um: vertigem

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"Cada lagarta tem seu gosto; algumas preferem urtigas", provérbio japonês.


Sua rotina era regrada, cronometricamente estruturada e seguida à risca. Não tinha tempo a perder com nada que não fosse importante, nada que não fossem ideias, enredos e personagens, nada que não fossem seus planos. Acordava às quatro da manhã, escrevia até às seis, corria dez quilômetros ou nadava um quilômetro e meio. Lia, escrevia e ouvia música pelo resto do dia, até se deitar às nove.

No café da manhã — comida tradicional sempre feita por si mesmo —, nunca podia faltar seu sujongah. Era metódico e solitário. Sem empregados, sem companhias. Tudo tinha de ser feito do seu jeito. Às terças e quintas, ao invés de nadar pela tarde, praticava taekwondo. À noite, contemplava as árvores e o pequeno lago de sua casa em estilo hanok, iluminados apenas pela lua e pelas lanternas do jardim. Algumas noites, mais frequentes do que desejava, sentia insônia mesmo depois de um dia exaustivo, ou acordava em meio a pesadelos. Incêndios, ambulâncias, celas, colegas da prisão, os olhos de seu pai, de sua mãe, de seus irmãos, de Jeon Jihyun. Em ocasiões como essas, enchia-se de uísque, tentando transbordar o ódio para fora, e tinha ideias súbitas em seu banho gelado depois da meia-noite. As palavras vinham como enxurrada, fluindo por sua mente e por seu teclado enquanto as digitava e finalizava capítulos madrugada adentro, até ser quatro da manhã outra vez e seu dia recomeçar.

Era engraçado como suas melhores ideias vinham de seus piores momentos, desde sua adolescência. Nunca se livrava deles — dos piores momentos e das ideias.

Naquele dia, porém, Kim Taehyung deixara de lado o trabalho e seus hábitos. Pela manhã não cozinhara seu café da manhã tradicional nem tomara seu sujongah; não saíra para correr nem contemplara as árvores de sua casa.

Aquela noite era diferente e não o impediria de ter ideias, muito menos atrapalharia seu rendimento. Pelo contrário, Taehyung tinha completa certeza de que voltaria para casa sentindo a vida pulsando pelas veias de maneira a triplicar sua criatividade. Fora por isso que fizera sua agente cancelar todos os seus compromissos e passara o dia no Teatro Nacional da Coreia, sujeitando-se ao café da manhã ocidental de uma cafeteria próxima e ao barulho irritante das pessoas conversando ao seu redor. Tudo porque esperava ansiosamente pelo horário do espetáculo.

Durante a infância e a pré-adolescência, Taehyung fora obrigado a ir a várias apresentações de balé de repertório. Não se lembrava mais das orquestras, nem dos movimentos dos bailarinos ou das histórias, muito menos dos títulos das peças. Lembrava-se apenas de ter se sentido uma formiguinha na primeira vez em que fora ao Teatro Nacional; de ter visto sua mãe chorar de emoção, e de ter sido mandado para casa com a babá e a governanta ao final da apresentação, porque seus pais, pessoas tão importantes, ficariam até mais tarde parabenizando a orquestra e os bailarinos, além de terem de ouvir pedidos para investimentos em escolas e outras apresentações.

Desta vez, Taehyung não estava indo obrigado, muito menos acompanhado por seus pais. Suspeitava que seu pai poderia estar lá naquela noite, mas isso não lhe dizia respeito, nem lhe tinha a menor importância. Só o que importava era ver o bailarino principal.

Às sete da noite, o espetáculo enfim começou, e por duas horas — duas completas, sinestésicas e alucinógenas horas —, Taehyung se manteve sentado em uma cadeira acolchoada, comprazendo-se em assistir a arte dos movimentos perfeitos aos quais os bailarinos sacrificavam toda sua dor.

Cada vez em que o bailarino principal entrava no palco, Taehyung prendia a respiração até seus pulmões doerem. Examinava-o enquanto este se colocava na ponta dos pés, pulava, flexionava e esticava as pernas. Seu corpo esguio movia-se com leveza, girando graciosamente. Os músculos se tensionavam a cada movimento, e o maxilar de Taehyung o acompanhava instintivamente, sem que percebesse. O bailarino segurava a parceira com cuidado, e seu rosto exibia uma expressão apaixonada. Toda vez que se aproximavam, as pessoas ao redor de Taehyung suspiravam com a beleza das cenas que retratavam o amor puro de Romeu e Julieta. A bailarina principal parecia tão frágil e leve, e quando seu corpo esguio era erguido no alto pelo bailarino, Taehyung não conseguia deixar de pensar em seu próprio pai. Por que ele não escolhera a bailarina? Frágil, de uma magreza quase infantil, e longos cabelos negros como Jeon Jihyun?

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