apenas imaginando... — A Lei da Predestinação define com clareza que Destino, Fado e Carma jamais podem cruzar suas trajetórias, compartilhar a mesma trilha ou aparecer um no caminho do outro — ele lembra. — É uma impossibilidade cósmica. — Carma sempre foi um aluno melhor que eu.
— Então, não existe a possibilidade de um mortal ser destinado a co- nhecer um imortal? — pergunto. — Não apenas para pegar um pedido ou me servir drinques, mas com um plano deliberado ou um propósito? Carma olha para mim do jeito que o papa Urbano VIII olhou para Galileu, quando ele afirmou que o Sol era o centro do universo.
— Olhe à nossa volta — sugere Carma, apontando para sua garrafa de cerveja meio vazia e para os clientes e empregados. — Você acha que algum desses humanos, dessas subcriaturas mortais estão destinadas a encontrar mu de nós com um plano ou propósito? Para conhecer Carma ou Fado? — Toma outro trago de sua cerveja. — Talvez Vergonha ou Mediocridade...
O futuro ejaculador precoce que está sentado na mesa próxima está nos encarando.
— O que você está olhando? — pergunta Carma.
O homem olha para o outro lado e dá um gole em seu chá.
— Tudo bem — comenta Carma. — Ignore a gente. Faça de conta que não estamos aqui. Faça de conta que suas ações não têm nenhuma consequencia cósmica.
O homem continua a nos ignorar, pedindo sua conta a um garçom que estava de passagem.
— Talvez você deva se acalmar — eu sugiro.
— Me acalmar? — diz Carma, terminando o resto de sua cerveja. — Corno é que eu posso me acalmar quando ao meu redor estão criaturas cm perpétuo estado de ignorância? Parece familiar.
— Eles são apenas humanos — digo. — Não podem evitar.
— Claro que podem — comenta Carma, aumentando a voz. — Mas, em vez disso, todos estão focados na quantidade de dinheiro que conseguem, no tipo de carro que dirigem ou em que nome está na etiqueta de sua roupa de baixo.
Todos os clientes do restaurante estão olhando em nossa direção.
— Voltem para seus patéticos pensamentinhos humanos sobre dinheiro e propriedades pessoais — ele grita.
— Talvez você devesse baixar o tom — eu falo.
Carma levanta-se de sua cadeira, ainda segurando sua garrafa de cerveja vazia, e esbraveja: — Que tal um pouco menos de concentração nos bens materiais e um pouco mais de ênfase nas reflexões pessoais?
Não era exatamente isso que eu quis dizer com "baixar o tom". Dei uma olhada para o gerente, que vinha em nossa direção. — Talvez a gente deva ir embora — digo.
— Boa idéia — diz Carma, e então desaparece, deixando-me sozinho para lidar com as repercussões de sua atitude e com o pagamento da conta.

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