Capítulo-14

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A última vez que fiz sexo com uma mulher mortal foi no Titanic, pouco antes de ele bater no iceberg. O nome dela era Dorothy Wilde e era um estouro. Quase vinte anos de idade, viajando na segunda classe, fadada a ser esmagada por um cofre caindo no Brooklyn, menos de uma semana depois de ter sobrevivido ao naufrágio, Dorothy me ensinou coisas a respeito de mulheres do começo do século vinte que muitos homens mortais tinham de pagar caro para ter. Não vem ao caso o fato de ela achar que eu fosse herdeiro do espólio do milionário John Jacob Astor IV, que não sairia vivo do Titanic.

Mesmo antes de o transatlântico se chocar contra o iceberg, eu sabia o que ia acontecer, mas Dorothy Wilde não pareceu notar nada de errado até que a popa começasse a se encher de água. Wallace Hartley e o resto dos músicos da banda do navio não foram os únicos que continuaram a tocar depois que a linha d'água começou a subir. Não vou entrar em detalhes, mas digamos que, da mesma forma que o Titanic ia se inclinando para baixo, era essa também a trajetória de Dorothy Wilde.

Mas Dorothy não tinha nada a ver com Sara Griffen.

- Ai, meu Jerry - digo quando ela se vira e se joga na cama ao meu lado, rindo e ofegando ao mesmo tempo.

- Jerry? - ela pergunta pegando a metade de um baseado apagado na mesinha ao meu lado e acendendo. - Quem é Jerry?

Não me dei conta de que dissera o nome dele, até ela me perguntar. - Ah... só um carinha ai que eu conheço e que me lembra Deus.

- Deus? - ela pergunta, dando uma tragada enquanto estende a bituca para mim. - Você acredita em Deus?

Esse não é o tipo de conversa pós-coito que eu quero ter. O problema é que, depois de um bom sexo, eu tendo a me abrir como um penitente peregrino diante do papa.

Tenho de aprender a ficar de bico calado depois de ter um orgasmo. Felizmente dou uma pausa para colocar meus pensamentos em ordem antes de responder, enquanto dou uma tragada na bituca. Seguro a fumaça o quanto posso, na esperança de que, enquanto aguardasse minha resposta, Sara pudesse mudar o tema da conversa.

- Bem, acredita? - ela pergunta de novo, virando a cabeça no travesseiro para me olhar.

Esvazio meus pulmões e olho para ela - os lábios molhados, a pele úmida pela transpiração, os cabelos castanhos macios caindo sobre os ombros. - Sim, quando olho para você.

O engraçado é que não era isso que eu tinha planejado dizer. Mas parece ter sido um bom truque, porque ela sorri, deixa a conversa pra lá e enfia a língua na minha garganta.

Uma hora depois, quando ambos estamos ofegantes de novo, Sara pergunta se eu me lembro de ter encontrado com ela no metrô.

Fico olhando para o teto, para fingir que não sei do que ela está falando. - Há algumas semanas - ela diz. - Eu entrei na estação Rua Houston e sentei-me na sua frente. Você estava usando um boné do Boston Red Sox e uma camiseta com frase 'Foda-se Nova York'."

Às vezes eu gosto de usar algo bombástico, só para ver qual será a reação dos humanos. Na verdade, tecnicamente é uma interferência, mas eu nunca alterei de maneira drástica a sina de ninguém fazendo isso. Exceto naquela vez em que fiquei girando pela Torre de Londres, durante o reinado de Henrique VIII, com uma túnica onde se lia "Sua mulher é uma puta traidora."

Ops!

- A princípio, eu tinha dificuldade de acreditar como é que você podia sair por aí usando uma coisa como aquela no metrô de Manhattan - comenta Sara. - Mas ninguém teve coragem de enfrentá-lo. Você tem essa aura que não deixa ninguém querer perturbá-lo. Salvo que em vez de intimidar ou de parecer agressivo, você tem essa expressão de profundo tédio. Como se não se importasse com o que alguém possa pensar. Quase isso.

- Foi isso que me intrigou a seu respeito - ela admitiu. - Eu não con- seguia tirar meus olhos de você. Lembra?

Admito, assentindo. Maldita honestidade pós-coito.

- Eu sabia - ela diz, se virando para apoiar-se em um dos cotovelos, me fitando com seus olhos sedutores. - Eu podia apostar pela maneira como você olhou para mim na cobertura. Você me reconheceu também. Mas o seu conhecimento foi mais profundo. Como se me conhecesse há muito mais tempo do que um encontro casual.

Mas o seu

Eu não quero fazer isso. Não quero ter de lhe dar uma resposta, de lhe dizer a verdade. Mas não posso mentir para ela. Não posso fingir que não a tenho seguido por aí desde que se mudou para cá, na tentativa de reunir coragem para falar com ela.

- Tenho seguido você - eu confesso.

Provavelmente não era a melhor maneira de dizer isso, mas foi o que me ocorreu. Ela olha para mim, não rindo porque pensa que eu esteja fazendo uma piada, mas mirando fixamente, me estudando, fazendo com que eu sinta que deveria me levantar e ir embora. - Sério? - pergunta. Eu assinto.

- Desde o metrô?

Novamente faço que sim. Eu só comecei a segui-la depois. O que deveria servir para alguma coisa.

Ela fica me encarando em silêncio por tempo suficiente para que eu pense que talvez tenha de pedir um favor à Memória, para que eu não acabe com um registro policial. Então Sara sorri e diz: - Eu nunca fui seguida antes. - E isso é bom ou ruim? - pergunto.

- Bom - ela responde, e a palavra é dita de um jeito tão suave e sen- sual que soa como se ela estivesse ronronando. - Sem dúvida é bom.

Os momentos seguintes transcorrem em uma mistura de alívio e tensão sexual, como se fosse a única coisa que eu possa fazer para mostrar a ela meu agradecimento por não me castigar com uma ordem de restrição. - No que você está pensando - ela pergunta.

Eu olho para ela, para essa mulher que ajuda os sem-teto e que não levanta sua voz com raiva e que ouve as pessoas com genuíno interesse. Essa mulher que fuma maconha e que gosta de ser seguida e que faz sexo com uma entidade imortal que acaba de conhecer. Essa mulher que transou com Fado e que está na Trilha de Destino.

- Você é um enigma - eu digo.

Ela me analisa, ainda inclinada sobre o cotovelo, a cabeça apoiada na mão. -Você é um dos homens mais incomuns que eu encontrei - diz, enquanto sua outra mão desliza pelo meu peito, passa pela barriga e seus dedos se enroscam em meu excitado acessório. - E o mais potente.

Valeu, Engenhosidade.

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