Capítulo-51

60 2 0
                                    

Na manhã seguinte à minha primeira noite dormindo ao relento, estou sentado em um banco do Central Park imaginando se pode ser considerado assédio se por acaso Sara passar diante de mim fazendo exercícios, sendo eu um sem-teto que vive aqui. Então se aproxima de mim uma mulher de rua puxando um carrinho de duas rodas e usando umas cinco camadas de roupas e um gorro de malha cor-de-rosa. A princípio, eu penso que vai me pedir dinheiro, até que ela se senta a meu lado e diz: - Você é novo aqui, não é?.
Não estou seguro se ela está falando sobre o fato de eu ser um sem-teto ou mortal, mas acho que isso realmente não importa. - Como sabe disso?
- Eu sempre reconheço os novos -, ela responde, balançando a cabeça. Fico olhando-a, em suas camadas de roupa e seu cabelo duro escapando por buracos de sua boina de tricô e imagino há quanto tempo ela está nas ruas.
- Você dormiu no parque? -, ela pergunta.
- Só na noite passada -, digo - Mas não dormi muito.
Ela confirma com a cabeça. - É difícil dormir no parque. E nem sempre a salvo de perigos. Você precisa ir a algum lugar seguro.
Fico ali sentado, esperando que me diga onde seria esse lugar, algo como
o Plaza ou o Four Seasons ou a Trump Tower, mas ela apenas permanece ali, sorrindo e balançando a cabeça, movimentando-se para a frente e para trás, seguindo as batidas de seu próprio tambor.
Finalmente, ela se levanta e começa a se afastar, levando o carrinho com seus pertences, até que para e se volta para mim. - Venha -, diz. - Eu não tenho o dia inteiro.
Depois de um momento de hesitação, fico em pé e sigo ao lado dela, enquanto ela se encaminha para a Quinta Avenida.
- Você acreditaria em mim se eu lhe dissesse que já fui imortal? -, digo.
Ela me olha e sorri concordando. - Todos costumávamos ser.

O nome dela é Mona, diminutivo de Ramona, e me leva para a Coalizão Distrital dos Abrigos, na 77th East, um centro para desabrigados a dezessete quarteirões de distância de meu antigo apartamento, onde recebo alimento quente, tomo um banho morno de chuveiro e orientação quanto a encontrar um lugar seguro para dormir.
É também onde pego meu primeiro resfriado.
Não tenho bem certeza se foi quando Mona me deu um abraço ou quan- do Paul, o sem-teto sentado perto de mim à mesa de jantar, espirrou sobre meu pedaço de carne e purê de batata ou quando peguei no sono em um colchão no interior de um salão não ventilado com uma centena de moradores de rua, a metade deles tossindo a noite toda. Mas quando acordo, dois dias depois, sinto essa estranha sensação no fundo de minha garganta. Como se houvesse algum revestimento extra. Quando me sento, minha cabeça parece cheia de areia. Depois, meu nariz começa a formigar e, antes que me dê conta, estou espirrando e espalhando saliva e perdigotos sobre mim mesmo.
Aparentemente, tudo o que tenho é um resfriado comum, mas para mim é como se estivesse morrendo. Minha cabeça parece cheia de concreto que começa a endurecer e apertar meu cérebro. E minha garganta dói tanto que não consigo comer.
Os voluntários da coalizão providenciam atendimento médico para mim,
o que significa tomar injeções e um xarope de gosto desagradável. Mas o fato de que eles se interessam por mim, de que eles se preocupam em alimentar e vestir e abrigar e oferecer atendimento a alguém que acabaram de conhecer me enche de gratidão. Com esperança. E imagino se é como meus humanos se sentiam depois que eu os ajudava.
Talvez seja isso que significa ser humano. Conectar-se com os outros. Ter um senso de companheirismo. Compartilhar a experiência de viver em vez de alardear seu sucesso ou lutar sozinho.
Talvez todos tenhamos uma contribuição a dar.
Então, alguns dias depois, quando finalmente começo a sentir que não vou mesmo morrer, decido começar a ajudar meus humanos de novo. Mesmo que não seja mais Fado, ainda penso neles como se fossem meus. Mas, em vez de auxiliar os compradores compulsivos e os consumistas viciados e os dependentes de cartões de crédito que povoam os centros de compras e as lojas de departamentos, eu me concentro nos sem-teto, que compartilham o abrigo e as ruas comigo. Além disso, eu seria expulso da Macy's antes mesmo de chegar perto dos artigos para o lar.
Na verdade, não posso ver os caminhos deles. Não posso ver quais decisões eles tomaram para chegar aqui ou que escolhas farão amanhã. Não posso ver seus erros ou transgressões ou padrões de comportamento. Mas percebo que não tem importância. Não preciso saber o passado de alguém para fazer com que se sinta melhor sobre seu futuro.
Não preciso saber por que alguém está com fome para lhe conseguir algum alimento.
Não preciso saber por que alguém está com frio para aquecer a pessoa. Não preciso saber por que alguém está deprimido para lhe oferecer esperança.
Então digo aos jovens sem-teto que dormem no catre ao meu lado que as coisas podem dar uma virada se eles acreditarem em si mesmos.
Ajudo uma mulher de meia-idade, que encontrei no Tompkins Squa-re Park e não comia há dois dias, a conseguir uma refeição quentinha.
Dou minhas luvas a uma criança sem-teto que fica mendigando na neve, na frente do McDonald's, da Broadway.
Durante a semana seguinte, eu ofereço ajuda e orientação e sugestões a meus humanos, mas não consigo saber que efeito tenho sobre eles. É estranho não saber onde meus humanos estiveram antes e para onde vão, não saber se eu efetivamente os ajudo a encontrar o rumo para um caminho melhor, mas, quanto mais eu os ajudo, mais me sinto melhor comigo mesmo. Quanto mais eu os ajudo, mais me parece que estou fazendo algo certo, como se estivesse encontrando o limite máximo de minha própria trilha. Mais parece que sou relevante de novo.
E penso que talvez essa coisa de mortalidade não vá ser tão ruim.
Então um dia, enquanto estou sentado em um banco do Bethesda Terrace comendo um cachorro-quente e observando um mágico de rua fazer truques por dinheiro, imaginando se eu poderia ganhar a vida lendo a sorte das pessoas, Destino senta-se ao meu lado.
- Eu sempre amei este lugar -, ela diz. - Lembra como nós costumáva- mos fazer sexo sem contato na fonte? Subitamente, perco o apetite. Destino está usando óculos de sol vermelhos, uma malha de seda vermelha, meias vermelhas e botas vermelhas de meio cano, enquanto eu estou de boné de esqui de lã, malha, abrigo de chuva, calças caqui surradas, ceroulas compridas, dois pares de meias e tênis.
- Você está aqui para se vangloriar? -, pergunto. - Ou o mágico vai descobrir a cura para o herpes?
- Ele? -, diz Destino, apontando para o artista de rua. - Ele não está em meu caminho. Deve estar no seu. Ops! Que tonta eu sou. Quero dizer no caminho de Casualidade.
Este é um daqueles momentos em que eu desejaria que não fosse impossível matar um imortal.
- O que você quer? -, digo.
- Eu estava aqui perto e pensei em dar uma olhada para ver como estão as coisas.
Abro os braços, ainda segurando meu cachorro-quente inacabado. - Bem, como você pode ver, este é meu escritório e eu estou acabando meu almoço gourmet...
- Não precisa se irritar, Fábio.
- Mesmo? Eu pensei que precisava muito.
Destino não responde, apenas se senta ali, sorrindo para mim com aquele jeito de gato de Alice.
- O que você quer? -, pergunto de novo. - Quero ajudar você, com Sara -, ela diz. Eu nunca ri tanto assim desde que o Red Sox vendeu Babe Ruth para os Yankees.
- Estou falando sério -, continua Destino. - Eu me sinto mal com o que aconteceu e quero tentar corrigir as coisas.
- Bem, caso você não saiba, Sara tem uma ordem de restrição contra mim -, digo, recuperando minha amargura. - Eu não posso me aproximar dela de jeito nenhum por mais onze meses. Sem mencionar que ela nem se lembra de mim.
- Detalhes sem importância -, ela comenta. - Você esquece como posso ser influente.
- Então, você está dizendo que pode revogar a ordem de restrição? -, pergunto. - Você pode fazer com que ela se apaixone por mim de novo?
- Tudo o que estou dizendo é que quero ver você e Sara voltarem às boas -, ela diz. - O resto é com você.
Olho para ela, sentada ali toda vermelha e imortal, e quero acreditar no que está dizendo. Quero acreditar que ela quer me ajudar, que está se oferecendo para acertar as coisas. O problema é que não confio nela.
- Não, obrigado.
- Como queira -, ela fala, se levantando. - Eu estou apenas tentando Fazer as pazes. Mas, se você mudar de idéia, tudo o que tem de fazer é esperar por Sara atrás do Metropolitan.
Ela se afasta devagar, entre as sombras do Terrace Arcade, enquanto luto para pensar em uma réplica. Antes que eu possa imaginar algo, Destino desaparece.
Alguns dias depois, vejo Sara correndo no Central Park. Ela não me vê, provavelmente porque não tenho me barbeado e estou usando roupas que consegui no abrigo para sem-tetos, dando uma mijada atrás de uma árvore. Mas apenas a visão dela é suficiente para fazer com que eu perceba o quanto sinto falta dela. O quanto eu a amo. O quanto não posso suportar minha existência sem ela. Maldita Destino! Apesar de meu bom senso indicar que aquilo não pode funcionar, continuo ouvindo a voz de Destino dizendo que ela pode me trazer Sara de volta numa boa, dizendo que quer fazer as coisas certas.
Talvez ela esteja só me fodendo, querendo se divertir à minha custa, me observando e rindo de minha mortalidade, mas eu noto que não posso desistir. Preciso encontrar uma forma de ter Sara de volta. De fazer com que se apaixone por mim. De fazer com que ela retire a ordem de proteção.
Então volto para o abrigo e me arrumo todo. Falo com um dos voluntá- rios sobre as alternativas de emprego que eles oferecem. Pergunto sobre seus programas de ajuda para que eu encontre um lugar permanente para morar.
Afinal de contas, não posso levar Sara ao abrigo, para assistir ao pro- grama do Letterman.
Embora a coalizão ofereça emprego e serviços de moradia, sua lista de espera é mais longa do que posso esperar. Então mendigo em cada esquina disponível. Compro coisas que posso pagar. Pratico o que vou dizer quando a vir. E espero que Destino tenha falado sério.
Três dias antes do fim de fevereiro, estou sentado em um banco do Central Park, atrás do Metropolitan, em frente ao Greywacke Arch. Estou usando as roupas de quando fui despejado, mas devidamente cuidadas na lavanderia que existe na rua da coalizão; com o banho e a barba que fiz pela manhã, você nunca adivinharia que tenho sido um sem-teto desde o mês passado. E embora ainda esteja pegando o jeito de ser humano, acho que seria melhor que a mulher que está tentando convencer a se apaixonar por você não saiba que está morando em um abrigo.
Ainda é muito cedo e o sol apenas começou a se derramar sobre o Queens. Além de umas poucas pessoas que estão passando e de um senhor idoso sentado em um banco diante de mim, não há mais ninguém. Eu seguro com a mão esquerda o buquê de margaridas que comprei e olho para o lado esquerdo, à espera de que a figura confiante, feminina de Sara apareça em meu raio de visão.
Este é um dos lugares onde vi Sara correndo pela primeira vez. Não sei como Destino soube disso. Ou talvez ela nem saiba. Talvez fosse apenas um palpite feliz. Mas sei que Sara passa por aqui com freqüência, porque eu a tenho seguido de novo.
É difícil acabar com velhos hábitos.
Penso em como nos conhecemos no metrô. A silenciosa apresentação. A maneira como ela sorriu para mim e sustentou o olhar, ao mesmo tempo me desarmando e me cativando. Penso em como meu coração dispara sempre que penso nela. Em como nada mais importa, sempre que fito seus olhos. Ela está em minha medula. Ela está no ar que respiro. E, a cada respiração, nela me intoxico. Não tenho de esperar muito para que o objeto de minha intoxicação apareça. À sua aproximação, meu coração palpita e as palmas de minhas mãos suam e eu fico me consumindo em medo e em alegria, ao mesmo tempo.
Quando ela está a menos de seis metros de distância, eu me levanto e mostro as margaridas.
Posso dizer, pela expressão de seu rosto, que ela me vê, mas em vez de parar ou de correr para o outro lado, o que pensei que pudesse ocorrer, ela continua vindo em minha direção, enquanto pega algo de sua bolsi-nha e o levanta em sua mão direita, como se quisesse me mostrar o que é. E penso que talvez ela tenha um presente para mim, também. Quem sabe Destino estivesse certa. Quem sabe tudo ficaria bem.
- Oi, Sara -, digo, estendendo minha mão direita num cumprimento, a esquerda segurando as flores. Antes que eu possa dizer algo mais, Sara se aproxima e, com sua mão direita, pulveriza algo em mim. Depois disso, tudo que ouço é um grito, o meu próprio. Eu cambaleio, limpando meus olhos, e de alguma maneira consigo resvalar até o Greywacke Arch, e chego até o Turtle Pond e mergulho minha cabeça sob a água gelada, tentando acabar com a queimação nos olhos, o que parece piorar mais a situação. Quando finalmente consigo abri-los um pouco, ouço sirenes à distância, vindo pela Quinta Avenida, cada vez mais próximas. Maldita Destino! Sabia que não deveria ter acreditado nela.
Mal posso enxergar, enquanto, tateando, me afasto do Turtle Pond e sigo na direção oeste, pelo Central Park, passando pelo Teatro Delacorte e pela estátua de Romeu e Julieta. A despedida é uma dor tão doce, o cacete! Muito mais uma amarga agonia, se você quer saber.
Nunca gostei de Shakespeare. Aquele babaca cheio de pompa.
No momento em que saio do Central Park West e desço para pegar o metrô, não ouço mais as sirenes e meus olhos se abrem o suficiente para que eu tenha alguma visão periférica, mas ainda parece que tenho mil agulhas enfiadas dentro do globo ocular.
Pego o trem B para o centro da cidade, desço no Rockefeller Center e vou até a catedral de St. Patrick, onde me sento num dos bancos da parte traseira e faço uma pose de piedoso fiel, enquanto trato de lidar com o fato de que sou um idiota e que o amor de minha vida acaba de borrifar meus olhos com spray de pimenta.
Gostaria de pensar que foi apenas uma reação instintiva. Que tudo o que Sara precisa é de um pouco mais de tempo para se recobrar, para se lembrar de mim, para perceber que me ama. Só que eu bem sei que uma limpeza de memória é irreversível. Ela nunca vai se lembrar de mim. E agora é improvável que venha a me amar.
Enquanto minhas lágrimas continuam a lavar o spray de pimenta de meus olhos, eu me levanto e ando pela catedral, olhando as estações da via crucis, até que fico parado em frente à da pietá. Não vou muito a igrejas. Quando você tem encontros regulares com Deus e ele o tem em sua discagem automática, você fica meio farto dele. Mas é meio assustador olhar para Jesus desse jeito, morto nos braços de Maria, congelados em um momento que eu testemunhei.
Embora ele não fosse tão bonito como a maioria dos artistas o re- presenta e mesmo que ninguém jamais tenha captado direito sua expressão (Jesus sempre tendia a ter uma expressão divertida no rosto, mesmo quanto estava em mortal agonia), ver o salvador assim, através de minhas lágrimas induzidas pelo spray de pimenta, faz com que eu perceba o egoísmo de meus esforços românticos.
Mesmo se eu conseguisse fazer com que Sara se lembrasse de mim ou se apaixonasse por mim, eu estaria afetando seu destino. Ela está destinada a ser a mãe do próximo salvador, a Madonna do novo milênio, e eu estaria em seu caminho. Não é essa exatamente a notoriedade que estou procurando. Além disso, agora sou mortal, então teoricamente poderia engravidar Sara antes de Jerry. E eu não sei se seria um bom pai, menos ainda o pai de um Messias bastardo, um substituto de Jerry.
Assim, apesar do meu amor por ela e de como é doloroso ter de admitir isso e pelo fato que estou puto pra caralho com Destino, percebo que tenho de abrir mão de Sara. Pelo bem dos humanos que tentei ajudar e pelo circulo cósmico do universo, tenho de renunciar a ela.
As lágrimas que antes lavavam o spray de pimenta agora estão lavando a minha dor.
Saio da St. Patrick e me dirijo à Segunda Avenida, parando em uma loja de esquina para pegar uma garrafa de Country Club Malt Liquor, a qual termino em menos da metade do trajeto de vinte quarteirões de volta à Coalizão de Abrigos. Naquela altura, a manhã já estava terminando, então eu penso que talvez seja melhor parar e pegar outra garrafa, uma vez que a primeira desceu tão fácil.
A segunda acaba mais fácil ainda. E subitamente eu me sinto melhor. Estou me lembrando de outro de meus artistas favoritos do século vinte, a banda Sublime, que parecia destinada à celebridade, até que o vocalista Brad Nowell morreu de overdose de heroina. Como muitos outros músicos em meu caminho.
Em seu primeiro álbum, 40 Oz. to Freedom, estava a canção título que parece capturar meu atual estado de ânimo: "Um litro para a liberdade é a única chance que eu tenho/ para me sentir bem mesmo que me sinta mal".
Estou a menos de dois quarteirões do abrigo, felizmente bêbado e começando a entender por que as garrafas de um litro são tão populares, especialmente porque são mais baratas e eu estou com um orçamento limitado, quando eu vejo passar um carro de polícia na rua 77, um quarteirão e meio à minha frente.
Em vez de continuar pela Segunda Avenida, tomo a direção leste na 76, até a Primeira, depois sigo para o norte, na 77, onde dou uma olhada na esquina e vejo o carro de polícia estacionado em frente ao abrigo, e o oficial falando com outro colega inclinado na janela do passageiro. Como se eu não tivesse problemas suficientes. Não sei como eles me encontraram. Provavelmente através do computador central do Departamento de Serviços a Desabrigados de Nova York. Mas meu palpite é que, depois que quebrei os termos da ordem de proteção, eles emitiram um mandado de prisão para mim. Isso é o que eu ganho por ouvir Destino. Dou uma olhada para a rua através de meus dois litros de embriaguez e penso no que vou fazer agora. Não tenho namorada nem pertences nem lugar para dormir e os tiras estão procurando por mim. Então, faço a única coisa que posso.
Ando até a próxima adega e compro outro litro de liberdade.

DesastreOnde histórias criam vida. Descubra agora