Capítulo-32

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Alguns dias depois, estou checando as trajetórias de alguns dos mortais cujas sinas eu havia redirecionado, apenas para me manter informado sobre as coisas, quando descubro que Cliff Brooks não é uma anomalia como eu havia imaginado.
O futuro de Nicolas Jansen, o agradável drogado que me feriu em Amsterdã e que entrara para um monastério na França, começava a desaparecer de vista.
George e Carla Baer, o casal que antes havia sido condenado a um futuro de submissão e disciplina, estão à deriva em meu radar.
Até Darren Stafford, o ex-professor de biologia e futuro molestador de pássaros, está destinado a algo que está além do meu alcance.
Enquanto reviso mentalmente meus arquivos de casos, descubro que além de Cliff Brooks, Nicolas Jansen, Darren Stafford e George e Carla Baer, eu conduzi mais de uma dezena de humanos na direção da Trilha de Destino.
Tenho de admitir, estou surpreso com meus poderes de persuasão. Eu estava apenas apontando para trajetórias que não envolvessem dependência a drogas e pedofilia.
Aparentemente, eu sou melhor nisso do que pensava.
Com certeza, se tivesse apenas alterado o futuro de Cliff Brooks, eu estaria em melhores condições de desistir do que havia feito. Mas a última vez que alguém teve um impacto positivo como esse nos humanos foi Jesus, e ele não manteve propriamente seu anonimato.
Mesmo se Carma estiver certo e o universo acabar corrigindo e ajudando meus humanos a encontrar sua trajetória original, ele não mencionou quanto tempo isso poderia levar. Eu não sei se Destino perceberá que sou responsável por ampliar sua carga de trabalho, mas finalmente alguém pode se dar conta disso. Os humanos simplesmente não alteram suas sortes sem algum tipo de empurrão, digamos, do universo. E se Jerry perceber que sou eu quem está fazendo esse movimento, há uma boa possibilidade de que eu perca meus privilégios de passageiro habitual.
Imagino se eu posso alegar insanidade temporária. Imagino se Jerry vai me cortar algumas folgas. Imagino se as viagens aéreas tiveram algum progresso depois do Hin- denburg.
Acho que preciso ficar quieto por algum tempo, se bem que isso não signifique que eu possa, exatamente, me esconder. Maldita onipresença de Jerry. Então decido ir para Los Angeles. Ao menos lá eu posso contar com a cobertura da poluição. Com todo aquele brilho superficial das roupas de grife, dos veículos de luxo e dos aperfeiçoamentos cosméticos, fica difícil para Jerry dar uma boa olhada desde que fez aquela cirurgia ocular.
- Você vai demorar? - pergunta Sara, na cama, antes que eu vá embora.
- Apenas alguns dias - respondo.
Não posso dizer a Sara que estou caindo fora para me esconder de Deus na superficialidade e poluição de Hollywood, então falo que há alguns clientes que preciso ver na Costa Oeste.
- Eu adoro que você se preocupe tanto com seus clientes, Fábio - ela comenta. - Que trabalhe tão duramente para ajudá-los. É uma das minhas partes favoritas a seu respeito.
- Quais são as outras partes? - pergunto.
Ela sorri e levanta uma sobrancelha e desaparece sob as cobertas. E subitamente esqueço do que estávamos falando.
Eu não estava mentindo para Sara quando lhe contei que estava indo ver algumas pessoas, embora você possa pensar que Verdade e Sabedoria vivam no topo de alguma montanha do Himalaia, o que requer um xerpa e custa duas semanas de sofrimento apenas para chegar a eles. Em vez disso, eles vivem em Mulholland Drive, nas montanhas de Hollywood, o que requer um personal trainer e duas semanas em salões de bronzeamento apenas para ficar parecido com eles.
Por que eles escolheram viver em Los Angeles, eu não sei. Provavelmente devorados por toda essa bobagem de Cidade dos Anjos. Mas, de qualquer forma, eu não posso pensar em outro lugar do planeta onde se necessite mais verdade e sabedoria do que em Tinseltown.
É a personificação da terapia a varejo. Um microcosmo de cultura consumista, de como a constante procura por mais e mais impede que os humanos descubram suas verdadeiras naturezas internas e que dirijam suas vidas para as melhores sinas. Em nenhum outro lugar, senão em Hollywood, há mais distrações materiais e pressões sociais influenciando os humanos, capazes de evitar que encontrem seus caminhos. Alguns podem usar essa característica para argumentar sobre uma ida para Las Vegas, mas, se você me perguntar, Vegas é mais um parque temático adulto do que um ecossistema cultural.
Eu só espero que Verdade e Sabedoria não tenham sucumbido às pressões do estilo de vida de Hollywood.
- Fábio! - exclama Verdade, me cumprimentando da porta da frente de sua mansão de doze milhões e meio de dólares, com um pátio para automóveis, quadra de tênis, piscina, sauna e uma deslumbrante vista do Vale de San Fernando.
Verdade me recebe com um grande abraço de urso. - Que maravilha ver você - ele diz, ostentando seus dentes branqueados e um bronzeamento artificial.
Tudo exagerado demais para ser real.
Embora faça bastante tempo desde a última vez que o vi, seu rosto está mais liso do que o natural. Ele também deu uma boa melhorada em sua vestimenta humana ou talvez esteja tomando injeções de botox.
- Você está ótimo - ele diz, e então me conduz para dentro e caminha ao meu lado pela entrada. Quando ele não está olhando, verifico para me certificar de que ainda estou com minha carteira e minhas chaves O problema sobre Verdade é que ele é cleptomaníaco. - E então, o que há de novo na Big Apple? - ele pergunta. Conto todas as fofocas possíveis enquanto o sigo até a parte de trás da casa, onde Sabedoria está sentado ao lado da piscina, com um exemplar de O poder do pensamento positivo e um mojito. Ele não parece muito diferente de Verdade, exceto por ter argolas douradas em ambos os lóbulos das orelhas.
- Bem, se quer saber, você está fantástico - Verdade me diz, para em seguida voltar-se na direção de Sabedoria. - Não é verdade? Ele não está fantástico?
Sem levantar os olhos, Sabedoria diz: - Expressões elogiosas nada mais são do que reflexos de suas próprias percepções. Não têm nada a ver com a verdade.
O problema de Sabedoria é que ele tem complexo de inferioridade.
- Não podemos ser agradáveis, por hoje? - sugere Verdade. - Em con- sideração a nosso convidado?
- Eu sempre sou agradável - diz Sabedoria, deixando o livro de lado e levantando de sua cadeira reclinável para me dar um abraço. - Posso lhe oferecer um mojito, Fábio?
Durante as horas seguintes ficamos nos embebedando com rum branco e folhas de hortelã e revivendo velhos tempos, embora, para ser honesto, houve muito mais de embebedar-se do que de compartilhar memórias, uma vez que a maioria dos humanos em meu caminho não lida muito bem com verdade e sabedoria.
Quando estamos bem calibrados, Verdade sugere que a gente desça até
o Formosa Café, um inexpressivo bebedouro com temática chinesa, em vermelho e negro. Localizado em uma área decadente de Hollywood, o Formosa oferece um cardápio completo para o jantar, embora a maioria das pessoas reunidas naquele ambiente de luz muito fraca esteja ali para beber coquetéis, sentada no bar ou nos nichos com bancos de couro vermelho, sob fotografias em branco e preto autografadas por astros que ali jantaram no passado. James Dean, Marilyn Monroe, Clark Gable, Paul Newman, Jack Benny, Elizabeth Taylor, Marlon Brando. Você meio que espera que um deles atravesse a porta de entrada a qualquer momento.
- Uma grande parte das pessoas que vêm aqui são clientes habituais - informa Verdade, bebericando seu Martini entre Sabedoria e eu, no bar, enquanto alcança um cinzeiro. - Mas você ainda tem uma boa mistura de novos casais e gente em seus primeiros encontros, o que torna a noite divertida.
- O que você quer dizer com isso? - pergunto, tentando não notar que a mulher que está sentada à minha esquerda está pensando em aceitar um papel em um filme pornô, no qual vai fazer sexo com um mastiff alemão.
- Ele faz isso o tempo todo - diz Sabedoria. - É pueril, se quer saber. - Eu não ouço você se queixar sobre os resultados - diz Verdade. Sabedoria responde apenas com outro gole em seu mojito. - Este casal atrás de nós - indica Verdade.
Dou uma olhada por cima de meu ombro e vejo um homem e uma mulher em seus trinta e poucos anos, ambos vestidos de branco, sentados em uma cabine, compartilhando uma garrafa de cabernet. Eles não são casados, mas isso está em seu futuro, seguido de um divórcio litigioso.
Talvez ter vindo a Los Angeles não tenha sido, afinal, uma boa idéia. - Eles estão celebrando dois anos de feliz convivência sob o mesmo teto - diz Verdade, escondendo um copo vazio no bolso de seu casaco. - Ela espera que ele a peça em casamento esta noite, o que ele realmente planeja fazer. Há, porém, um pequeno problema.
Verdade levanta sua mão direita como um fantoche de sombra de um coelhinho, apontando suas orelhas para o casal por cima de seu ombro, e então abre e fecha os outros três dedos como se estivesse dizendo palavras em silêncio. Dois segundos depois, o homem sentado atrás de nós diz: - Eu dormi com sua irmã"
Não sei quem fica mais surpreso ao admitir isso - ele ou sua namorada. - O quê? - ela pergunta.
Ele olha em volta como se tentasse entender o que aconteceu. Obvia- mente, essa não era uma confissão que pretendia fazer. Mas ele a repete. - Eu dormi com sua irmã - fala.
Provavelmente, ele também não estava esperando ter uma taça de vinho lançada sobre seu rosto, do contrário não teria se vestido inteiro de branco.
- Mas nós fizemos sexo apenas três vezes - ele argumenta, indo atrás de sua chorosa namorada, saindo do nicho, e passando pelo bar e pela porta da frente.
nós.
Tão logo o lugar fica vago, Verdade e Sabedoria pedem o espaço para
- Nunca falha - diz Verdade, deslizando pelo macio vinil vermelho. Um ajudante aparece com uma toalha para secar o vinho e remover a garrafa e os copos.
- Você fez isso apenas para conseguir uma mesa? - pergunto, enquanto me sento.
- Bem, essa não é a única razão - admite Verdade, empurrando os recipientes de sal e pimenta para fora do tampo da mesa, em direção à sua bolsa masculina. - Quero dizer, oras, o sujeito tinha de esclarecer isso, cedo ou tarde. Melhor que fosse em uma hora em que isso nos beneficiasse. Estou certo?
Sabedoria finge não se importar, embora pareça muito mais feliz na cabine do que na banqueta do balcão.
- Mas você mudou a sina deles - eu digo.
Agora eles não vão mais se casar, o que significa também que não haverá divórcio, li m vez disso, o namorado tentará uma infrutífera reconciliação, antes de dormir com a irmã dela outra vez, engravidá-la, depois sumir e se mudar para Aspen, onde vai se tornar um instrutor de esqui, enquanto a namorada terminará tendo uma série de relacionamentos que não vão terminar melhor do que esse.
Tudo o que posso fazer é ficar ali sentado, sem ir atrás do maldito casal, mas não posso arriscar. Talvez se estivesse com Preguiça e Gula, porém Verdade e Sabedoria estão no bolso do colete de Jerry.
- Lamento sobre isso - diz Verdade. - Mas, de qualquer forma, não ia acontecer nada de bom naquele relacionamento. Melhor que encarassem a verdade agora do que mantê-la escondida.
- Ah, então agora você está bancando o sábio - diz Sabedoria. - Que estranho.
- Eu estava apenas dando uma opinião - diz Verdade. - Por que isso tem que ser sempre um assunto seu?
- Estou apenas dizendo que você talvez queira refletir sobre o que sabe - diz Sabedoria. - E para ser bem honesto, tenho minhas dúvidas a respeito disso.
- Você está me questionando? - pergunta Verdade.
A incessante implicância dos dois fica no pano de fundo, enquanto olho ao redor para os outros clientes do Formosa, encostados sobre o bar ou reclinados sobre as cabines de couro vermelho sob os olhares atentos dos astros mortos - suas sinas misturadas em urna desilusão dissonante, em uma cacofonia do fracasso. Não descobertos. Não correspondidos. Desempregados. Não são pessoas ruins. Exceto no caso do predador sexual que está lá no fim do balcão posando de diretor e deslizando um pouco de GHB no cosmopolitan da aspirante a futura estrela que ele está enganando.
Eu deveria meeeeeesmo ter colocado Dennis de volta em minha discagem automática.
Mas o resto desses humanos, esses mortais desamparados, está apenas tentando encontrar um jeito de ser feliz e a maioria deles está lutando para fazer com que isso aconteça. Enquanto muito disso tem a ver com as absurdas expectativas sociais colocadas neles, a maior parte disso tem a ver com a mão que trata deles. Com o caminho em que eles nasceram. Comigo.
Eu me viro para Sabedoria e Verdade, que ainda estão envolvidos em sua eterna discussão sobre quem é o mais importante dos dois.
Como se isso importasse. Não há sabedoria no sofrimento inútil dos meus humanos. E a verdade é que prefiro gastar meu tempo ajudando-os do que vagando por aí com uma dupla de insignificantes manipula-dores imortais.
- Então você está dizendo que acredita que Platão era um idiota? - afirma Sabedoria.
- Eu não acredito em nada - diz Verdade. - Eu sei.
Peço licença e finjo que vou ao banheiro, então me esgueiro pela porta de trás para a noite quente de Los Angeles, onde o tráfego do Boulevard Santa Monica passa vagarosamente, a oeste levando para Beverly Hills e, a leste, para Hollywwod. Eu sigo a direção leste, me afastando da pretensão de Beverly Hills. Embora o tráfego seja relativamente barulhento e vagaroso, não pode abafar as lembranças dos fantasmas que assombram esta cidade.
Apenas alguns quarteirões abaixo do Formosa, River Phoenix, de vinte e três anos, desabou e morreu fora do Viper Room por uma overdose de heroína e cocaína. A uns oitocentos metros do Sunset Boulevard, John Belushi morreu da mesma combinação letal, quando tinha trinta e três anos.
E, virando a esquina, E Scott Fitzgerald finalmente sucumbiu de complicações provocadas por alcoolismo e fumo com a idade de quarenta e quatro.
Três das minhas celebridades favoritas do século vinte e todas elas terminaram suas trajetórias comigo a menos de dois quilômetros uma da outra.
Houve um tempo em que eu acharia divertida uma coincidência como essa. Agora isso me inunda de uma sensação imensa de fracasso. Eu poderia ter salvo todos os três, aproveitado suas contínuas contribuições ao cinema e à literatura, ajudando-os a viver vidas mais longas e gratificantes. Em vez disso, fiquei parado, observando-os enquanto se autodestruíam.
Do outro lado da rua, tentando pegar um táxi, está a mulher cujo noivo dormiu com a irmã dela múltiplas vezes. A presente e futura decepção de uma companheira se aninha futilmente em seu amante desprezado, que tenta convencê-la a não ir embora, desculpando-se com uma sinceridade que cheira a desespero. Eu poderia simplesmente deixá-los ir embora, permitindo que cometam seus erros e seguir adiante. Exceto pelo fato de que posso ver um futuro em que eles estariam bem, juntos. Em que seriam felizes. Em que desfrutariam de uma parceria de amor e respeito.
Todo ser humano tem uma escolha.

Eles podem escolher felicidade ou podem escolher o sofrimento. Eles podem escolher o perdão ou podem escolher o ressentimento. Eles podem escolher o amor ou podem escolher a raiva.
Não há absolutos. Cada situação requer uma escolha. E cada humano escolhe como ele ou ela quer reagir. Mas, inúmeras vezes, os humanos escolhem sofrer. Inúmeras vezes, escolhem não perdoar. Inúmeras vezes, escolhem a raiva.
Sei que Jerry me pediu para deixar de interferir, mas eu atravessei uma porta que se fechou e foi trancada atrás de mim. Não posso ignorar mais meus humanos desafiados pelas escolhas.

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