Capítulo-50

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Durante as duas semanas seguintes eu telefono para Sara todos os dias, me desculpando pela bagunça que aprontei em seu banheiro e me oferecendo para levá-la a jantar, na esperança de compensar o que fiz, mas ela não retorna minhas chamadas. Então eu lhe mando flores e doces. E garrafas de champanhe. E roupas íntimas da Victoria's Secret, porque sei o quanto ela adora calcinhas de seda.
Por alguma razão, não recebo um cartão de agradecimento.
Já é bastante difícil lidar com a rejeição diária de sua ex-namorada, mas, quando ainda tem de se acostumar a andar por aí com um pesado, peludo corpo humano de uns oitenta quilos que não vem equipado com autolimpeza para a carne ou ar-condicionado opcional, você tende a ficar um pouco irritado.
Isso sem falar que ainda não fui capaz de arranjar um trabalho. Em parte provavelmente porque tendo a me apresentar como um sabe-tudo nas minhas entrevistas. Mas quando você está vagando por aí por tanto tempo como eu, é um pouco complicado não dizer às pessoas que você sabe mais do que elas.
Essa coisa de ser humano é um pouco mais dura do que parecia. Não sei como esses humanos conseguem. É uma limitação e um obstáculo e uma decepção seguida de outro. Era bem mais fácil quando eu podia fazer tudo o que me desse na telha.
Obviamente, antes de tudo, foi isso mesmo que me meteu nessa con- fusão toda.
Então, o Ano-Novo vem e vai embora e eu continuo tentando. Vou a entrevistas. Aprendo a tomar banho regularmente. Consigo uma peruca e um bigode falsos, para poder seguir Sara sem que ela me reconheça.
No dia seguinte ao que surpreendi Sara em seu trabalho com uma dúzia de rosas, dois oficiais da polícia de Nova York aparecem e me prendem sob acusação de assédio. Quando me algemam, eu me queixo sobre o fato de que não é justo e de como seguir mulheres costumava ser uma parte normal de minha existência. Ao chegar à cela, descubro que não posso contar com Justiça para me liberar. Como meu telefone celular corporativo foi confiscado, não consigo lembrar o número de Carma ou de Dona Sorte ou mesmo de Dennis, porque todos eles estão em minha discagem automática. O único número que sei de cor é o de Sara, e não acho que ela esteja disposta a me ouvir. Mas eu ligo para ela, para tirar a dúvida. Ela desliga antes que eu consiga completar a frase - Oi, Sara, é o Fábio....
Demais para minha única chamada.
Durante a audiência, todos os presentes que eu mandei a Sara são apresentados como evidências contra mim, junto com as fotos do que fiz no banheiro dela e as cartas que lhe escrevi descrevendo detalhes íntimos que sei a respeito dela. Não levou muito tempo para que o juiz expedisse uma ordem de proteção, definindo que eu não posso tentar qualquer tipo de contato com Sara durante um ano.
E fico imaginando como as coisas podem piorar ainda mais.
Quando volto a meu apartamento, descubro que, como resultado da ordem de proteção, fui expulso. Há um aviso em minha porta. Tenho até o fim de janeiro para desocupar o local. Se não fizer isso, serão iniciados procedimentos de expulsão formal.
Então tenho de arranjar outro lugar para morar. Não vejo por que isso possa ser um grande problema. Além disso, eu não poderia mesmo arcar com uma despesa de quase quatro mil dólares mensais, considerando que não tenho renda nenhuma. E com o limite de meu Visa Plus Milhagem estourado, provavelmente é mesmo uma boa idéia encontrar acomodações mais baratas. O problema é que fica meio difícil convencer um proprietário a alugar algo para alguém que está desempregado, tem débitos pendentes de dez mil dólares no cartão de crédito e tem uma ordem de proteção em seus registros criminais. Ser humano é bem complicado.
Durante o resto de janeiro gasto a maior parte de meu tempo pro- curando um lugar para viver e algum tipo de emprego, ambos sem nenhum sucesso. Até me candidato a um emprego como orientador acadêmico, mas aparentemente você precisa ter o grau de mestrado para fazer isso, e em meu currículo Jerry incluiu apenas um bacharelado em humanidades.
Que diabos eu posso fazer com isso?
Por causa da ordem de proteção e das conseqüências que terei de en- frentar caso quebre as regras que tenho de obedecer, fico de olho se Sara não está aonde quer que eu vá. Não quero que ela pense que eu a estou seguindo, mas Manhattan é uma ilha. É difícil não esbarrar em alguém em Nova York, mesmo que legalmente você tenha de estar a cerca de duzentos metros dela. Acontece que não tenho de me preocupar com a possibilidade de dar de cara com Sara no prédio, porque ela se muda antes de mim.
Mesmo assim, penso nela todos os dias. A cada minuto. A cada segundo. O que dificulta ainda mais que eu me concentre em mim. Como é que poderia gostar de ser humano se a única coisa boa sobre minha mortalidade vai chamar a polícia se eu lhe mandar um cartão no Dia dos Namorados?
Então, eu sofro e suspiro e sou despejado de meu apartamento de uns quatro mil dólares mensais com piso de madeira e vistas para o East River e um serviço de portaria durante vinte e quatro horas por dia e um atendimento de camareiros e uma academia e um jardim na cobertura. Vendo todos os pertences que consigo, então consigo ganhar o suficiente para comer. O resto de minhas coisas deixo no apartamento. Não poderia levar comigo. Além disso, a maioria delas me lembra de Sara.
Sem lugar para ir, sigo até East Village para ver se Preguiça e Gula me levantam o ânimo. Ligo para Dona Sorte, em seu flat de Chelsea. Bato à porta do apartamento de porão de Dennis, no Lower East Side. Até procuro Fracasso em seu péssimo estúdio em Battery Park City.
amiga.
Ninguém em casa. Ninguém responde. Ninguém me oferece uma mão
Então, aqui estou, no último dia de janeiro, diante do pôr do sol e sem lugar para onde ir.
Não sei o que esperava.
Acho que esperava que meus amigos continuassem a ser meus amigos. Acho que esperava ser capaz de contar com os relacionamentos que fiz durante esses milênios. Acho que esperava que alguém me ajudasse a perceber o que eu tenho de fazer.
E vejo que sou mais parecido com meus humanos do que imaginava. Estou no controle de minha própria sina agora. De meu próprio futuro. E talvez mais do que outra criatura do universo. E, mesmo assim, estou fazendo um trabalho de merda para tornar minha vida melhor.
Estou sem emprego, sem teto e sem amigos. Ainda por cima, em menos de seis semanas de mortalidade, consegui obter um registro criminal.
Não tenho certeza de qual deveria ser minha sina máxima, pois ob- viamente não posso mais ver isso, mas começo a entender por que os humanos têm tanta dificuldade de se manter em seus caminhos. Tendo de lidar com tantos obstáculos e distrações, talvez eles precisem mesmo de seus iPods e de seus BMWs e de seus DKNY para manter a sanidade.
Pela primeira vez em um mês inteiro eu rio. Não uma risadinha ou uma gargalhada ou uma seqüência de risos contidos e ritmados, mas uma sonora e retumbante risada que soa forçada, mas não é. Daquele tipo que faz as pessoas virarem a cabeça e imaginar se o homem com o sobretudo negro na altura dos joelhos, com os cabelos desgrenhados e barba por fazer há dois dias está em completo domínio de suas faculdades mentais. Eu mesmo fico me perguntando isso. Enquanto caminho de volta para Lower Manhattan até Midtown car- regando nas costas meus pertences pessoais em uma mochila North Face, minha risada ecoa, saindo de minha boca junto com um vapor branco. O sol já se pôs e outra noite de inverno começa, enchendo as ruas de sombras e de luzes de sódio sob as quais se movem homens e mulheres e crianças que tentam se esquivar do lunático às gargalhadas que anda pela calçada.
Ocasionalmente eu paro em uma esquina e grito para quem queira ouvir que já fui Fado. Que eu era um imortal. Que controlava suas vidas. Ninguém ouve. Ninguém se importa. Ninguém acredita em mim. E por que acreditariam? Afinal de contas, não sou mais Fado. Sou apenas Fábio. Fábio Delucci. Um humano com nome falso, passado falso, sem amigos e vivendo no Central Park.
Depois de pegar, uma xícara de café e alguns itens do cardápio de um dólar do McDonalds, eu vago pelo Central Park, passo pelo zoológico e pelo shopping, até encontrar um pequeno trecho de grama fora do caminho, seco e protegido no Ramble, e desenrolo meu saco de dormir. Ali eu me sento e bebo meu café e como meu cheeseburguer com fritas e fico pensando no que vou fazer. Para onde vou. Como me permiti entrar nessa confusão toda.
Não sei o que imaginava que iria acontecer quando perdesse minha imortalidade, mas isso não é exatamente o que eu tinha em mente.

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