Capítulo-28

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Jerry vai recebê-lo agora.

Capítulo 28
Levanto-me de minha cadeira e sigo na direção do longo percurso entre a recepção e o gabinete de Jerry. Enquanto tento me convencer de que se trata de um despacho de rotina e de que o momento é apenas coincidência, posso sentir Destino em tudo isso. Seu cheiro. Seu bronzeador. Seu spray para os cabelos. E, quando atravesso aquela porta, sei que estou correndo grande perigo.
Pense em Three Mile Island. Pense em Chernobyl. Pense em Ishtar. Não existe sequer a emoção à flor da pele que recebi das almas humanas em minha última visita. Em parte isso se deve ao fato de Hostilidade estar na Coréia do Norte, juntando suas forças com as de Raiva e Arrogância para ver o que podem suscitar. Além disso, estou fingindo indiferença, então todos de fato me ignoram.
Quando entro no escritório de Jerry, ele está no computador, digitando tão depressa que seus dedos são uma imagem esfumaçada de luz branca. — Sente-se — ele diz, sem levantar os olhos.
Eu ando, de meias, na ponta dos pés, sobre o piso, tentando não olhar para baixo. Quando você está suspenso lá no céu em uma imensa caixa de vidro, a acrofobia ganha todo um novo significado.
Jerry termina o que está fazendo e me olha de cima a baixo.
— Você me parece diferente — ele diz, notando minha aparência insossa, anódina.
— Estou trabalhando incógnito — digo, tentando fingir que não sei por que estou aqui Provavelmente não tenha sido uma boa idéia ostentar meu relacionamento com Sara em público.
— O que você tem feito, Fábio? — ele pergunta.
— Nada demais — respondo, forçando um sorriso. — Só o de sempre. — O de sempre — repete Jerry, ainda sem sorrir. — É isso mesmo? Balancei a cabeça positivamente, continuando a ostentar ignorância. É inútil, claro. Mesmo se Destino não tivesse me delatado, trata-se daquele a quem chamamos ser supremo.
Às vezes eu realmente odeio o fato de que Jerry seja tão tremendamente onisciente.
Jerry me olha de maneira transparente, então se inclina para trás na cadeira e coloca seus chinelos sobre a mesa, cruzando os tornozelos. — Como a Terra tem tratado você, atualmente?
— Bem — respondo, depois de limpar a garganta. — Não posso me queixar.
— De verdade? — Jerry continua. — Nem parece você. Está sempre se queixando.
— Apenas seguindo o seu conselho — digo. — Fazendo melhor meu tra- balho. Cuidando mais dele.
— É isso? — ele diz, fazendo malabarismo com algumas galáxias em uma mão enquanto, com a outra, escreve uma mensagem de texto no seu celular. Que presunçoso. — Até onde posso ver, parece que você está se importando um pouco demais.
— O que você quer dizer? — pergunto, armando minha melhor fachada de inocência. Por alguns momentos, ele fica só me encarando — você sabe aquele jeito que Deus faz quando sabe que você não está dizendo a verdade? Então estou prestes a desistir e a confessar, falando a verdade, que estou apaixonado por uma mortal que está na Trilha de Destino, quando Jerry vira a tela de seu monitor para mim e diz: — De acordo com os últimos dados que recebi, parece que no trimestre passado seus clientes tiveram uma taxa de setenta e nove por cento de sucesso.
Fico olhando para os gráficos estampados na tela, surpreso demais para dar alguma resposta imediata. Não era por isso que eu estava esperando quando fui chamado para ver Jerry, então as justificativas que eu ensaiei não vão funcionar. E não posso acreditar nos números. Setenta e nove por cento!
— Nossa! — digo, tentando não sorrir enquanto uso o mesmo olhar de surpresa de que lancei mão quando os guardas de Callgula apareceram para assassiná-lo. Como se ele não soubesse o que estava para acontecer.
— Isso é demais em termos de decisões adequadas feitas por um montão de recém-evoluídos mamíferos — diz Jerry. — Especialmente considerando que sua melhor taxa anterior foi de sessenta e oito por cento. E isso durante a Idade Média.
Além de acreditar que os seres humanos possuem a capacidade de entender o universo, Voltaire e Descartes e outros grandes pensadores da Idade da Razão defendiam o conceito da vontade racional, postulando que os homens faziam suas próprias escolhas, em vez de ter a pressão de uma sina sobre eles.
Voltaire e Descartes eram uns idiotas, cheios de pompa.
— Devo ter tido uma rodada de sorte — falo, acendendo o sorriso que comprei de Humildade.
— Sorte o cacete — exclama Jerry, tirando os pés de cima da mesa e se inclinando sobre as palmas das mãos tão depressa que meu sorriso se dissolveu num instante.
Maldita Humildade. Vou pedir meu dinheiro de volta.
— Não sei bem sobre o que você está falando — comento.
— Não me sacaneie — fala Jerry. — Eu sou o criador, honrado seja Cristo! Não é como se eu tivesse nascido na última era do gelo. Bom argumento.
— Existe apenas uma explicação para um sucesso tão grande na taxa de conversão de sina — afirma Jerry. — Você está quebrando a regra número um. E deveria saber muito bem sobre isso de se envolver com humanos. Os outros têm uma desculpa, como Coragem ou Ciúmes ou Orgulho... — Ele é gay, você sabe — eu digo.
— Sério? — Jerry diz. — Bem, isso explica muita coisa. Mas não o descul- pa por se envolver na vida dos humanos. Você tem de pensar nas conse- qüências de seus atos, Fábio. Você é o Fado, pelo amor de Deus!
Eu apenas balanço a cabeça. Realmente não há muito que você possa fazer quando Jerry diz seu próprio nome em vão.
— Agora, não quero ter de chamá-lo aqui de novo por isso — diz Jerry. — Do contrário, terei de dar um castigo a você. Estamos entendidos. Eu balanço a cabeça de novo.
— Muito bem — diz Jerry. — Agora, dê o fora daqui. Tenho um universo para administrar.

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