Capítulo-39

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Em Rockford, no Illinois, há um velho shopping que foi convertido em igreja. Na verdade, em um centro religioso cristão. Todas as denominações, são bem-vindas.
Metodistas. Mórmons. Luteranos. Batistas. Protestantes. Católicos.
Na fachada do centro religioso, um letreiro eletrônico proclama: Igreja quando você precisa - sete dias por semana! O shopping tinha sediado mais de uma dezena de lojas - incluindo uma agência de viagens, uma chocolataria, um restaurante mexicano e uma JC Penney. Agora, é um lar para mais de seis mil metros quadrados de religião. Um shopping da fé. Consumismo como espiritualidade.
Quando você ultrapassa as portas da frente, é recebido não pelo aroma de pão doce de canela ou pretzels, mas por algumas mesas de rosquinhas e garrafas térmicas de aço com café.
Passa à frente do que antes era a Swiss Colony e a Baskin-Robbins e a Stride Rite e encontra a livraria Ichthus Christian, a loja de presentes Garden of Éden e a loja de departamentos Jesus Christ.
Aqui você pode comprar livros e bíblias, crucifixos e cruzes, imagens e placas.
Rosários, estátuas e presépios. CDs de música, pôsteres e adesivos.
Pode encontrar bonecos que balançam a cabeça com a figura de João Batista, fontes com Moisés, chaveiros de Jesus e Maria.
Prendedores de recados com a figura do anjo da guarda, um conjunto de espetos para milho com imagens dos doze apóstolos e uma linha completa de personagens bíblicas em ação.
Moisés. Abraão. Noé. Judas. Paulo. João Batista. Caim e Abel. Sansão e Dalila. Davi e Golias. A maioria deles é do Velho Testamento, o que faz sentido quando você reflete a respeito. Todas as melhores passagens e derramamento de sangue aconteceram antes que Jerry se tornasse uma deidade bondosa e gentil. Quero dizer, que adolescente freqüentador de igreja realmente gostaria de jogar A Última Ceia ou Quarenta Dias no Deserto, quando pode escolher A Exterminação dos Cananeus ou As Dez Pragas do Egito?
Meus favoritos são O ícone de Deus Todo-Poderoso em Ação com o Manto Sagrado da Invulnerabilidade e O Reino da Metralhadora Kalash-nikov AK-47.
Ou O ícone Lutador de Luxo de Jesus, que vem com um boneco de Messias ninja atirando pregos e um rifle de Mortal Matador--Cruzado.
Depois que você passa pela fileira de lojas oferecendo essa parafernália religiosa, chega ao centro da igreja-shopping, que costumava estar cheio de fontes e bancos e plantas em vasos, mas agora tem um quarteto de monitores de tevê de cinqüenta polegadas mostrando o sermão que acontece no auditório principal. E ao longo de todas as paredes que seguem a entrada, onde antes havia a loja de departamentos Bergners cheia de clientes carregando sacolas cheias de sapatos e roupas e acessórios para casa, agora perambulam fregueses com sacolas repletas de sandálias de Jesus e vestidos de verão Sudário de Turim e toalhas de banho Adão e Eva.
O engraçado é que, ao contrário dos símbolos religiosos produzidos em massa que são oferecidos nas lojas, não há cruzes nem pinturas de ícones ou imagens em nenhum outro lugar da igreja-shopping.
Finalmente, quando você chega ao auditório principal em que foi convertida a loja de departamentos Bergners, encontra um espaço cavernoso, cheio de cadeiras dobráveis de metal e de assentos de vinil, menos de duas dúzias ocupadas, enquanto um pastor vestido com roupas comuns está no palco, próximo de um projetor e de uma tela de mais de dois metros e meio de altura, explicando um fluxograma de Deus para Jesus.
A maioria das não completas duas dúzias de fiéis está espalhada nas cinco primeiras filas. Ninguém sentado ao lado de ninguém. Essa congregação é integrada por cinco adúlteros, quatro alcoólatras, três donas de casa insatisfeitas, dois colegiais que escaparam das aulas, dois ejaculadores precoces, um pedófilo, um ladrão, um traficante de drogas e um megalomaníaco.
Sento-me ao lado do megalomaníaco, que escolheu uma cadeira na fila de trás e está comendo um saco de figos frescos, enquanto assiste à apresentação. Ele está usando um sobretudo de lã branca. No chão, ao lado dele, há duas sacolas cheias de lembranças e presentes.
- Fazendo pequenas compras de Natal? - pergunto como quem não quer nada.
- Apenas algumas coisinhas para as meninas dos escritores - diz Jerry, colocando outro figo na boca, antes de me oferecer um. - Não, obrigado - declino.
Não estou com muito apetite. Não é de surpreender, considerando que Jerry me mandou uma mensagem no telefone celular, esta manhã, informando que queria me ver. Agora.
Fico imaginando por que ele me pediu para encontrá-lo aqui, em vez de em seu escritório.
Se ele deseja me disciplinar, seu gabinete é muito mais reservado do que este lugar. E muito mais intimidador. Jerry não é inclinado a fazei cenas em público ou chamar atenção para si. No palco, o pastor está dizendo que o caminho para Deus passa por Jesus.
- Esse sujeito é horrível - diz Jerry. - Estou a ponto de bater nele, por uma questão de princípios.
Aparentemente, Jerry não está com um estado de espírito benevolente. - Então - digo, forçando um sorriso que parece tão artificial como uma seqüência de Hollywood, - por que você queria me ver?
- Agora, por que eu haveria de querer ver você? - fala Jerry, engolindo outro figo. Eu odeio quando ele fica assim evasivo. - Bem, para começar, que tal isso?
Na tela de mais de dois metros e meio aparece a minha imagem. Granulada. Obtida com uma câmera de telefone celular em um shopping da Califórnia. Fica ali por uns bons dez a quinze segundos, mas nenhum dos humanos percebe. Esse é um dos talentos de Jerry. Ainda não sei como ele consegue.
No palco, o pastor está dizendo que Deus trabalha de formas misteriosas. - Depois, também tem isso - Jerry continua.
A imagem seguinte na tela é de Cliff Brooks. Essa deve ser a foto grafia do "antes", pois ele está sorrindo e a metade inferior de seu corpo ainda não foi devorada por cães.
- E isto - diz.

O rosto sorridente de Cliff Brooks desaparece, substituído pela imagem de George e Carla Baer.
Só que eles não estão sorrindo.
Ambos estão mortos. Asfixiados. Estrangulados. Pendendo do teto, por tiras de couro, com mordaças de borracha vermelha. - E isso.
A imagem seguinte na tela é de Nicolas Jansen, usando seu hábito de monge, empalado de bruços sobre uma cruz de quase dois metros.
No palco, o pastor está dizendo que Jesus morreu por nossos pecados.
- Você confundiu demais as coisas, Fábio - diz Jerry, enquanto mais algumas imagens de humanos mortos que eu tentei ajudar aparecem em uma seqüência automática, como um show de erros. - Interferir com humanos. Alteração de trajetórias. Múltiplas fatalidades prematuras com humanos. Isso sem mencionar desmaterialização pública não autorizada e me personificando.
A última foto é de Cliff Brooks, a do "depois", seu rosto não mais sorrindo, o estômago aberto enquanto alguns cães famintos o evisceram. Fico ali, olhando fixamente para a tela, zonzo, quase inconsciente de minha vestimenta humana. Todos aqueles seres que pensei ter ajudado, todas aquelas vidas que pensei ter melhorado, todos eles mortos e acabados. Violentamente. Espetacularmente. Ironicamente. Antes que eu percebesse o que estava acontecendo, lágrimas começaram a descer pelo meu rosto.
- Não era isso que eu queria que acontecesse - digo apontando para a tela, onde a imagem do eviscerado Cliff Brooks havia sido substituída pela da Virgem Maria, segurando seu recém-nascido. Atribuo a um equívoco momentâneo. - Não me importa qual era a sua intenção - diz Jerry. - Tudo o que me importa são os resultados. Mais de meia dúzia de seres humanos estão mortos por causa de suas ações. Mais de três dúzias de pessoas viram você desaparecer bem diante dos olhos delas. E mais de duzentos milhões de humanos viram sua imagem na CNN, antes que pudéssemos alterá-la. Você se dá conta de que teremos de realizar outra limpeza de memória por sua causa?
O procedimento padrão para uma limpeza de memória é, primeiro, ajustar a verdade, apresentando uma versão modificada dos eventos para que as pessoas acreditem em algo distinto do que realmente aconteceu. Nada muito diferente do que todos os governantes fazem todos os dias. E é extraordinário o que pode acontecer quando os canais de informação no ar vinte e quatro horas impingem desinformação ao público em geral.
Os humanos tendem a acreditar em qualquer coisa, se virem e ouvirem à exaustão.
Então, Jerry pede a ajuda de Engano e Criatividade, que alteram a verdade. Neste caso, minha imagem, que vai terminar parecendo com alguém famoso. Geralmente morto. Quase mítico. A imagem mais comum para uma limpeza preventiva de memória é a de Elvis, mas vamos acabar tendo de usar urna nova. O homem está morto há mais de trinta anos. Mas até aí... humanos são criaturas muito crédulas.
- Eu avisei que haveria conseqüências se você continuasse a interferir, Fábio - diz Jerry. - Então, a partir de agora, você está suspenso e sem poderes, na dependência de uma investigação completa. - Todos os meus poderes? - pergunto. - Todos eles.
Nada de transporte molecular. Nada de manto de invisibilidade. Nada de ler sinas. Quase como um ser humano, exceto que não posso morrer e que tenho uma vestimenta humana maravilhosa. Isso explica por que Jerry quis me encontrar aqui, em vez de em seu gabinete. É muito difícil voltar à Terra quando você tem de usar transporte público.
- Quem está fazendo a investigação? - pergunto.
- Integridade e Confiança - diz Jerry. - Enquanto isso, durante o transcorrer da investigação, Casualidade vai assumir suas tarefas.
- Casualidade? - pergunto. - Está brincando? Você não pode entregar isso a ele.
- Suas ações colocaram o equilíbrio cósmico em risco no planeta, Fábio - afirma Jerry me passando o saco de figos enquanto remexe no interior de seu casaco - Você não me deixou outra alternativa. - Sua mão emerge do casaco segurando um envelope branco bem simples, que ele me entrega. - O que há aqui? - quero saber.
- Cinquenta pratas e uma passagem de avião - ele fala, recolhendo suas sacolas de lembranças.
Abro o envelope e conto o dinheiro, apenas para me certificar. Jerry realmente não é bom com câmbio monetário. Nunca consegue fazer o cálculo correto. E é conhecido por reduzir os montantes.
- E o meu cartão de crédito Visa Universal? - pergunto. - Eu ainda posso usar minha conta corporativa?
Jerry me dá uma olhada de desaprovação que lembra sua expressão pouco antes de arrasar com Sodoma e Gomorra.
- Tudo bem - diz. - Agradeça por isso. Mas não para despesas desau- torizadas. E é melhor que guarde os recibos de todos os gastos se não quiser que voltem pra você.
Eu balanço a cabeça, afirmativamente. Embora nunca tenha sido bom nessa coisa de guardar recibos.
- O que devo fazer durante a investigação? - pergunto.
- Nada - responde Jerry. - Apenas espere até que eu me manifeste. E, pelo amor de Cristo, fique longe de confusões.
Em seguida ele desaparece, deixando-me com um boleto para o táxi, uma passagem só de ida para o aeroporto de LaGuardia e metade de um saco de figos.

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