Capítulo-30

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- Outra dessas - diz Carma, balançando sua garrafa de cerveja Kingfisher vazia para um garçom em trânsito.
Estamos no andar de cima do Curry in a Hurry, na esquina da Le-xington com a 28a Leste, em Manhattan, e que está lotado com a multidão para o almoço em um dia de semana. Plantas penduradas e aquarelas de encantadores de serpentes e de romance indiano adornam as paredes. Lá no fundo, perto dos banheiros, uma televisão de tela plana mostra uma produção de Bollywood.
A ascensão de Cliff Brooks é algo que eu não posso simplesmente ignorar. É sem precedentes. Uma anormalidade. Uma mutação na ordem cós- mica. Preciso descobrir como conduzi-lo de volta ao caminho adequado.
O problema é que nunca fui um bom aluno e as conferências de Jerry sobre Teoria do Caminho e Lei da Predestinação sempre me faziam dormir, então eu precisava de alguma ajuda. Dennis não teve de assistir a essas aulas como obrigatórias em seu currículo, porque todos os caminhos finalmente levam a ele. Preguiça pegava no sono em muito mais aulas do que eu, e Gula freqüentemente comia até sua própria lição de casa. Mesmo que Carma fugisse da escola quase tantas vezes quanto eu, de alguma forma ele sempre dava um jeito de ter notas próximas ao limite máximo da turma.
Felizmente, Carma estava na cidade para sua visita anual a George Steinbrenner, então não foi muito difícil localizá-lo.
- Então... - eu digo, - tenho outra pergunta sobre trilhas.
- Você quer dizer como a Trilha do Fado, a Trilha de Destino, toda essa merda metafísica? - diz Carma, seus olhos meio vidrados por causa das Kingfisher que ele já entornou.
Sim - eu falo, imaginando quantas cervejas eleja teria bebido antes que eu aparecesse.
- Cara, eu não sei - ele admite. - Isso foi há mais de duzentos e cin- quenta mil malditos anos atrás.
A japonesa na mesa mais próxima de nós parou o garfo a meio caminho de sua boca aberta e ficou olhando para nós.
- Ouça - eu digo, quando o garçom retorna com outra Kingfisher. - Apenas me ajude com isso e eu peço o almoço.
- Tudo bem - ele diz. - Mas eu nunca fui um bom aluno.
- Ora, vamos lá - eu digo. - Você se superou em Lei da Predestinação. Teve a nota mais alta de todos na classe.
- Eu trapaceei - diz Carma antes de engolir metade de sua cerveja. - Comprei as respostas de Decepção. Nunca sequer abri um livro.
Que beleza! Eu venho buscando clareza e sabedoria e, em vez disso, encontro loucura e embriaguez.
- Você se lembra de algo sobre seus estudos? - pergunto. - Absoluta- mente nada?
- Alguma coisa - ele diz. - Lembro das aulas de ginástica e de roubar a cadeira de rodas de Ferida e de encher o armário de Celibato com fotos de Confiança pelada. Ah, e também me recordo de técnicas de visualização que aprendemos em Teatro Virtual.
Pompa deu essa aula. A idéia era se imaginar como um objeto inanimado que representasse as suas habilidades. Minha visualização, meu objeto inanimado que representava o fado da raça humana, foi uma bomba de gasolina. Antes que eu possa impedi-lo, Carma sobe e senta-se na mesa, com a bunda em seu almoço.
- O que você está fazendo? - pergunto.
- Gosto de pensar em mim como uma balança - ele diz, fazendo uma pose com as pernas cruzadas na posição de lótus e seus braços dobrados ao longo dos dois lados do corpo, os cotovelos para baixo e os pulsos pendendo, com as palmas das mãos voltadas para cima. Odeio quando ele faz isso. - As pessoas estão olhando - eu digo.
- Deixe que olhem - ele diz em voz alta e de comando. - Eu sou Carma. Eu peso o resultado de suas decisões. Prestem atenção em minha sabedoria.
- Preste atenção nisso aqui - diz um nativo de Nova York, de trinta e cinco anos, careca e com um futuro de oportunidades fracassadas que mostra o dedo indicador em riste para Carma.
Não foi uma sábia decisão.

Carma coloca a ponta de seu dedo médio contra a parte interior de seu polegar e faz um movimento rápido na direção do careca. No momento seguinte, o sujeito está tropeçando em seus próprios pés e caindo de cara na mesa ocupada por um casal que acaba de pedir um frango ao curry. Carma instantâneo.
No fundo do restaurante, o gerente do Curry in a Hurry, um indiano de quarenta anos com um futuro de ataques cardíacos, está apontando o indicador para nós.
- Caiam fora da mesa! Caiam fora da mesa e vão embora ou eu chamo a policia!
Carma não se move.
- Podemos voltar à minha pergunta sobre caminhos? - pergunto.
- Tudo é uma questão de causa e efeito - diz Carma, me ignorando e se dirigindo às dezenas, mais ou menos, de clientes do Curry in a Hurry.
É filosofia dtfast-food para uma platéia dtfast-food.
- Se você faz coisas boas, coisas boas acontecem com você. - Carma abaixa sua mão direita e levanta a esquerda. - Se você faz coisas ruins, blá-blá- blá.
Olho em volta, esperando que os outros fregueses estejam rindo ou balançando suas cabeças ou ignorando completamente Carma. Apesar de tudo, esta é a cidade de Nova York. Coisas como essa acontecem todo o tempo. Em vez disso, ao contrário do sujeito careca com o rosto cheio de frango com curry e do casal cujo almoço ele arruinou, descubro que a maioria dos clientes está prestando atenção. Mais do que isso. Estão quase paralisados.
Já vi essa reação antes, durante a Era Clássica, depois do Êxodo e antes do nascimento do Império Romano, quando a vasta maioria dos humanos estava faminta por messias e líderes espirituais. Carma sentava-se em uma colina ou sob uma árvore e simplesmente começava a falar e assim acabava reunindo uma multidão de pessoas, que lhe pediam para liderá-las para que se salvassem de uma perseguição ou injustiça qualquer de que se sentissem vítimas. Quando ele as tinha ali, atentas e convencidas, exatamente no ponto em que desejava que estivessem, ele entrava em combustão espontânea e elas fugiam gritando.
Depois de nulo, a gente dava muito risada lembrando a coisa, com vinho e pão ázimo.
Mas agora parece que os seres humanos, em vez de buscarem salvadores espirituais, procuram mesmo é por recompensas corporais e bens materiais. Pellings de ácido glicólico e implantes de seios. Bolsas Prada e ternos Hugo Boss.
Luxuosas SUVs e sistemas de home theater.
Mesmo quando procuram por orientação intima, eles trocam os ascetas por celebridades. Agora, seus messias são cantores pop e astros do cinema, seus líderes espirituais, evangélicos da televisão e personalidades do rádio. Mas quando eu olho em volta, neste restaurante de fast-food indiano do lado leste de Manhattan, para as pessoas imobilizadas por Carma, penso que talvez os humanos estejam mais famintos por liderança do que eu pensava. Talvez queiram mais do que um salário ou um jogo de cama fantástico para definir quem são. Para calcular seu sucesso.
Ou talvez Carma simplesmente saiba como dirigir uma multidão.
- Aquele que fala sem mágoas, de forma honesta, cria carma positivo - ele diz com os olhos fechados, expondo a filosofia do carma no budismo.
mal.
- Dedique-se a ações positivas, evitando o que poderia causar algum
- Viva de uma forma que não provoque sofrimento nem a si nem a ninguém.
- Não responda à injustiça com agressão. Responda à injustiça com bondade.
Tenho certeza absoluta que esta última é de Lao Tzu, não de Buda, mas essa gente não sabe a diferença.
- E sobre a Trilha de Destino? - pergunto.
- O homem cria seu próprio destino - ele continua. - O caminho que você busca por si mesmo.
Realmente é frustrante quando ele fala por axiomas filosóficos.
- E se eu não estou procurando um caminho, mas sim mandando outros para uma trilha que não era feita para eles? - pergunto, tentando permanecer calmo, enquanto o gerente do Curry in a Hurry está ao telefone, chamando a polícia. - Carma, diz alguma coisa sobre isso?
- Para entender o caminho de outra pessoa, você primeiro tem de compreender o seu próprio.
Seja lá o que isso queira dizer.
Antes que eu possa continuar em minha linha de questionamento, um jovem que acaba de completar os vinte anos e está a caminho de uma série de empregos sem futuro se aproxima de nossa mesa, segurando seu boné de beisebol nas mãos. - Se eu me desculpar com minha namorada, ela vai me perdoar?
- Atos definem o homem, não palavras - responde Carma. - Descul- pe-se com ações e você colherá as recompensas.
O jovem agradece a Carma e vai embora do restaurante.
- É tarde demais para fazer alguma coisa certa? - quer saber uma garota de vinte e cinco anos que roubou dinheiro de seus pais para comprar drogas.
- Nunca é tarde demais para reparar nossas ofensas - ele responde. Ela começa a chorar e se afasta.
- Serei capaz de encontrar a felicidade? - pergunta outro cliente. - A felicidade se encontra dentro de nós.
- Você pode oferecer salvação? - questiona uma mulher de quarenta e dois anos que vai continuar com um caso extraconjugal durante os próximos sete anos.
- Dane-se a salvação - diz Carma, abrindo os olhos. - Se você quer salvação, fale com Jerry.
sorte.
Ouço sirenes ao longe. Não devem ser para nós, mas, em todo o caso... - Acho que a gente devia ir embora - sugiro.
Carma liquida o resto de sua Kingsfisher. - Mas estou em uma maré de
Acho que isso depende de como você define maré de sorte. Metade dos clientes que estavam aqui quando ele começou tudo foram embora e o gerente está xingando Carma em hindu. Quando olho de volta para Carma, ele está com aquele sorrisinho no rosto. - Por favor, não me diga que você está pensando em combustão espontânea - eu digo.
- Passou pela minha cabeça - ele diz. - O que você acha?
- Provavelmente é uma má idéia - respondo. - Mas se você vai mesmo fazer isso, pode ao menos esperar até que falemos sobre Destino?
- O que é que é essa coisa toda de Trilha de Destino, afinal de contas? - ele quer saber, balançando outra vez no ar sua garrafa de cerveja vazia, parecendo ignorar sua atual condição de Cliente Menos Favorito.
- Acho que a gente poderia falar deste assunto em algum outro lugar - digo, enquanto o barulho das sirenes aumenta cada vez mais.
- Mas eu ainda não terminei meu almoço - ele avisa, pegando um pedaço de naan que estava embaixo de sua perna esquerda e recolhendo um de cordeiro ao curry de suas calças.
Vamos - eu insisto, pegando-o pela mão e puxando-o de cima da mesa. - Vamos dar o fora daqui antes que a polícia chegue. - Tarde demais - ele avisa.
O carro de polícia para em frente ao restaurante, enquanto os fregueses remanescentes, o encanto aparentemente quebrado, retornam a suas comidas e evitam o contato ocular conosco. Poucos momentos depois, o gerente aparece no alto da escada, seguido de dois oficiais uniformizados.
- Eles aí! - o gerente grita, apontando para nós. Como se eu tivesse feito algo errado. - Eles estragaram meu negócio e afugentaram meus clientes.
- Foi isso que aconteceu? - pergunta o primeiro oficial de polícia, um jovem de vinte e sete anos, solteiro, fadado a continuar assim.
- Não exatamente - eu digo. Embora não tenha idéia do que vou dizer em seguida. Essa é uma daquelas ocasiões em que eu simplesmente gostaria de sumir num piscar de olhos. Talvez me transportar para o Havaí ou Santorini ou Jamaica. Eu soube que Hedonismo II é agradável nesta época do ano.
A mulher de quarenta e dois anos a quem Carma disse "dane-se a salvação" aponta para ele e diz:
- Ele acha que é a encarnação do carma. - É isso mesmo? - pergunta o oficial. - A conquista do carma reside na ação inteligente e na reação desa- paixonada - afirma Carma e então arrota na cara do oficial. Como se isso fosse nos ajudar.
que é?
- E você? - pergunta o guarda, olhando para mim. - Quem você pensa
- Sou alguém que está no lugar errado na hora errada.
- Mandou bem - diz o oficial. - Vamos lá fora conversar um pouco, descobrir quem vocês dois realmente são.
- Eu sou Carma -, anuncia Carma, subindo em outra mesa, batendo em copos e pratos enquanto toma a posição de lótus. - Sou como uma balança...
- Vamos lá, cara - diz o primeiro oficial, se aproximando e pegando Carma pelo braço.
Carma não se mexe, o que leva o segundo oficial a se posicionar do outro lado da mesa, onde segura o outro braço de Carma.
- Suas ações terão conseqüências - avisa Carma. - Vocês têm de obe- decer à minha lei!
- Tá - diz o primeiro oficial, pegando suas algemas. - E você precisa obedecer a minha.
Mais depressa do que você possa dizer samsara, Carma é girado sobre seu próprio peito, de maneira que seu rosto fica contra a mesa, com um dos lados sobre uma porção de ricota com espinafre ao curry, seus pulsos algemados, com as mãos para trás.
- Vocês vão se arrepender! - enquanto ele é obrigado a ficar em pé, com espinafre e ricota escorrendo de seu rosto. - É uma má idéia foder com Carma!
- E é má idéia foder com o Departamento de Polícia de Nova York - retruca o oficial.
O segundo oficial me escolta escadas abaixo, para fora da porta, onde uma multidão está reunida na calçada, para assistir ao show. Atrás de mim, Carma vocifera: - Causa e efeito! Causa e efeito! - enquanto é arrastado do restaurante, com algemas.

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