Capítulo-21

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Nas semanas seguintes, eu atravesso o globo, de Bogotá a Budapeste e a Bali, ajudando homens e mulheres e crianças fadados a futuros de mediocridade, opressão e péssimos cortes de cabelos. Vá, tire sarro se quiser. Mas você não tem idéia do impacto que um mau corte de cabelo tem no futuro de uma pessoa.
Não tenho de aparecer em carne e osso para ajudar a maioria deles e não tenho de ficar repetindo a materialização ao ar livre que usei com Amanda Drake ou Darren Stafford. Não é uma boa idéia ter muitos humanos falando a respeito de um anjo da guarda que aparece na sua frente. Antes que você possa se dar conta, minha fotografia estaria estampada em todos os jornais e na mídia eletrônica e eu estaria sendo agendado para participar de entrevistas nos programas de Larry King e Oprah, o que, de fato, iria deixar Jerry bem puto. A Oprah nunca o convidou para seu programa.
Em algumas ocasiões, de qualquer forma, sou forçado a interagir com meus humanos como se fosse um deles, oferecendo palavras de encorajamento ou amigáveis sugestões ou às vezes um tapinha na parte de trás da cabeça. O que realmente não funcionou muito bem com aquele marido abusivo de Munique. E isso explica por que tive de chamar Engenhosidade, de novo, para consertar meu rosto.
Ainda estou pegando o jeito da coisa.
Se você passou a maior parte das últimas centenas de anos ficando farto e amargurado entre criaturas inferiores que assiduamente insistem cm agir como bundonas, mudar sua atitude em relação a elas não é algo que acontece da noite para o dia. Mas estou tentando trabalhar com meus humanos, ensinando-os a como reconduzir suas vidas aos trilhos para que fiquem felizes, o que, em contrapartida, também me deixa feliz. Acho que estou começando a entendê-los um pouco melhor, embora ainda esteja um pouco aquém da curva desejável quando se trata de Sara. Realmente, ainda não estou mais próximo de compreender seu destino do que estava antes. Na verdade, sinto como se estivesse mais longe ainda de encontrar as respostas. É como se, por ficar mais próximo dela, eu perdesse a capacidade de ver as coisas com clareza.
— Bom dia — diz Sara, recostada de lado, olhando para mim de seu travesseiro.
É domingo de manhã e estamos no quarto dela, o qual tem uma conformação semelhante à do meu, mas é muito mais quente e convidativo. Paredes de um vermelho intenso. Cama de tons de terra. Nenhum espelho no teto. — Sabe que você nunca acorda com uma sombra? — ela comenta. — O quê? — pergunto, pensando que seja o começo de algum tipo de conversa filosófica sobre arquétipos e psicologia junguiana.
— Uma sombra — ela diz. — A barba dos homens continua a crescer durante a noite, então, mesmo que se barbeiem antes de dormir, eles acordam com uma sombra. — Sara passa levemente os dedos no meu rosto. — Sua pele está tão lisinha como antes de pegar no sono.
Esse é outro problema de namorar uma mulher mortal. Ela percebe coisas a meu respeito que ninguém mais notaria. Como o fato de que eu não tenho nenhum cheiro corporal.
outra.
Ou que eu nunca tenho de cortar as unhas. Ou que não preciso me barbear.
— Fiz depilação a laser — digo, porque é a única resposta que me ocorre. — Isso é ruim — ela fala. — Eu gosto de uma aparência selvagem, vez ou
Anotação pessoal: tenho de pedir a Engenhosidade que me instale alguns folículos faciais.
— Então, o que você queria ser quando criança? — Sara pergunta, des- lizando o dedo pelo meu peito. —Eu? — digo.
— Não — ela ironiza. — O outro sujeito com quem estou dormindo. — Por que você quer saber como eu era quando criança? — pergunto. — Apenas curiosidade — ela diz, seu longo, delicado dedo circulando ao redor de meu umbigo. Se eu tivesse sido um menino, aquilo que ela estava fazendo me deixaria esquecer tudo sobre subir em árvores e jogar bola. Então, seu dedo começa a traçar outra parte de minha anatomia. — Queria determinar as sinas de todos os seres humanos do planeta — deixo escapar.
— Sério? — ela diz, sua mão deslizando para trás, em minha cintura, enquanto ela apoia o queixo em meu peito e me olha. — Isso não é muita ambição para um moleque?
Simplesmente encolho os ombros. Não há necessidade de dizer a ela que Ambição é uma mulher.
— Então, muito bem — ela diz, jogando uma perna sobre minhas cadeiras e subindo em cima de mim, seus lábios contra meus ouvidos. — Se você está tão interessado nas sinas das pessoas por que não começa com a minha?
Meia hora depois, estamos na cozinha usando roupões, tomando café e comendo restos de macarrão da rede Nick's. Sara come desse jeito todo o tempo. Jamais cozinha. Nem sequer se importa em esquentar as sobras no forno, servindo-se diretamente das caixinhas ou recipientes originais - comida chinesa, macarrão, omeletes. Até mesmo sopa. Ela não tem pratos, o que explica o fato de eu estar comendo espaguete a marinara com almôndegas em uma caneca para viagem da Starbucks.
— Então, o que é que você queria ser quando crescesse? — pergunto. Estou tentando entender Sara, na esperança de que ela revele algo que acenda alguma luz sobre seu destino. E me dê um lampejo de seu futuro.
— Quando eu era pequena, queria ser uma cigana.
— Uma cigana? — repito, não muito seguro de como aquilo poderia me ajudar.
— Eu queria vagar pelos campos, encenando para as pessoas — ela diz. — Queria entretê-las e fazer com que dessem risada e vender a elas garrafas de água que elas pensariam ser de poções mágicas.
— Então, você queria fazer as pessoas de bobas — eu comento. — Depois, quis ser uma freira — ela conta. — Por que uma freira?
— Acho que para compensar o fato de querer ter sido uma cigana. Faz sentido.
— Depois eu quis ser uma vaqueira, uma estrela do rock, uma dentista, uma dondoca, uma barista, uma puta, uma cantora de bar, uma passeadora de cães, uma líder de torcida, uma trapezista, uma motorista de táxi, uma paleontologista e uma caçadora de recompensas.
Demais para aprender algo sobre Sara através de seu passado. — Por que você entrou no ramo de imóveis? — perguntei.

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