Capítulo-22

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Você tem de entender Dennis.

Capítulo 22
Primeiro de tudo, mesmo quando não está guardando um rancor de quinhentos anos contra alguém que tinha sido seu melhor amigo, ele pode parecer meio ranzinza. Afinal de contas, ele é Morte. O que causa danos em sua vida social. Apesar de suas ocasionais tentativas de realizar jantares e festas- surpresa, é um tanto difícil escapar do estigma associados com o fim das vidas de todos os humanos. Acho que a maioria dos outros Imortais pensa em seu trabalho com um pouco de culpa. Mas quando você gasta centenas de milhares de anos destilando praga e genocídio e terrorismo, tende a desenvolver um talento para a eliminação imparcial.
Dennis me disse uma vez que ser Morte era como dirigir uma orquestra que sempre tem tocado a mesma sinfonia e que ele se acostumou tanto a cada compasso, ritmo e movimento que não pensa mais em suas ações. A orquestração da morte simplesmente vem a ele de maneira natural.
Na verdade, apesar de nosso desentendimento, Dennis não é má pessoa. Apenas é mal compreendido. Não é que ele force os humanos a consumir alimentos ricos em gorduras que podem obstruir o coração ou sobem na traseira de lanchas quando o motor está funcionando. Além da velhice, das quedas de aviões e de um ou outro eventual desastre natural, a maioria das pessoas morre, hoje em dia, porque faz escolhas erradas. Fumar cigarro. Excesso de bebida. Comer baiacu. Outros humanos são apenas naturalmente idiotas. Bebendo e dirigindo. Ateando fogo em si mesmos.
Tentando parar uma motosserra com sua artéria femural.

E então culpam Dennis? Honestamente, ninguém mais quer assumir a responsabilidade por sua própria morte.
Mesmo antes que Destino soubesse de meu afeto por Sara, eu vinha pensando bastante em Morte, ultimamente. Talvez seja porque eu tenho me sentido bem com essa coisa de ajudar os meus humanos a descobrir um futuro menos sombrio. Ou talvez porque eu tenha me apaixonado por uma mortal. Ou talvez porque não queira que Sara termine como um dano colateral numa disputa entre duas entidades imortais. Mas decidi que finalmente chegou a hora de colocar um ponto final em todo esse distanciamento do tempo de Colombo.
Então, aqui estou, em Viena, na Áustria, na área externa de um centro de distribuição da UPS, comendo salsicha com mostarda e bebendo uma cerveja Pfiff de Mãrzen, observando Guenther Zivick, de quarenta e oito anos de idade, carregando um monte de caixas de papelão vazias até um compactador de lixo, na parte de trás das instalações. Guenther trabalha para a UPS há quinze anos e já usou a prensa hidráulica inúmeras vezes. Mas, hoje, é a sua vez de mostrar toda a extensão de sua estupidez humana.
Quando Guenther termina de encher a prensa hidráulica com as caixas vazias, ele vai ligar o compactador, subindo na borda da prensa, para, em seguida, esmagar as caixas que estão dentro da máquina com seu pé, que acaba ficando preso. Ninguém perceberá o que aconteceu, até que, na manhã seguinte, seus colegas encontrem o corpo esmagado de Guenther.
Ainda não há nenhum sinal de Dennis, o que não me surpreende. Com mais de cento e cinquenta mil mortes diárias no mundo para lidar, ele não pode atender um a um pessoalmente, de maneira que tende a selecionar, deixando Devastação e Desespero cuidar da maioria dos casos de mortalidade infantil e de pessoas que morrem por causas naturais. Ele prefere ficar com o restante — mártires, heróis, vítimas de assassinato. E, em casos como este, Dennis tende a surgir no último minuto. Além disso, ele nunca foi um grande fã da culinária austríaca.
Dou outra mordida em minha salsicha enquanto Guenther liga a prensa hidráulica antes de subir na borda e usar seu pé direito para pressionar as caixas mais para dentro do compactador de lixo. Fico surpreso de como ele conseguiu estender sua vida por aproximadamente cinco décadas.
Observo quando ele empurra o pé dentro do compactador em movimento e balanço a cabeça. Meu antigo eu simplesmente terminaria a salsicha e acabaria com minha cerveja, enquanto Guenther fosse sugado para dentro do compactador, e encontraria sua sina, o que, embora seja desagradável, ao menos o removeria do banco genético.
Talvez seja porque eu tenho vivido com eles por tanto tempo, mas apesar de sua limitada imaginação e de seus conflitos gratuitos e das caras ridículas que fazem durante o sexo, eu comecei a desenvolver uma afeição particular por meus trapalhões, autodestrutivos e equivocados humanos. Sei que não posso ajudar todos, mas não posso simplesmente cruzar os braços e ficar assistindo a um deles ser compactado, quando eu posso fazer alguma coisa a respeito.
Pouco antes de a prensa prender seu pé e arrastar Guenther para a câmara, transformando-o em uma panqueca humana, eu o agarro pela parte de trás de seu uniforme marrom e o puxo para fora do compactador de lixo. Penso em continuar invisível, mas então Guenther não iria perceber o que quase aconteceu com ele. Então eu me materializo, antes de agarrá-lo.
— Ei — ele grita em alemão, ao se deparar comigo. — Que diabos você está fazendo?
— Salvando a sua vida — respondo, também em alemão, antes de dar outra mordida em minha salsicha. — Você tem alguma noção de como é pe- rigoso colocar seu pé dentro de um compactador de lixo em movimento? — Para enfatizar, eu termino o resto de minha cerveja, e jogo a lata no compactador, que a devora em uma rápida série de rangidos e estalos. — Imagine isso acontecendo com você — eu digo. — Simplesmente, por todo o corpo.
Ele olha para o compactador de lixo, depois para mim, e em seguida volta ao compactador como se estivesse tentando perceber qual de nós está falando a verdade. Começo a pensar que ter salvo Guenther não foi lá uma tremenda idéia.
— Você trabalha aqui? — ele pergunta.
Com as mãos, eu aponto para minha roupa, que consiste em sandálias de dedo, um par de bermudas com estampa de mosaicos azul-esverdeados, em formato de losangos, e uma camiseta amarelo-canário com a frase Prostitutas Chupam.
— Parece que eu trabalho aqui?
Ele me analisa como se estivesse pensando a respeito. — Então, quem é você? — pergunta.
— Sou o inspetor de segurança — digo. — E se você não sair da minha frente em cinco segundos, você vai constar em meu relatório.
— Mas eu estava apenas... — Um. Dois...

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