Capítulo-47

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Minha audiência acontece nos aposentos privativos de Jerry.
Eu estava meio que esperando por algum lugar na Terra. Um espaço neutro, como a Suíça. Até cogitei alternativas como o leste de Los Angeles ou o Afeganistão. Mas Jerry só desce à Terra em ocasiões especiais, como para me destituir temporariamente de meus poderes ou engravidar minha namorada.
Naturalmente, eu não pude fazer a viagem por iniciativa própria, então Jerry mandou Hermes descer para me escoltar.
Hermes é o único dos deuses da Grécia Antiga a permanecer por aí, desde que os gregos abandonaram suas deidades olímpicas e tomaram o bonde do cristianismo. Ele não teve problema nenhum ao ser relegado ao estado de deus menor e de assumir a posição de mensageiro glorificado e motorista por meio período.
A maioria dos outros deuses gregos não segurou a onda da perda de celebridade e de privilégios e de seus endereços no monte Olimpo, então foi fadada à ignomínia. As últimas notícias que tive deles diziam que Zeus e Hera estavam vivendo de trambiques com Apoio na Turquia, enquanto Afrodite e Atena faziam mutretas na Polônia. O restante acabou como sem-teto, viciado em crack ou dependentes de programas sociais para desempregados.
E acho que, depois de hoje, talvez eu tenha mais em comum com eles do que gostaria de admitir.
Jerry está sentado atrás de uma sólida mesa de carvalho, em uma cadeira branca extremamente macia, de encosto alto do tamanho de Nova Jersey. A mesa está completamente vazia, exceto pela presença de um martelo de cristal feito à mão e de uma única pilha de papeis de uns trinta centímetros de altura. No lado direito, estão sentadas Integridade e Confiança, com cara de presunçosas e hipócritas, enquanto no esquerdo há uma cadeira vazia estofada de vinil vermelho.
Estou sentado diante de Jerry, no lado oposto de sua mesa, um patamar abaixo, em uma cadeira de madeira de espaldar reto.
Ao contrário de seu gabinete, os aposentos privados de Jerry não são feitos de vidro nem têm aquela visão panorâmica do universo, de trezentos e sessenta graus. Mesmo assim, é meio intimidante quando você está sentado ao nível do tampo da mesa dele, que está usando suas roupas brancas de domingo e encarando você do alto de seus óculos de leitura.
Jerry já tomou conhecimento do relatório de Confiança e Integridade, justamente a pilha de papéis que está sobre a mesa. Ele não disse uma só palavra, apenas leu fazendo um monte de hummmmmmmns e alguns mmmmmmmmmmhuns e uma ocasional olhada de desaprovação para mim.
Fico imaginando se poderia suborná-lo com fotos que tirei dele e de Indiscrição em uma banheira de ofurô, na última festa da empresa.
- Bem, parece que está tudo em ordem -, diz Jerry, balançando a ca- beça para Integridade e Confiança. - Acho que podemos ouvir a primeira testemunha.
Jerry abre seu celular e pressiona um dos números de sua discagem automática. Um instante depois, Segredo está sentada na cadeira de vinil vermelho.
Ela acena para Jerry e depois se volta para mim. - Oi, Fábio -, diz, com um olhar resignado.
Eu apenas balanço a cabeça. Não há muito que dizer, considerando que ela está aqui para confirmar minha acusação. E eu não a culpo. É apenas uma situação embaraçosa.
Jerry fica ali sem uma expressão definida enquanto Segredo conta o incidente de Amsterdã, durante o qual ela me ajudou a consertar minha vestimenta humana. Embora ela não tenha visto o ataque nem tenha expli- citamente mencionado o nome dele, efetivamente me ligou com a morte de Nicolas Jansen.
- Me desculpe, Fábio -, ela diz e depois vai embora.
Jerry pressiona uma tecla em seu celular e logo em seguida aparece Dona Sorte.
- Oi, docinho -, ela me diz. - Como você está?
- Muito bem -, respondo, forçando um sorriso. - Nunca estive melhor.
Ela reage com um sorriso radiante que somente Dona Sorte é capaz de oferecer e eu quase acredito que tudo vai ficar bem.
Então ela começa a falar.
Sobre o dia em que ela e eu nos encontramos na Corrida de Cães de Daytona Beach, o que aconteceu mais ou menos uma semana depois que Jerry me disse para não interferir mais na trajetória de meus humanos. Não demorou muito para que o testemunho dela me conectasse a Cliff Brooks.
Depois de Dona Sorte veio Carma, com uma garrafa de cerveja Dos Equis em uma das mãos, enquanto confessa sobre como eu admiti que estava interferindo nas sinas de meus humanos e os encaminhando à Trilha de Destino. Posso afirmar que ele não quis me entregar. Aquilo apenas surgiu. Como um arroto inesperado. Você fica desse jeito quando tem de testemunhar diante de Deus. Não ajuda em nada o fato de Carma ter andado bebendo.
Quando acaba, Carma vem até onde estou e me dá um abraço. -Sinto muito, Fábio.
- Tudo bem -, digo.
Ele me dá um sorriso tímido, engole o resto de sua Dos Equis e de- saparece.
Mais de uma dúzia de outros sentam ali, incluindo Preguiça, Gula, Honestidade, Verdade e Sabedoria. Alguns testemunham sobre meu caráter. Outros corroboram meu paradeiro em relação aos humanos cujas trajetórias eu alterei. E Honestidade deixa o proverbial gato sair da sacola, ao mencionar minha relação com Sara, fazendo com que Jerry olhe para mim e balance a cabeça como se me pegasse dançando ao redor de um bezerro de ouro.
Eu poderia objetar seu testemunho considerando a confidencialidade da relação médico/paciente, mas, muito bem, ela é Honestidade. O próximo a tomar assento é Dennis.
Ele aparece usando um terno preto Armani, com uma camisa de cetim preta e uma gravata preta. Seus sapatos são tão brilhantes que você pode ver meu desespero refletido neles.
Ele me acena, sem expressão definida, e volta-se para Jerry. - À sua disposição, quando quiser, Garotão -, diz Dennis. Jerry sorri. Ele adora ser chamado de Garotão. Isso e também de O Grande e Poderoso Oz.
Os dois conversam durante alguns minutos sobre morte e peste e os bons velhos tempos quando as pragas estavam em voga. Dennis até con segue fazer Jerry dar risada. Pelo jeito como está vestido e a maneira como parece estar amaciando Jerry, imagino se Dennis está aqui para me apoiar.
- Você jura dizer a verdade, toda a verdade, nada além da verdade? -, pergunta Jerry.
- Com a sua ajuda -, diz Dennis,
A princípio, Dennis fala sobre meu caráter e minha compaixão e como eu pareço ter desenvolvido um amor real pelos humanos, e começo a pensar que estava certo ao achar que ele estaria do meu lado. Então ele começa a contar a Jerry sobre quando eu tentei salvar um humano de sua morte programada. Salvou mesmo minha pele.
Destino é a próxima, testemunhando até mesmo sobre meu envolvi- mento com Sara. Ela não revela a natureza do destino de Sara, mas o fato de que eu desenvolvi um romântico relacionamento com uma mortal na Trilha de Destino já é suficientemente condenável.
Destino e eu não trocamos nenhuma gentileza e eu não a acuso de ter morto meus humanos. Qual seria a vantagem? Ela simplesmente negaria e Jerry haveria de chamar Álibi e ia terminar parecendo que eu estava tentando me esquivar da culpa. E, de qualquer forma, mesmo que meus humanos não tivessem morrido, eu estaria nesta cadeira, sendo investigado por tudo o mais que de fato fiz. Além disso, se há algum equilíbrio cósmico, Destino acabará recebendo o que lhe cabe. Eu só tenho de confiar no sistema.
Depois que Destino vai embora, Jerry convoca Sub-reptícia para falar. Não fico muito certo da razão pela qual ela está aqui, considerando que não a vejo desde a Guerra de Tróia, até que ela afirma como me ouviu revelar a Sara minha verdadeira identidade, junto com alguns segredos universais e algumas sujeiras anteriormente desconhecidas sobre Jerry.
Estou ferrado pra caralho.
Quando Sub-reptícia termina de relembrar tudo o mais que me incri- minava, Jerry conversa com Integridade e Confiança, e ambos balançam a cabeça e olham em minha direção com expressões de autossatisfação. E então eles se retiram, transportados para algum estado de perfeição moral que provavelmente me provocaria uma urticária, e deixaram Jerry e eu sozinhos nos aposentos dele.
- Bem, isso foi divertido -, digo. - Talvez possamos fazer de novo, na próxima semana.
- Isso não é motivo de piada, Fábio. Nada é motivo de piada para Jerry. - Eu sei -, comento. - Eu estava apenas... - Tentando melhorar o clima -, completa Jerry. Eu dou de ombros.
Jerry suspira fundo e balança a cabeça. - Você tem alguma idéia da seriedade do que fez, Fábio? Não apenas quebrou o pacto dos grandes segredos do universo ao se revelar para uma mulher mortal, e proposital-mente alterou as sinas de mais de três dezenas de humanos que por causa disso morreram, como criou um efeito dominó que terá repercussões por décadas. Talvez até mesmo séculos.
A maneira como ele diz isso faz parecer algo catastrófico.
- Você nem sequer considerou as conseqüências de suas ações? -, pergunta.
- Claro que sim -, admito. - Mas não pensei que alguém pudesse se machucar. Não achei que alguém pudesse morrer.
- O problema é que, sim, eles morreram -, fala Jerry. - Mas mesmo que não tivessem morrido, você deliberadamente quebrou regras sobre envolver-se com centenas de mortais. Isso é motivo suficiente para ser destituído de seus poderes.
cara.
- Eu sei -, digo. Como se ele tivesse mesmo de esfregar isso na minha
- E, mesmo assim, isso não fez com que você parasse. Dou de ombros. Não sei o que ele espera que eu diga. - O que eu não entendo -, fala Jerry, - é por que você continuou a tentar ajudá-los, se sabia que isso poderia lhe custar a sua imortalidade.
- Não sei -, digo. - Acho que eu apenas quis ajudar meus humanos a descobrir algo melhor.
Jerry fica me observando por alguns momentos, seus dedos tambori- lando contra sua sólida mesa de carvalho.
- Embora suas intenções fossem admiráveis, isso ainda não desculpa suas ações -, diz.
Percebo que o melhor para mim é simplesmente ficar quieto. A única coisa que posso conseguir ao falar é piorar ainda mais as coisas.
- Eu gostaria de deixá-lo ir embora com um aviso -, Jerry afirma. - Dar uma suspensão de seis meses para lhe ensinar uma lição.
Eu balanço a cabeça, em agradecimento, pensando que talvez isso não vá ser tão ruim como eu pensava.
- Mas isso seria mandar uma mensagem errada -, ele continua. - Se eu deixo que se vá com uma palmada na mão, que tipo de precedente eu estaria abrindo?
- O da compaixão -, sugiro, esperando apelar para o seu lado do Novo Testamento. - O do perdão?
- E se eu fizesse isso, quantos outros poderiam tentar a mesma coisa? -, questiona Jerry. - Preguiça? Arrogância? Vaidade? Onde isso ia acabar?
- Eu nunca realmente pensei...
- Não -, continua Jerry. - Você realmente não pensou. Foi por isso que se meteu nessa enrascada. E é por isso que terei de fazer o que não quero fazer.
aqui.
Oh... oh... Estou captando uma definitiva vibração do Velho Testamento,
Jerry dá a volta na mesa e se aproxima, ficando diante de mim, com os braços cruzados. - Você é um dos meus imortais favoritos, Fábio -, ele diz. - Sempre foi. Mas eu não criei regras para serem quebradas. Apesar de seus motivos, você ainda tem de responder pelo que fez. E, por mais que me doa fazer isso, tenho de tornar você um exemplo.
Eu apenas continuo ali sentado, incapaz de acreditar no que está prestes a acontecer. Que eu realmente vou me tornar um mortal. - Vai arder, não vai?
- Um pouco -, diz Jerry.
Eu balanço a cabeça. - Quando?
Não poderia acontecer agora. Mortais não são permitidos aqui em cima. Além disso, não podem sobreviver ao teletransporte. Nós descobrimos isso da pior maneira.
- Um dia. Talvez dois -, Jerry informa. - Isso vai lhe dar tempo sufi- ciente para deixar seus negócios em ordem e assegurar que você estará em um lugar seguro para a transformação.
- Posso ficar com o apartamento? -, pergunto.
- Não, a menos que consiga um emprego -, afirma rry - E quanto a Sara?
- Infelizmente, dada a natureza sensível da informação que você transmitiu a ela, teremos de agendar uma completa limpeza de memória, com efeito imediato.
- Não -, eu peço. - Por favor.
- Sinto muito, Fábio -, lamenta Jerry. - Mas, sem uma limpeza de memória impossível para Sara Griffen cumprir seu destino. Ela ficaria muito influenciada pelo que sabe para ser capaz de continuar efetivamen- te em seu caminho.
- Pelo menos me dê algum tempo -, digo. - Me deixe dizer adeus. Apenas um dia. Vinte e quatro horas. É tudo o que peço.
Jerry entrelaça os dedos na frente de seu rosto e me encara. Não consigo saber o que ele está pensando, mas se você nunca esteve assim diante de Deus, posso dizer que é algo desconcertante. Ele sempre parece tão crítico.
Depois de um momento que parece ter sido toda uma Idade do Gelo, ele balança a cabeça uma vez, solta os dedos, olha seu relógio e diz: - Vinte e quatro horas. A limpeza de memória vai acontecer às oito horas da manhã. Depois disso, ela não vai nem lembrar da sua cara.

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