“Já estamos quase acabando o pós-modernismo. A parte mais difícil começa
aula que vem.” Sua voz assume um tom zombeteiro. “Vamos lá. Temos tempo. Me
mostra a música.”
Em seguida, abre um sorriso de menino ao qual sou incapaz de dizer não. O
sujeito definitivamente treinou bem a cara de cachorro pidão. Só que não é um
menino. É um homem, com um corpo grande, forte e um queixo expressivo,
determinado. Sorrisos provocantes à parte, sei que Ruggero vai me encher o saco a
noite toda se não concordar em cantar.
Pego o violão e o coloco no colo, dedilhando de leve. Está afinado, é um pouco
menor do que o que tenho em casa, mas o som é ótimo.
Ruggero sobe na cama e deita, descansando a cabeça numa montanha de
travesseiros. Nunca conheci ninguém que dormisse com tantos travesseiros.
Talvez precise deles para caber o ego gigante.
“Certo”
, digo. “O negócio é o seguinte. Finge que tem um cara cantando comigo
no primeiro refrão, e depois seguindo com a segunda estrofe.”
Conheço um monte de gente tímida demais para cantar na frente de estranhos,
mas nunca tive esse problema. Desde criança, a música sempre foi um escape para
mim. Quando canto, o mundo desaparece. Sou só eu, a música e um profundo
sentimento de tranquilidade que nunca fui capaz de encontrar em lugar nenhum,
não importa o quanto tente.
Respiro, toco os acordes de abertura e começo a cantar. Não olho para Ruggero ,
porque já estou em outro lugar, perdida na melodia e nas palavras, concentrada
por inteiro no som da minha voz e na ressonância do violão.
Adoro essa música. De verdade. É estonteante de tão bonita e, ainda que não
tenha o barítono volumoso de Benício para complementar minha voz, causa o
mesmo impacto, a mesma emoção lancinante que M.J. verteu em palavras.
Minhas ideias clareiam e meu coração fica mais leve quase que imediatamente.
Eu me sinto inteira de novo, porque a música tem esse efeito sobre mim, foi
assim que me ajudou depois do estupro. Sempre que as coisas ficavam pesadas ou
dolorosas demais, eu ia para o piano ou pegava meu violão e sabia que a alegria
não estava tão fora de alcance. Estava logo ali, sempre disponível para mim, desde
que fosse capaz de cantar.
Vários minutos depois, a nota final paira no ar como um traço de perfume
adocicado, e flutuo de volta ao presente. Viro-me para Ruggero , mas seu rosto é
inexpressivo. Não sei o que estava esperando dele. Um elogio? Uma provocação?
O que quer que fosse, não era silêncio.
“Quer ouvir a versão de Benício ?”
, pergunto.
Ele faz que sim. Um gesto mínimo. Só um movimento rápido da cabeça e nada
mais.
Seu rosto impenetrável me perturba, por isso, desta vez, fecho os olhos. Coloco
a ponte onde Benício acha que deve ser, acrescento um segundo refrão como ele
insistiu — e, honestamente, não acho que estou de implicância quando digo que
prefiro o original. A segunda versão é arrastada, e o coral adicional é um exagero.
Para minha surpresa, Ruggero concorda comigo quando termino. “Fica muito
longa desse jeito”
, diz, com a voz rouca.
“Fica, não é?” Sinto-me emocionada de ouvi-lo dando voz à minha preocupação.
É uma pena que Ambar . seja incapaz de falar o que pensa perto de Benício .
“E esqueça o coral. Você não precisa. Aliás, acho que não precisa nem do Benício .”
Ele balança a cabeça, espantado. “Sua voz é… porra, karol, é linda.”
Minhas bochechas ficam quentes. “Você acha?”
Sua expressão apaixonada me diz que está falando sério. “Toca outra coisa”
,
ordena.
“Hmm. O que você quer ouvir?”
“Qualquer coisa. Não me importo.” Fico espantada com a intensidade da sua
voz, a emoção brilhando naqueles olhos . “Só preciso ouvir você cantar
de novo.”
Uau. Tudo bem. Toda a minha vida as pessoas me disseram que era talentosa,
mas, além dos meus pais, ninguém nunca me implorou para cantar.
“Por favor”
, acrescenta, em voz baixa.
Então canto. Uma música minha desta vez, mas, como ainda precisa de uns
ajustes, acabo mudando para outra. “Stand by Me”
, a preferida da minha mãe, a
que canto para ela todos os anos em seu aniversário, e a memória me leva de volta
para aquele lugar calmo.
No meio da música, Ruggero fecha os olhos lentamente. Vejo seu peito firme
subir e descer, minha voz embargada de emoção pela letra. Então meu olhar viaja
para o rosto dele e noto a pequena cicatriz branca no queixo, que divide em dois o
rastro de barba por fazer em sua mandíbula. Me pergunto o que pode ter
acontecido. Hóquei? Acidente quando era criança?
Ele mantém os olhos fechados durante toda a música, e quanto toco o último
acorde, concluo que dormiu. Deixo a última nota morrer e pouso o violão no
chão.
Ruggero abre os olhos antes que eu possa me levantar da cama.
“Ah, você tá acordado.” Engulo em seco. “Achei que tivesse pegado no sono.”
Ele senta na cama, a voz impregnada de admiração pura. “Onde você aprendeu a cantar assim?”
Dou de ombros, sem jeito. Ao contrário de Benício , sou modesta demais para fazer
elogios a mim mesma. “Sei lá. É só uma coisa que sempre fiz.”
“Você fez algum curso?”
Nego com a cabeça.
“Só abriu a boca um belo dia e saiu isso?”
Deixo escapar uma risada. “Você parece os meus pais. Eles costumavam dizer
que devo ter sido trocada na maternidade ou algo assim. Ninguém na minha
família tem ouvido musical. Ainda estão tentando entender de onde veio o gene.”
“Preciso de um autógrafo seu. Assim, quando você ganhar um Grammy, posso
vender no eBay e ganhar uma grana.”
Deixo escapar um suspiro. “A indústria musical é cruel, cara. Até onde sei, vou
quebrar a cara se tentar viver de música.”
“Não vai nada.” Sua voz ressoa de convicção. “E quer saber mais? Acho que é
um erro você se apresentar em dueto no festival. Deveria estar sozinha no palco.
Sério, se você sentar lá com um único holofote na cabeça e cantar como fez agora,
vai deixar todo mundo arrepiado.”
Acho que Ruggero pode estar certo. Não sobre os arrepios, mas sobre ter
cometido um erro em aceitar a parceria com Benício . “Bom, agora é tarde demais. Já
me comprometi.”
“Você sempre pode mudar de ideia”
, sugere ele.
“De jeito nenhum. Seria passar a perna.”
“Só tô dizendo que se você voltar atrás agora, ainda dá tempo de ensaiar um
solo. Se esperar demais, vai estar ferrada.”
“Não posso fazer isso.” Fito-o, com ar de desafio. “Você deixaria seus colegas de
time na mão se eles tivessem contando com você?”
Ele nem hesita. “Nunca.”
“Então por que você pensa que eu faria isso?”
“Porque Benício não é seu colega de time”
, responde Ruggero , calmamente. “Pelo
que eu entendi, desde o início ele tem trabalhado exclusivamente contra você.”
Mais uma vez, meu medo é de que esteja certo. Ainda assim, é mesmo tarde
demais para fazer uma mudança. Me comprometi com o dueto e agora tenho de
seguir em frente.
“Concordei em cantar com ele”
, digo com firmeza. “E a minha palavra tem
significado.” Olho para o despertador de Ruggero e solto um palavrão quando
reparo na hora. “Tenho que ir. Meu táxi já deve estar esperando lá fora.” Salto
depressa para fora da cama. “Só preciso fazer um xixi rapidinho.”
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Era Uma Vez Na Grécia (Terminada)
FanfictionO destino nos fez inimigos. Eu nos fiz amantes. Em um mundo diferente, seríamos perfeitos um para o outro. Mas não estamos nesse mundo.