70

244 21 3
                                    

Karol

isso, e você precisa ir dormir. Boa noite, cara.”
“karol  espere”
, ele chama, antes que eu possa desligar.
Tiro o telefone do viva-voz e o levo ao ouvido. “O que foi?”
Sou recebida pela pausa mais longa do mundo.
“ Ruggero ? Você está aí?”
“Hmm, estou. Desculpa. Ainda aqui.” Uma respiração pesada corta a chamada.
“Vem comigo para o dia de Ação de Graças?”
Fico paralisada. “Sério?”
Outra pausa, ainda maior que a primeira. Chego a achar que vai retirar o
convite. E acho que não ficaria chateada se o fizesse. Sabendo o que sei sobre o pai
de Ruggero , não tenho certeza se posso me sentar em uma mesa de jantar com o
sujeito sem pular no pescoço dele.
Que tipo de homem bate no próprio filho? No filho de doze anos de idade.
“Não posso voltar lá sozinho, karol . Vem comigo?”
Sua voz falha nas últimas palavras, o que me parte o coração. Deixo escapar um
suspiro e digo: “Claro que vou”.

A casa do pai de Ruggero  não é a mansão que eu esperava, mas uma casinha
geminada de arenito vermelho, em Beacon Hill, o que imagino ser o equivalente a
uma mansão quando se trata de Boston. O bairro, no entanto, é lindo. Já estive em
Boston várias vezes, mas nunca nesta área chique, e não posso deixar de admirar a
fileira de casas belíssimas do século XIX, as calçadas de tijolos e os antigos postes
de lampião a gás ladeando as ruas estreitas.
Ruggero  mal fala uma palavra durante o trajeto de duas horas até a cidade. A
tensão emana de seu corpo sob o terno em ondas constantes e palpáveis, o que só
me faz ficar mais nervosa. E sim, digo sob o terno, porque ele está de calça social
preta, uma camisa de botão impecável, paletó preto e gravata. O tecido caro
envolve seu corpo musculoso como algo saído de um sonho, e nem a cara feia
constante é capaz de reduzir sua sensualidade.
Aparentemente, seu pai exigiu que usasse um terno. E quando bruno  pasquarelli
descobriu que o filho iria acompanhado, também pediu que me vestisse
formalmente, daí o meu vestido azul de festa, que usei no festival de primavera. O
tecido sedoso vai até o joelho, e combinei com sapatos prateados de salto dez que
fizeram Ruggero sorrir quando apareceu à minha porta, pois segundo ele agora
talvez fosse capaz de me beijar em pé sem ficar com torcicolo.
Somos recebidos à porta não pelo pai de   Ruggero , mas por uma loura bonita
num longo vermelho. Também está com um casaquinho de renda preto de manga
comprida, o que me parece estranho, já que a temperatura dentro de casa está a
um milhão de graus. Juro, está muito quente aqui, então faço questão de tirar
rapidamente meu sobretudo na antessala elegante.
“ Ruggero ”
, cumprimenta a mulher, calorosamente. “Que bom conhecer você.
Finalmente.”
Aparenta estar na casa dos trinta, mas é difícil julgar, porque tem o que
costumo chamar de “olhos velhos”. Aquele olhar profundo e experiente que revela
que uma pessoa que tem a experiência de diversas gerações. Não sei por que acho
isso. Nada em sua roupa elegante ou no sorriso perfeito sugere que tenha passado  por alguma situação difícil, mas a sobrevivente em mim logo sente uma conexão
com ela.
Ruggero  responde com um brusco, mas educado: “Bom conhecer você
também…?”.
Ele deixa a frase no ar, e os pálidos olhos azuis da mulher tremulam de
infelicidade, ao perceber que o pai de  Ruggero  não tinha dito ao filho o nome da
namorada.
Seu sorriso vacila por um instante, antes de reaparecer. “Cindy”
, ela completa a
frase. “E você deve ser a namorada de  Ruggero .”
“ karol ”
, apresento-me, apertando sua mão.
“Muito prazer. Seu pai está na sala de visitas”
, anuncia ela a  Ruggero. “Está muito
ansioso para ver você.”
A bufada de sarcasmo que vem da direção de  Ruggero  não passa despercebida
nem para Cindy nem para mim. Aperto a mão de meu namorado num aviso
silencioso para ser gentil, perguntando-me o tempo todo o que ela quis dizer com
“sala de visitas”. Sempre achei que a sala de visitas fosse onde as pessoas ricas se
reuniam para beber  conhaque antes de passarem ao salão de jantar de
trinta lugares.
Mas o interior da casa é muito maior do que parece pelo lado de fora. Passamos
por duas salas — uma de estar e outra também de estar — antes de chegarmos à
sala de visitas. Que parece… outra sala de estar. Penso na casa apertada dos meus
pais em Ransom e em como aqueles míseros três cômodos quase os faliram, e
sinto uma onda de tristeza. Não me parece justo que um homem como bruno   pasquarelli  tenha todas estas salas e o dinheiro para mobiliá-las, enquanto pessoas
boas como os meus pais têm que trabalhar tão duro para manter um teto sobre a
cabeça.
Quando entramos, o pai de  Ruggero  está numa poltrona marrom, equilibrando
um copo com um líquido âmbar no joelho. Como Ruggero está de terno, a
semelhança entre os dois é chocante. Têm os mesmos olhos castanhos , o mesmo
queixo forte e o rosto esculpido, mas as feições de bruno  parecem mais marcadas, e
ele tem rugas ao redor da boca, como se tivesse passado tempo demais fazendo
cara feia e os músculos tivessem congelado nessa posição.
“ Bruno , esta é karol ”
, Cindy me apresenta, animada, sentando no sofá estofado
de dois lugares ao lado da poltrona de bruno
“Prazer em conhecê-lo, sr. Pasquarelli ”
, cumprimento, educada.
Ele acena para mim.
Só isso. Um aceno de cabeça.

Não tenho ideia do que dizer depois disso, e minha mão umedece a de Ruggero
“Sentem-se, meninos.” Cindy gesticula para o sofá de couro perto da lareira
elétrica.
Obedeço.
Ruggero  permanece de pé. Não diz uma palavra para o pai. Nem para Cindy. Nem
para mim.
Ai, merda. Se está pensando em seguir com este gelo a noite toda, então vai ser
um longo e difícil dia de Ação de Graças.
Um silêncio absoluto se estende entre nós quatro.
Esfrego as mãos suadas nos joelhos e tento sorrir, mas talvez tenha feito uma
careta. “Então… nada de futebol?”
, pergunto, descontraída, olhando para a TV de
tela plana presa à parede. “Achei que fosse uma tradição de Ação de Graças.” Isso é
só o que minha família costuma fazer quando vamos para a casa de tia Nicole no
feriado. Meu tio Mark é um fã inveterado de futebol, e, embora o restante de nós
prefira hóquei, ainda nos divertimos assistindo à programação inteiramente
dedicada ao futebol.
.RUGGERO , no entanto, se recusou a chegar mais cedo do que o necessário, então as
partidas da tarde já acabaram. Mas tenho certeza de que o jogo do Dallas está só
começando.
Cindy é rápida em negar com a cabeça. “Bruno  não gosta de futebol.”
“Ah”
, digo.
Surpresa: mais silêncio.
“Então, karol , o que você estuda?”
“Música. Performance vocal, para ser mais específica.”
“Ah”
, diz ela.
Silêncio.
Ruggero  repousa o ombro contra a estante de carvalho alta perto da porta. Dou
uma olhada na sua direção e vejo que sua expressão é completamente vazia. Outra
olhada na direção de bruno  e vejo que sua expressão é a mesma.
Ai, Deus. Acho que não vou ser capaz de sobreviver a esta noite.
“O cheiro está maravilhoso…”
, começo.
“Preciso dar uma olhada no peru…”
, começa Cindy.
Nós duas rimos, sem jeito.
“Deixa eu te ajudar com isso.” Praticamente pulo do sofá, o que é um grande
erro quando se está calçando um salto dez. Desequilibro-me por um instante e
quase tenho um ataque do coração, com medo de tropeçar, mas então retomo o
controle e consigo dar um passo sem cair.

Era Uma Vez Na Grécia (Terminada)Onde histórias criam vida. Descubra agora