Capítulo-54

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Estou suspenso no espaço. Ou algo parecido com o espaço. Está escuro. E vazio. Estou absolutamente sozinho. Só que sinto como se estivesse flutuando na água. E em vez de estar à deriva, em algum espaço cósmico oco, sinto claustrofobia.
Não estou muito certo de há quanto tempo estou nesse estado. Parece que estou consciente dessas sensações há apenas uns poucos minutos. Só que o tempo não faz mais nenhum sentido. A última coisa de que me lembro é saltar da ponte e me virar e olhar para cima, vendo Dennis acenar para mim e pensar algo sobre Sara pouco antes de bater na água. E depois, nada.
Nenhum distanciamento. Nenhuma experiência de estar fora do corpo. Nenhum túnel de luzes ou vozes etéreas ou Jerry esperando para me receber no pós-vida com uma caneca de Guinness.
Nunca pensei muito sobre a morte. É algo com que você não tem de se preocupar quando nunca teve de lidar com um plano de saúde. Tudo o que sei é que não imaginei que fosse ser assim. Acho que esperava algo na linha de Xangri-Lá ou do Jardim do Éden ou dos Campos Elíseos -paradisíacos destinos de férias com uma vegetação abundante e bufês liberados de comida e resorts com tudo incluído no pacote. Talvez até massagens complementares com finais felizes.
Em vez disso, estou flutuando em água sem final feliz à vista. E não posso ver coisa nenhuma.
Eu me movimento e tateio, tentando definir onde eu começo e onde começa o espaço vazio que me rodeia, quando minhas mãos encontram um tipo de barreira. É macia e flexível e se molda quando eu aperto, mas é muito forte para ser rompida. Então eu dou uns pontapés, tentando escapar, mas o limite se mantém.
Fico imaginando se quando saltei da ponte acabei sendo comido por uma baleia ou algum tipo de polvo enorme e estou no estômago desse bicho, sendo digerido lentamente. Só que, até onde sei, não há baleias ou lulas gigantes no porto de Nova York. E as roupas que eu usava sumiram misteriosamente. E há um tipo de parasita, longo e em forma de serpente, ligado ao meu umbigo.
Sara.
Se isso já parece bastante estranho, eu juro que estou ouvindo a voz de
Às vezes ela está só falando, suas palavras são abafadas e sem impor- tância, como se estivesse falando com outra pessoa. Outras vezes, juro que ela está conversando comigo. Não diz meu nome, mas consigo detectar uma intenção em sua voz, simplesmente a mesma. Sua voz quente, de saxofone tenor flutuando pelas paredes de minha esquisita e pequena prisão.
A princípio, pensei que fosse apenas minha imaginação. Lembranças de minha existência ecoando em minha mente desprovida de corpo, enquanto faço a transição da vida para a morte. Só que isso não se parece com nenhuma transição de que já ouvi falar. E as coisas que Sara me diz e a delicada inflexão de arrulho em sua voz não são memórias. Ela nunca falou assim comigo, quando estávamos juntos. Tudo bem, talvez uma ou duas vezes na cama, quando estávamos nos pegando. Mas agora é como se ela estivesse se comunicando com alguém muito mais jovem. Posso estar errado, mas é como eu imagino que ela falaria com uma criança.
Isso me parece assustador.
O caso é que a voz de Sara parece ressoar em tudo ao meu redor. É como se eu pudesse senti-la através desta barreira, através dessa resistente membrana de prisão. Quase posso imaginar o coração dela batendo. E estou envolvido em uma quentura confortável. É como se eu estivesse sendo incubado.
Sinto como se devesse saber o que está acontecendo, mas não consigo entender. Está além do meu alcance. Uma consciência. Um conhecimento. Uma percepção que colocaria minhas presentes circunstâncias no contexto. A flutuação na água.
A prisão em forma de casulo. O calor resplandecente.
O som da voz de Sara e a vibração de suas pulsações.
Não tenho certeza se é no momento em que dou um pontapé de novo e tenho uma resposta de Sara ou quando procuro entre as minhas pernas e percebo que meus dezoito centímetros de virilidade estão reduzidos ao tamanho de um simples grão de amendoim, mas minha epifania chega como a voz de Jerry.
Isso definitivamente não tem nada a ver com a maneira que eu pensava que as coisas iam acontecer. E é meio estranho quando você pensa a respeito. Mas ao menos não tenho de me preocupar com aquela ordem de restrição. E isso, seguramente, é mil vezes melhor do que estar morto.
Não tenho muita certeza de quanto tempo eu tenho. Pelo tamanho de meu amendoim calculo que uns três ou quatro meses, então terei algum tempo para preparar meu futuro pós-fetal. Com certeza, quando sair daqui ainda não estarei completamente formado e pronto para o uso como quando Jerry me criou. Portanto, terei de lidar com as frustrações e limitações da fisiologia humana. Mas eu sempre aprendi depressa e me orgulhei de minha memória.
Ainda assim, seria muito bom se eu tivesse algo para escrever, caso tenha algumas idéias. É um pouco difícil manter um diário quando você está cercado de líquido amniótico. E, de qualquer forma, não acho que um gravador digital passaria pelo canal vaginal.
Isso não é algo que eu consiga prever. A coisa toda do nascimento. Aquela sangueira da placenta e os fluidos corporais. Os gritos e apertões. E, honestamente, como é que vou caber naquela abertura tão apertadi-nha? Diabos, eu mal cabia ali quando estava lá a trabalho. Obviamente, isso foi quando eu era maior do que um amendoim.
Mesmo assim, estou querendo sair daqui. O problema é que, quando eu tiver nascido, a maioria das minhas memórias serão expurgadas. Trata- -se do corolário da Lei da Reencarnação. Nunca pensei que seria aplicável a mim, então não prestei muita atenção na aula. Vai entender! Suponho que posso ter esperança de levar algumas memórias suprimidas comigo, mas, independente de ter ou não acesso a elas, estou ansioso por ver Sara de novo. Ansioso por seu rosto e seu sorriso, seu cheiro e seu riso, seu amor e sua afeição. Ansioso também pela oportunidade de continuar o que comecei. Posso ensinar os humanos a como viver melhor suas vidas. Como tomar boas decisões. Como criar futuros mais benéficos. Posso ensiná-los a evitar seus vícios consumistas. Como parar de depender do mundo externo para se definir. Como encontrar felicidade que não venha dentro de uma sacola da Macy's ou de uma da Toys R Us.
Tudo isso sem ter de se preocupar com represálias de Jerry. Na verdade, há toda aquela coisa da crucificação, mas acho que posso encontrar um meio de escapar disso.
Fico imaginando se alguém vai me trazer incenso e mirra.
Fico imaginando se serei capaz de transformar água em vinho. Fico imaginando se Preguiça e Gula darão bons discípulos. O problema comigo é que sou o próximo Messias.

FIM.

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