Capítulo-29

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Durante as últimas semanas, descobri como dá muito mais trabalho tentar ajudar humanos em vez de simplesmente deixar que estropiem suas vidas. Suponho que isso se pareça um pouco com ser pai, embora eu nunca tenha cuidado de nada além de um casal de mamutes de pelúcia e de uma píton que desapareceu em um banheiro nos anos setenta, então nunca soube o quanto a paternidade pode ser recompensadora. Ou como é difícil ficar ali, parado, olhando seus filhos cometer erros, quando a sua orientação pode salvá- los de muito sofrimento e desilusão.
Tecnicamente, Jerry nunca me disse para parar de me envolver nas sinas dos meus mortais. Ele apenas me disse que eu já deveria saber muito bem disso e que tinha de pensar nas conseqüências de minhas ações. Embora isso possa ser alvo de discussão no mundo terrestre, Jerry tende a ficar um pouco fulo da vida quando alguém interpreta mal seus decretos. E desobedecer a uma ordem direta de Jerry não é exatamente a melhor maneira de permanecer no lado bom. Basta perguntar a Satã.
Obviamente ele me ameaçou com um castigo. Mas, até aí, Jerry está sempre ameaçando alguém. E embora seu latido com freqüência seja pior que sua mordida, Jerry não tende a fazer ameaças vazias. Então, embora seja improvável que ele decida banir-me para o mundo inferior, talvez possa me suspender, privando-me de poderes. E quando você não pode se transportar ou ficar invisível, isso meio que tira o brilho de ser imortal.
Mas ter meus poderes suspensos não é a pior coisa que pode acontecer. Se Jerry ficar mesmo muito puto, ele pode me tirar a imortalidade. O que seria um saco. Eu teria de conseguir um emprego, um novo lugar para viver e minha vestimenta humana acabaria se estragando. E quando minha vestimenta humana estragasse, o mesmo aconteceria comigo.
Não é exatamente o que eu quero para comemorar meu 257.9812 aniversário.
Portanto, se quero ser capaz de manter o estilo de vida a que me acostumei, terei de desistir de meu novo propósito e permitir que meus humanos continuem a fazer as escolhas erradas.
Isso tem sido mais difícil de aceitar do que eu esperava, o que me transformou em um Fábio sombrio. Sara tem tentado me animar, cozinhando uma refeição para mim em vez de requentar sobras e limpando meu apartamento com um uniforme de camareira francesa, mas quando fico deprimido eu quero apenas ficar deitado no sofá tomando sorvete Ben & Jerry's e vendo algumas reprises do seriado Seinfeld.
Então, decido que preciso de uma mudança de cenário. Quero ir a algum lugar tropical. Algum lugar relaxante. Algum lugar onde eu possa deixar tudo isso de lado.
— Vamos lá, Sombra Furiosa!
Estou na Corrida de Cachorros de Daytona Beach, na Califórnia, acompanhando o sexto páreo, na matinê de quarta-feira. Já ganhei uma dupla e um simples. Quando Sombra Furiosa cruza a linha final em primeiro lugar, isso vai me tornar vencedor em cinco de seis páreos. Obviamente, não tem a menor importância que Dona Sorte esteja me ajudando a colocar minhas apostas.
— Vamos lá, Shadow Fury! — ela grita, um drinque de vodca pela metade em uma das mãos e o bilhete da aposta, na outra. Se não a conhecesse bem, eu juraria que ela não tinha a menor idéia de que nosso cão ia ganhar.
Temos de fazer uma cena, fingindo que estamos entusiasmados; de outra forma chamaríamos ainda mais atenção do que já chamamos. Foi por isso que despistamos no terceiro páreo.
Sei que não se trata exatamente de esporte. E ficar olhando animais escravizados correr atrás de um coelho mecânico ao redor de uma pista para saciar o desejo dos humanos por jogo e entretenimento faz com que eu sinta como se precisasse de um banho quente. Mas quando você roda por aí há um quarto de milhão de anos cuidando diariamente de bilhões de formas de vida inferiores e seu criador acaba de lhe dizer para ficar fora dos negócios deles, às vezes surge a necessidade de aproveitar as vantagens de suas capacidades oniscientes.
— Aleluia! — grita empolgada Dona Sorte quando Sombra Furiosa vence
o páreo por quase um corpo inteiro de vantagem sobre os outros cães. — Graças a Jerry!
— Jerry? — diz um jogador descontente que está sentado atrás de nós. — Quem diabos é Jerry?
— O treinador de cachorros — eu digo, pegando Dona Sorte e seguindo rumo ao caixa para resgatar nossos prêmios.
— Ah, Fábio — ela fala. — Obrigada por me trazer aqui. Não me divertia tanto desde 1980, com o time de hóquei dos Estados Unidos nas Olimpíadas.
Depois de descontar nossos bilhetes de apostas, terminamos nossos drinques e demos tudo o que ganhamos naquele dia a um velho que tivera um dia difícil nas corridas. Deixei que Dona Sorte fizesse isso. Assim, tecnicamente, não estou me envolvendo. Além disso, é o que ela faz.
— Bem, Fábio, foi mesmo muito divertido — ela diz, dando um beijo na minha bochecha. — Mas acho que está na hora de voltar ao trabalho.
De fato. Enquanto estávamos lá, nas corridas, um montão de outros clientes nas arquibancadas da pista do Daytona não tinham tanta sorte. Eu observei Dona Sorte indo embora, seu vestido de lamê dourado cintilando sob o calor da Flórida, enquanto ela esbarrava levemente em homens e mulheres cuja sorte imediatamente dava uma virada para melhor.
Uma dessas delicadas roçadas de Dona Sorte foi em Cliff Brooks, um profissional que não conseguiu desenvolver todos os seus talentos, tentando fazer render os cem dólares que trouxe para ganhar o suficiente que lhe permita levar sua namorada a um belo jantar de aniversário. Talvez no Hooters ou no Robbie O'Connel's Pub. Mas, depois de seis páreos, tudo o que Cliff conseguiu com suas tentativas foi ter um cachorro classificado e cinqüenta pratas com as quais voltaria para casa.
Se eu não fizer nada, Cliff vai passar o resto de sua vida insatisfeito com seu trabalho, ganhando dinheiro só por ganhar dinheiro, e fracassando na descoberta de seu melhor caminho. Sei que poderia simplesmente me virar e ir embora daqui, ir ao encontro de um belo grupo de monges budistas ou talvez vagar com o Dalai Lama, mas, depois de uma semana sem me envolver, estou prestes a alterar minha retirada. Estou em crise de abstinência por um viciado em drogas ou um sem-teto ou um advogado de defesa da área criminal. E Cliff Brooks é o ajuste de que preciso.
Eu sei que Jerry me disse para não me envolver, mas é apenas um pequeno humano. Uma alma patética. Um mortal que já fez uma vida inteira de escolhas erradas.
Mas, hoje, ele tem algo a seu favor e que ele não está esperando. Um pouco de sorte verdadeira e que não iria receber de Dona Sorte. Cliff Brooks está prestes a receber uma visita do (ruflem os tambores, por favor!)... Capitão Fado.
Guardião da mudança de destino. Defensor das incapacidades humanas. Campeão dos futuros insossos.
Estou pensando que preciso conseguir uma canção-tema para mim. Talvez algo como a abertura da pequena seqüência de Star Wars ou "O tema de Peter Gunn". Ou mesmo uma coisa original. Eu pediria a Beethoven ou Tchaikovsky para escreverem uma peça rápida, mas, bem... eles estão mortos.
O problema com a defesa da sina de Cliff Brooks, além do fato de que pode me custar minha imortalidade, é que estou visível. Eu poderia dar uma escapada até o banheiro ou procurar uma cabine telefônica e remediar essa situação, para ajudá-lo sem o seu conhecimento, mas se ele for colocar qualquer soma de dinheiro em um dos cães antes que eu o alcance, bem, então todas as probabilidades estarão inacessíveis, por assim dizer. Portanto, no momento em que Cliff termina de ler o programa para o próximo páreo e está entrando na fila para sua próxima maldita aposta, eu deslizo para ficar próximo dele e o pego pelo braço.
— Você não quer fazer isso — digo.
— Fazer o que? — ele pergunta, sem fazer nenhuma tentativa de remo- ver minha mão de seu braço.
— Fazer essa aposta — afirmo, levando-o para longe das bilheterias. — Por que não? — ele quer saber.
— Porque Tiro na Lua não vai vencer — afirmo.
— Como sabe em qual cachorro eu ia apostar? — ele questiona, en- quanto eu o conduzo para além das barraquinhas. — Digamos que eu seja um médium. — De verdade?
— De verdade — respondo, conduzindo-o de volta para a entrada.
Ele é tão condescendente. Eu poderia ser um ladrão. Eu poderia ser um maníaco sexual em liberdade condicional. Eu poderia ser um assassino em série e esse sujeito me deixaria levá-lo para um ambiente à prova de som, com ganchos de carne e serras para diferentes usos. — Então você pode ler meu futuro? — Mais ou menos — digo.
— Mais ou menos, como? — ele quer saber.
— Bem, para começar — eu falo — você precisa querer reconsiderar suas opções para o jantar de aniversário de sua namorada. Levá-la ao Hooters não vai exatamente levá-lo a fazer sexo com ela.
— Nossa! — ele exclama enquanto eu o conduzo a um banco e faço com que se sente. "Você é médium."
Tá, muito bem, mas não é preciso recorrer a uma entidade imortal da predestinação para saber que levar a namorada para o Hooters para comemorar seu aniversário não é o caminho para a satisfação sexual.
— O que mais? — ele pergunta, olhando para mim com absoluta confiança.
Os humanos são tão simples. Especialmente os homens humanos. Diga a eles como evitar passar suas noites se masturbando e eles irão seguir você para qualquer lugar. A única real diferença entre humanos machos e cachorros machos é que os humanos geralmente não tentam se masturbar na sua perna.
— Seu nome é Clifford Brooks — eu digo, sentando-me ao lado dele e dizendo tudo a seu respeito - onde ele vive (Ormond Beach), no que trabalha (estocagem), quantas vezes por mês ele faz sexo (0,37) e o que ele jantou na noite passada (macarrão e queijo de pacotinho).
— Eu também sei que você não está na sua trilha designada — continuo. — Não está fazendo o que deveria.
— O que eu deveria estar fazendo? — pergunta.
Pela ansiedade que vejo em seus olhos e pela expressão de adoração em seu rosto, eu poderia lhe dar um copo de refrigerante com cianureto e ele ainda ia pedir mais.
O que é que eu devo fazer?
Os seres humanos têm esse desejo inato de permitir que qualquer outra pessoa dirija suas próprias vidas em vez de descobrir as coisas por si sós. É como se eles não quisessem assumir a responsabilidade por estropiar as coisas, de maneira a se sentir livres pra culpar outra pessoa.
Seus pais.
Seu terapeuta. Jerry.
Então, em vez de gastar uns bons momentos sozinhos e descobrir o que realmente querem, tratam de se distrair com televisão, videogames e pornografia.
O que é que eu devo fazer?
O que se esperava é que Cliff Brooks estivesse trabalhando como gerente financeiro num banco, ganhando suficiente dinheiro para sustentar sua mulher e sua filha. Mas ele largou a faculdade depois de um ano tentando seguir a carreira de ator, que chegou ao ápice quando ele vestiu uma fantasia de Pateta durante o verão, na Disney World.
— Volte para a faculdade e tire o diploma — eu sugiro.
E, rápido como um raio, ele é um veterano de vinte e sete anos, uma promessa na fraternidade universitária, com um diploma adicional de alcoolismo.
Então eu tento de novo.
— Case e constitua uma família.
Ele vira um pai abusivo, com um futuro marcado por liberdade con- dicional.
Por alguma razão eu penso em Nicolas Jansen e concluo... se funcionou para ele...
— Entre para um monastério.
Ele é um pedófilo procurado que está sendo extraditado de Caracas, na Venezuela.
Isto é mais difícil do que eu pensava.
Todos os outros humanos que tentei ajudar responderam à minha orientação com sinas melhoradas. Talvez nem sempre ideais. Quero dizer, quem aspira viver de limpar banheiros portáteis? Mas ao menos era um progresso em relação a fumar crack ou se juntar a um culto religioso.
Cliff Brooks, por outro lado, representa um desafio maior.
Não importa o que eu sugira, continuo atirando no escuro. Então, simplesmente tenho de continuar tentando até encontrar o alvo.
sinas.
É como jogar roleta russa, com a diferença de que em vez de balas são
— Começar seu próprio negócio. Click.
— Alistar-se nas forças armadas. Click.
— Criar uma organização voluntária. Bangue!
De acordo com o relatório que observo, Cliff Brooks vai se transformar em um campeão da causa dos direitos dos animais e da abolição às corridas de galgos no estado da Flórida. Nossa!
Isso não foi apenas uma completa decolagem de seu caminho atual, mas também uma significativa melhora sobre o que estava fadado a ele em seu nascimento Com certeza, ele seria um bem-sucedido gestor de finanças e um marido e pai provedor, mas essa nova e evoluída sina ultrapassava os parâmetros de seu próprio potencial.
Pelo que posso ver, ele vai se desenvolver muito, na seqüência, a ponto de atrair atenção nacional, e terá um imenso êxito no futuro previsível. E por "previsível" não quero dizer que vai demorar muito tempo. Não que ele vá se acabar ou que terá um ataque cardíaco ou sofrer um atentado da mana dos cães de corrida. É que simplesmente não consigo ver claramente o que vai se passar nos próximos anos. Está literalmente borrado, como se uma densa neblina tivesse tomado conta da orla cósmica, obscurecendo minha visão.
Balanço a cabeça, na tentativa de clareá-la, porque provavelmente não posso estar vendo o que penso que vejo, mas quando dou outra olhada eu ainda posso divisar claramente a sina de Cliff Brooks.
Ele ainda não está lá, mas maldito seja eu se ele não estiver a caminho da Trilha de Destino

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