Capítulo-49

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Acordo sozinho na cama de Sara.

Pelas frestas de luz da janela do quarto posso ver o começo de um dia cinzento e nublado em Manhattan, na difusa claridade da manhã. Quando me viro para olhar o relógio da mesa de cabeceira, os números verdes digitais indicam 7h37, em meio ao lusco-fusco do ambiente.
A principio, imagino que Sara já tenha ido embora, depois de levantar cedo e seguir até a academia e em vinte e três minutos eu estarei
apagado de sua memória para sempre. Então, ouço os inconfundíveis acordes do Concerto de piano nº 27 de Mozart vindo da sala de estar, e o som de alguém fazendo barulho na cozinha e antes que você possa dizer "Los Angeles - cidade proibida deveria ter ganho o Oscar de melhor filme em 1997", eu atravesso a porta do quarto.
Sei muito bem o que eu disse a respeito de não ser egoísta, mas preciso que Sara saiba que não vai lembrar nada sobre mim ou nós. Apesar de todas as probabilidades em contrário, preciso que ela tente se lembrar. Que tente guardar algo, apenas uma lembrança e talvez, apenas talvez, se ela puder fazer isso haja uma chance de que possamos continuar juntos.
Percebo, enquanto caminho até a cozinha, que teria sido mais apropriado fazer esse apelo usando alguma roupa. Ou ao menos um roupão de banho. Além disso, tenho uma ereção matinal.
Bem, ao menos vou parecer convincente.
Sara está sentada ã mesa da cozinha usando um jeans Lucky Brand e uma malha de caxemira vermelha que eu nunca tinha visto antes. Está de costas para mim, enquanto come os restos daquele macarrão tailandês com um garfo.
- Sara -, digo. - Tenho algo importante para lhe contar.
Ela dá meia-volta em sua cadeira para olhar em minha direção, engole uma porção de comida, então olha para mim de cima a baixo com um sorriso e diz: - Está bem visível.
- Não -, falo. -Isto é sério.
Ela me encara, obviamente com uma expressão divertida, depois completa a volta na cadeira e se inclina para a frente, com os cotovelos nos joelhos e o queixo nas mãos.
- Muito bem -, diz. -Estou ouvindo.
Não sei bem como dizer a ela, de maneira que simplesmente deixo escapar.
- Em cerca de trinta minutos, você não vai mais se lembrar de mim. Ela continua sentada ali, me olhando com o mesmo sorriso divertido.
- Não sei, não -, comenta, analisando minha vestimenta humana. - Você é um sujeito difícil de se esquecer.
- Você não está entendendo -, digo enquanto me agacho diante de Sara e seguro suas mãos nas minhas.
- Você vai se esquecer de tudo. De mim. De nós. De Jerry...
- Jerry? -, ela diz, com os olhos esbugalhados. - Oh, meu Deus! Será que fizemos um ménage?
- Sara, eu não estou mesmo brincando.
- Nem eu. Ela levanta e caminha até a porta de seu quarto, olhando para dentro. - Nós transamos a três? Porque honestamente eu não consigo lembrar.
Ah, não! Olho para o relógio da cozinha. Eu devia ter mais dezenove minutos antes da limpeza.
A menos que Memória tenha chegado adiantada.
- Sara -, falo, ficando em pé. - Sara, você sabe o meu nome?
Ela olha para mim, da porta do quarto, depois para cima, como se estivesse tentando lembrar algo anterior e volta a me fitar com um sorriso tímido. - Eu entendo que você não é o Jerry.
- Não -, digo. - Não sou o Jerry. Você realmente não sabe meu nome? Sara sorri novamente e encolhe os ombros. - Eu sei. É ruim. Mas, para ser honesta, eu não me lembro de nada sobre a última noite. Acho que bebi demais. Embora eu não esteja me sentindo de ressaca.
fiável?
Memória chegou antes. Maldita. Por que ela não pode ser mais con-
- Então, qual é o seu nome? -, Sara pergunta.
- Fábio -, digo com um suspiro, minha ereção matinal desfeita. - Meu nome é Fábio.
- Sério? -, ela diz, rindo. - Você não tem cara de Fábio.
Isso foi exatamente o que ela me disse na primeira vez que nos co- nhecemos, só que sem a risada. Mesmo assim, isso me faz pensar se há uma chance.
Nu e flácido, ando até Sara e tomo suas mãos nas minhas, de novo. - Quem sabe ainda não seja muito tarde. Quem sabe você ainda possa lembrar. - Veja, Fábio -, ela diz, rindo novamente. - Seu nome é mesmo esse? Eu apenas balanço a cabeça. Se já não tivesse perdido a ereção, isso ia acontecer agora mesmo.
- Olha. Você é um homem muito atraente, com um corpo inacreditável -, ela diz, soltando as mãos. - E eu tenho certeza de que nos divertimos muito na noite passada. Mas a verdade é que não estou procurando um relacionamento nesta fase. Então acho que talvez seja melhor que a gente encare isso como isso foi. - E o que foi isso? - Uma transa de uma noite só. Beleza! Eles fizeram uma limpeza de memória nela com um filtro de fobia por compromisso.
Começo a responder, a dizer algo que fará com que ela se lembre de mim. Algo que fará com que mude de idéia.
Não sei bem o que vou dizer, mas, quando abro a boca, o que sai é "ai!". - Sinto muito -, Sara continua. - Mas não estou pronta para nada sério agora.
Aceno para que ela não diga nada e me curvo, colocando ambas as mãos em meus joelhos.
De repente não me sinto muito bem.
- O que você tem? -, pergunta Sara, mais desconfiada do que preocu- pada, enquanto dá um passo atrás.
Eu balanço a cabeça. Parece que alguém ligou um liqüidificador em meu estômago.
Ou é assim que a gente se sente quando tem o coração partido ou talvez minha transformação tenha começado prematuramente. Será que ninguém mais cumpre agenda?
Sinto uma câimbra e deixo escapar um gemido. Depois, outra câimbra faz com que eu me encolha. Sara está dizendo algo sobre médicos e pronto-socorro e colocar minhas roupas, mas mal posso ouvi-la. O liquidificador em meu ômago está batendo mais rápido, estendendo-se até minha virilha e meu peito.
A transformação de imortal para mortal é tão dolorosa quanto você imagina. Com certeza eu nunca senti nada assim antes, mas todos nós já havíamos lido os casos para estudo de Lúcifer e Azazel, durante a Introdução para a Imortalidade.
Primeiro, vem a sensação de que seu interior está todo revolvido. A síndrome do liquidificador. Isso continua por alguns minutos, espalhando-se por toda a sua vestimenta humana até que você vira uma gigantesca tigela de massa cósmica.
Pouco depois, seu interior implode.
Imagine todos os seus órgãos e vasos sangüíneos e cartilagens e ossos subitamente transformados em uma supernova, explodindo dentro dos limites de sua pele. Agora, imagine o inverso.
Quando eu implodo, a fulgurante bola de luz contida dentro de minha vestimenta humana se expande, de maneira que eu pareço um balão superinflado. Em seguida, ela entra em colapso t começa a esfriar, formando ossos e órgãos e vasos sangüíneos enquanto minha vestimenta humana vira carne. Acontece que, como minha fulgurante bola de luz, que era meu eu imortal, era três vezes maior do que a massa de componentes internos contidos em um mortal comum, será necessário expelir uma enorme quantidade de resíduos.
Pense em intoxicação alimentar. Pense em congestão estomacal; Pense na Grande Inundação de 1889. O liquidificador ainda está funcionando em direção a minhas pernas e minha cabeça e percebo que não terei tempo de voltar para o meu apartamento.
Antes que perca minha capacidade de andar, passo por Sara camba- leando, quase batendo nela, invado seu quarto e alcanço o seu banheiro.
- Ei! -, Sara grita atrás de mim, sua voz abafada pelo intenso ruído em minhas orelhas.
Eu a ignoro e entro no banheiro, esperando que possa me trancar lá antes da implosão. Mal entro e fecho a porta, o liquidificador subitamente para. Por um momento não há mais nada. Nem câimbras. Nem desconforto Nem mistura. Apenas um silêncio sobrenatural dentro de mim.
- Fábio -, diz Sara do outro lado da porta. - O que está acontecendo? Antes que eu possa responder ou me dirigir à privada, meu interior implode.
Eu caio no chão, entre contorções e gritos, meu interior oscilando entre fogo e frio congelante, minha imortalidade excedente purgando de cada orifício até que penso que vou morrer. Até que eu comece a querer estar morto. Não sei quanto tempo isso demorou. Talvez trinta segundos, talvez trinta minutos, mas, quando aquilo finalmente para, me deixa ofegante e mortal no chão do banheiro, em uma piscina de detritos não humanos, de um mau cheiro insuportável, coagulados e fumegantes.
De qualquer forma, não acho que isso vá me ajudar a conseguir um segundo encontro.

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