Capítulo-45

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O fim do ano geralmente é meu período favorito para observar os huma- nos em toda a sua indulgência.
Cestas de Natal cheias de caviar Beluga, patê de fígado e meias de caxemira rosa.
Lojas de departamentos cheias de atrativos, tentações e mercadorias irresistíveis.
Shoppings cheios de homens e mulheres gastando muito além de suas posses.
No passado, eu me sentaria para observar esse desfile de humanos gulosos gastando e consumindo como se seus futuros dependessem do sig- nificado de seus presentes de Natal. Mas, este ano, pareço não conseguir entrar no espírito das festas. Ao menos não do jeito que costumava antes.
Em vez disso, me sento em um banco do centro de compras South Street Seaport, em frente à Abercrombie & Fitch, e fico olhando a multidão festiva em seu estado de consumo frenético e acho que começo a entender por que os humanos continuam a fazer dívidas e recorrer a cartões de crédito, embora haja dívidas a saldar desde junho.
Não é só porque suas existências estão vazias e eles tentam preencher as lacunas com Godiva e Cartier e Victoria's Secrets. É porque eles têm pessoas em suas vidas, amigos e familiares e amores que são importantes para eles. Alguém a quem querem agradar. Alguém para quem desejam fazer algo especial. Alguém a quem querem demonstrar a grandeza de seu amor.
Na verdade, a maioria deles está equivocada quando quer expressar esse amor em forma de chocolate, jóias ou roupas íntimas em vez de demonstrar isso diariamente, sem o uso de algo como um Código Universal de Produto, mas, no final das contas, suas intenções são boas.
Percebo isso porque, pela primeira vez em meus duzentos e cinqüenta mil anos de existência neste planeta, tenho alguém especial para mimar. Alguém cuja vida enriqueceu a minha. Alguém que mal posso esperar para ver usando a camisolinha esvoaçante de seda púrpura com calcinhas combinando que eu comprei para ela na Victoria's Secret.
Estou imaginando como é que posso declarar isso como despesa cor- porativa.
Meu rosto se abre num sorriso quando imagino a expressão de Sara ao abrir a caixa. Quando imagino sua reação e seu sorriso. Quando eu imagino como aquela cor ficará bem contra sua pele clara. E então uma voz diz: - Olha só se não é o Senhor Felizinho.
E subitamente eu penso em um cenário diferente. Pense em decapitações.
Pense em arrastados e esquartejados. Pense nos julgamentos das bruxas de Salem. - Estamos de bom humor -, diz Destino. E então nota que meu sorriso se desmontou. - Ou talvez não...
Antes que eu possa protestar, ela senta ao meu lado no banco.
- E então.. como é que é ser destituído de seus poderes? -, pergunta Destino.
O problema sobre Destino é que ela é visível.
Ao nosso redor, humanos homens olham em nossa direção. Os que estão com suas esposas e namoradas fingem que não estão encarando, mas é muito difícil não notar Destino, que parece uma prostituta duende.
Ela está usando um chapéu vermelho de Papai Noel, uma falsa gola alta de veludo também vermelho e uma minissaia de padrão escolar e botas de plataforma, meio cano, igualmente vermelhas.
- Você não vai me desejar feliz Natal? -, ela diz.
Minha primeira reação é mandá-la para o inferno, mas isso não ia combinar com o espírito do feriado e não quero permitir que Destino arruíne meu bom humor. Além disso, ela já esteve no inferno. Nós todos estivemos. É um desses lugares que você tem de visitar ao menos uma vez.
- Você está bem festiva -, eu digo, tentando ser agradável, ao apontar sua pulseira de sininhos.
- Achei que isso daria um toque divertido -, diz Destino, balançando seu pulso. - Posso tocar quase qualquer canção de festas. Minha favorita é 'A Holly Jolly Christmas', mas só quando estou transando na posição papai e mamãe. - Isso é muito Burl Ives -, comento.
- Não quer entrar no ritmo de festa comigo? -, ela pergunta, alisando suas coxas. - Não estou usando nenhuma roupa de baixo.
- Grande surpresa, essa.
- Talvez eu possa usar algumas dessas suas -, diz Destino, espiando dentro de minha sacola da Victoria's Secret. - Presente para alguém? Ou isso faz parte do novo Fábio?
- É um presente -, digo, deslocando a sacola para meu outro lado. - Para quem? -, ela pergunta, arqueando sua sobrancelha esquerda.
Como se ela não soubesse.
Destino fica só me olhando, sorrindo daquele jeito dela, de gato da Alice, esperando minha resposta.
- Você realmente se importa com ela, não é mesmo? -, pergunta.
- Eu me importo com quem? -, digo, me fingindo de bobo. Ambos sabemos do que estamos falando. Só não quero admitir nada, para o caso de Destino estar usando um gravador. Não quero ter mais problemas do que os que já tenho.
- Você sabe que não pode ficar com ela -, Destino diz.
Um menininho, de não mais de seis anos, está apontando para Destino e quer saber, de sua mãe, se pode sentar no colo daquela duende. O pai dele parece querer perguntar a mesma coisa.
- Realmente é triste -, comenta Destino, balançando um de seus pul- sos e fazendo soar os sininhos. - Nós nos divertíamos tanto juntos, você e eu. Controlando os futuros dos humanos. Mantendo o Cosmos em equilíbrio. Todos esses milênios temos feito sexo sem contato. Na Grande Muralha. Durante a Guerra de Tróia. No Vaticano...
Uma mulher idosa, sentada no banco diante de nós, olha para Destino com desaprovação.
- Apesar de tudo, vou sentir sua falta, Fábio.
- Bem, eu ainda não fui permanentemente destituído de minha posição -, comento. - Portanto, não fique tão tristinha por minha causa.
- Ah... vamos, Fááááááááááááábio. Você acha mesmo que Jerry vai de- volver seu emprego depois daqueles trinta e oito humanos que você matou? - Não era minha intenção matá-los -, digo um pouco alto demais. A mulher idosa sentada diante de nós se levanta e se afasta, olhando para trás de um jeito que me faz pensar que tenho de ir embora antes que ela chame a segurança do shopping.
- Bem... foi divertido, Fábio -, diz Destino se levantando e fazendo soar os sininhos. - Mas, desculpe, eu tenho um encontro com Casualidade.
Eu me sento no banco e observo enquanto ela se vai, as cabeças se virando, homens e mulheres cativados pelo encanto de Destino, até que ela desapareça - seu longilíneo, vermelho, sedutor corpo deslizando no meio da multidão.
Permaneço ali durante alguns minutos, tentando recuperar o espírito festivo com que estava antes de Destino aparecer. Mas, fosse qual fosse o ânimo agradável que me tomara, já desapareceu, então pego minha sacola da Victoria's Secret, rapidamente saio de lá e caminho em direção à estação da rua Fulton para pegar o metrô rumo à parte alta da cidade.
O trem está cheio de Ebenezer Scrooges e Tiny Tims. De George Bai-leys e Henry Potters. De Kris Kringles e Susan Walkers. Descendo e subindo nas estações da rua Bleecker e Astor Place e Union Square. Na verdade, é Natal, então todo mundo apenas entra no espírito da data, mas todos os humanos que estão no metrô parecem estar usando a cor favorita de Destino.
Mulheres com boinas vermelhas e luvas de couro vermelhas. Ado- lescentes com tênis vermelhos e gorros vermelhos de tricô. Homens com cachecóis de lã vermelha e gravatas de seda vermelha. Até mesmo o sem--teto que fica no metrô o dia inteiro e cheira a urina está usando uma bandana vermelha.
Talvez eles estejam apenas sendo festivos. Ou talvez os humanos usem vermelho todo o tempo e eu apenas nunca notei. Mas, por alguma razão, isso dispara algo que Preguiça me disse no café da manhã, outro dia. Sobre como talvez possa haver outra coisa que eu não levei em consideração. Algo que não percebi. Algo sobre a possibilidade de que talvez a morte de todos esses humanos não seja culpa minha.
Quando o trem passa pelas estações da rua 23 e, depois, da rua 28, eu me vejo pensando sobre uma coisa que Destino me disse no shopping, uma coisa sobre o número de humanos que matei, e começo a contar os humanos em meu caminho que morreram depois que eu interferi em suas sinas. Voltando a Nicolas Jansen, meu primeiro convertido, eu chego à contagem de trinta e oito. Então, conto de novo, apenas para ter certeza, de Nicolas até o mais recente e reconto, chegando ao mesmo número. Trinta e oito.
E fico imaginando como Destino ficou sabendo do número exato de humanos que eu matei.
Com certeza, ela poderia ter ouvido por Rumor ou Fofoca, mas isso seria um tremendo golpe de sorte. E duvido que Jerry teria tornado público qualquer detalhe sobre minhas transgressões. Embora ele possa ser dogmático e vingativo às vezes, não posso pôr em dúvida sua integridade. Além disso, até onde eu saiba, ele não estava ciente dos humanos em meu caminho que morreram, exceto daqueles que ele me mostrou na projeção que preparou na igreja de Rockford.
Na outra extremidade do vagão está um homem de meia-idade que, se eu pudesse ler o que o espera, provavelmente estaria fadado a um futuro caindo em tentação. Ele simplesmente tinha aquele olhar. Por sinal, eu vejo como ele está olhando para duas colegiais menores de idade, que estão sentadas diante dele.
E isso me leva a pensar em Darren Stafford.
Fico imaginando sobre o que Destino estava fazendo ao perambular na área externa do apartamento de Darren, naquela noite em que apareci lá. Com certeza, tinha todas as razões para estar ali. Afinal, Darren Stafford estava tecnicamente na trilha dela, mesmo que isso fosse ilegítimo. Mas Destino não é do tipo sentimental. Especialmente se tivesse percebido que Darren Stafford originalmente estava na minha. Então eu me lembro de como ela se transportou dali tão logo me viu.
Fico pensando no que aconteceu com Darren Stafford no período inter- mediário entre minha ligação a ele e o momento em que decidiu se enforcar.
Fico pensando se a presença de Destino no apartamento dele foi um procedimento de rotina.
Fico pensando se Destino sabia sobre todos os humanos que eu tinha encaminhado para sua trilha.
Quando chegamos à minha parada, saio da estação e telefono para Dennis de meu celular. Eu sei que ele não gosta de ser perturbado quando está trabalhando, mas isso não pode esperar. - Sim -, ele diz.
Dennis nunca foi de muita conversa fiada.
- Você se lembra de algo fora do comum sobre a morte de Darren Stafford?
- Quem é Darren Stafford? -, ele pergunta, parecendo irritado. Ouço sirenes ao fundo.
- Você sabe, o sujeito de Duluth que se matou.
- Você tem noção de quantas pessoas em Duluth cometem suicídio? -, ele diz. - Vai precisar ser mais preciso. Eu lhe ofereço mais detalhes.
- Tá certo -, ele comenta. - Aquele cara. Apartamento de péssima qualidade. Carpete marrom. Enforcou-se com uma gravata.
- É esse mesmo.
- E o que você quer saber sobre ele? -, pergunta. Ouço um disparo de arma de fogo, ao fundo.

- Você notou alguma coisa estranha? -, questiono. - Qualquer coisa? - Você quer dizer além do fato de que ele não estava destinado a morrer, ainda?
Obviamente Dennis ainda está um pouco amargo.
- Quero dizer algo que poderia indicar que ele realmente não se sui- cidou -, digo.
- Quer dizer, como se tivesse sido um acidente?
- Quero dizer como se alguém o tivesse ajudado -, continuo. - Até onde posso dizer, o sujeito pegou uma gravata vermelha clássica e se estrangulou -, diz Dennis. - Não sei dizer se alguém o ajudou.
Ouço algo explodir, ao fundo.
- Falou uma gravata vermelha clássica? -, pergunto.
- Isso mesmo -, ele confirma. - JCPenney. Microfibra de poliéster. Fei- ta na China. Artesanal, produto de qualidade. Ouço uma mulher gritando, ao fundo. - Olhe -, diz Dennis, - tenho de correr. Falo com você mais tarde. E então a linha cai. E a ficha também.
Desligo meu celular com a imagem de Darren Stafford em minha mente, balançando do ventilador de teto, preso por sua gravata. Sua gravata vermelha.
E fico pensando nas fotografias que Jerry me mostrou na igreja de Rockford, em Illinois. Todos os humanos em minha trilha que morreram. Aqueles que supostamente eu matei graças à minha arrogância. George e Carla Baer com as mordaças de borracha vermelha. Cliff Brooks devorado por um cachorro que usava uma coleira vermelha. Nicolas Jansen empalado em uma cruz, seu hábito de monge fechado com uma faixa vermelha.
Em cada fotografia, em cada morto humano, algo vermelho.
Sapatos vermelhos. Batom vermelho. Uma bola de boliche vermelha.
É tão sutil e tão óbvio. Algo que eu não pensaria em procurar. Algo que nunca imaginei, mas que faz muito sentido. Algo que explica por que o universo não corrigiu.
Foi Destino quem andou matando meus humanos.

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