ou me fez temer todos os homens que cruzam meu caminho. Anos de terapia me
ajudaram a enxergar que o peso da responsabilidade é inteiramente dele. E não
meu. Nem por um segundo. E a lição mais importante que aprendi é que não sou
uma vítima, mas uma sobrevivente.
Mas isso não quer dizer que a agressão não tenha me modificado. Não há
dúvidas de que mudei. Existe um motivo pelo qual carrego spray de pimenta na
bolsa e deixo o número de emergência na discagem automática do celular, caso
esteja andando sozinha à noite. Existe um motivo pelo qual não bebo em público
nem aceito bebidas de ninguém, nem mesmo de valu, porque sempre há a chance
de ela me passar sem querer um copo batizado.
E existe um motivo pelo qual não vou a festas. Acho que é a minha versão do
transtorno de estresse pós-traumático. Um som, um cheiro ou um vislumbre de
algo inofensivo traz à tona as memórias. Ouço a música alta e o burburinho de
gente conversando e rindo. Sinto o cheiro de cerveja velha e suor. Estou no meio
de uma multidão. E, de repente, tenho quinze anos de novo e estou na festa de
Melissa Mayer, presa em meu próprio pesadelo.
Valu alivia o tom ao ver a aflição em meu rosto. “A gente já fez isso antes, kah -
Kah . Vai ser como antigamente. Não vou tirar os olhos de você, e não vamos
beber uma gota sequer. Prometo.”
A vergonha faz meu estômago revirar. Vergonha e arrependimento, além de
uma pitada de espanto, porque, cara, ela é mesmo uma amiga inacreditável. Valu
não precisa ficar sóbria nem me vigiar de perto para me deixar à vontade, e, ainda
assim, é exatamente o que ela faz toda vez que saímos. E é por isso que adoro essa
menina.
Mas, ao mesmo tempo, odeio que ela tenha de ter todos esses cuidados comigo.
“Tudo bem”
, dou o braço a torcer, não apenas por ela, mas por mim também. É
verdade que prometi a ela que seria mais sociável, e também jurei a mim mesma
que faria um esforço para tentar fazer coisas diferentes este ano. Relaxar um pouco
e parar de ter tanto medo do desconhecido. Uma festa de fraternidade pode não
ser a minha opção preferida de lazer, mas quem sabe não acabo me divertindo.
O rosto de valu se ilumina. “Oba! Nem precisei usar meu trunfo.”
“Que trunfo?”
, pergunto desconfiada.
Um sorriso se delineia nos cantos de seus lábios. “Sebastian vai estar lá.”
Meu pulso dispara. “Como você sabe?”
“Sean e eu encontramos com ele no refeitório, e ele disse que vai. Acho que
vários dos trogloditas do time já estavam planejando ir.”
Faço uma cara feia. “Ele não é um troglodita.”
“Ahn, que bonitinha, defendendo um jogador de futebol americano. Espera aí,
deixa eu ver se tem alguma vaca tossindo ali fora.”
“Muito engraçado.”
“Sério, kah , é esquisito. Não me leve a mal, acho o máximo você estar a fim de
alguém. Já faz, o quê, um ano desde que você e mike terminaram? Só não
entendo como você, entre todas as pessoas, possa ter se interessado por um atleta.”
O desconforto sobe por minha coluna. “Sebastian não é… como os outros. Ele é
diferente.”
“Disse a menina que nunca trocou uma palavra com ele.”
“Ele é diferente”
, insisto. “É quieto, sério e, pelo que pude perceber, não pega
qualquer coisa que use saia igual aos colegas do time. Ah, e é inteligente… Semana
passada estava lendo Hemingway no jardim da faculdade.”
“No mínimo, alguma leitura obrigatória.”
“É nada.”
Ela franze a testa. “Como você sabe?”
Sinto as bochechas corarem. “Uma menina perguntou na sala outro dia, e ele
disse que Hemingway era o autor de que mais gostava.”
“Ai, meu Deus. Você deu para bisbilhotar a conversa dos outros agora? Que
coisa de psicopata.” Ela deixa escapar um suspiro. “Certo, fechado. Quarta à noite
você vai estabelecer uma conversa de verdade com o cara.”
“Talvez”
, digo, sem querer me comprometer. “Se acabar rolando…”
“Eu vou dar um jeito de acontecer. Sério. Não vamos sair daquela república até
você falar com Sebastian . Não quero nem saber se vai ser só ‘Oi, tudo bem’. Você vai
falar com ele.” Ela ergue o indicador no ar. “Capisce?”
Deixo escapar um risinho.
“Capisce?”
, repete, com firmeza.
Depois de um segundo, solto um suspiro me rendendo. “Capisco.”
“Ótimo. Agora anda logo com esse banho pra gente poder ver uns dois
episódios de Mad Men antes de dormir.”
“Um episódio. Estou muito exausta para mais do que isso.” E abro um sorriso
para ela. “Capisce?”
“Capisco”
, resmunga, antes de sair, saltitante, do meu quarto.
Sorrio comigo mesma e pego o restante das coisas para tomar banho, quando
surge outra distração — mal deixei o quarto e ouço um gato miar dentro da
minha bolsa. Escolhi o lamento estridente como toque de mensagem porque é o
único irritante o suficiente para chamar minha atenção.
Coloco meus itens de banho na cômoda, vasculho a bolsa até achar o celular e dou uma olhada na mensagem na tela.
Oi, é o Ruggero . __ Queria confirmar os detalhes das as aulas partcl.
Ah, não acredito!
Não sei se tenho vontade de rir ou de chorar. O cara é determinado, nisso tenho
de dar o braço a torcer. Suspirando, digito uma resposta rápida e nem um pouco
gentil.
Eu: Como vc conseguiu esse num?
Ele: Lista d chamada grp d estudos.
Droga. Eu tinha me inscrito no grupo no início do semestre, mas isso foi antes
de Benício e eu decidirmos que tínhamos de ensaiar segundas e quartas na hora exata
do grupo de estudos.
Outra mensagem aparece na tela antes que eu possa responder, e quem disse
que é impossível inferir o tom de voz de uma pessoa por um torpedo estava
definitivamente errado. Porque o tom de RUGGERO é irritante no último nível.
Ele: Se vc tivesse aparecido no grp, eu n precisaria mandar msg.
Eu: E vc continua n precisando me mandar msg. Na vdd, preferia q n tivesse mandado.
Ele: O q vc precisa p dizer sim?
Eu: Absolutamente nada.
Ele: Ótimo. Então pode fazer d graça.
O suspiro que estava reprimindo me escapa.
Eu: Vai sonhando.
Ele: Q tal amanhã d noite? Estou livre às 8.
Eu: Não posso. Peguei gripe espanhola. Altamente contagiosa. Acabo d salvar sua vida,
cara.
Ele: Ah, obrigado pela preocupação. Mas sou imune a pandemias q dizimaram quarenta
milhões de pessoas de 1918 a 1919.
Eu: Como q vc sabe tnt assim da pandemias?
Ele: Sou aluno de história, gata. Sei um monte d coisas inúteis.
Eca, lá vem ele de novo com esse negócio de gata. O.k., está mais do que na
hora de pôr um fim nisso.
Eu: Bem, mt bom falar c/ vc. Boa sorte na segunda chamada.
Depois de vários segundos sem nenhuma resposta de Ruggero , dou um high five
mentalmente em mim mesma por ter me livrado do sujeito de uma vez por todas.
Estou quase na porta, quando uma mensagem de foto mia no meu celular.
Contradizendo o bom senso, faço o download da imagem e, um segundo depois,
um peito nu invade a tela. Isso mesmo. Um peitoral liso, musculoso, bronzeado e
o tanquinho mais seco que já vi.
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Era Uma Vez Na Grécia (Terminada)
FanfictionO destino nos fez inimigos. Eu nos fiz amantes. Em um mundo diferente, seríamos perfeitos um para o outro. Mas não estamos nesse mundo.