prelúdio: areia movediça

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"A escuridão se adensara no fundo dos olhos", Clarice Lispector, Laços de família


A arte costumava rondar tudo em sua família e em sua casa, mas especialmente em seu pai. E, na verdade, talvez alimentasse ou servisse de razão para seus desejos e fetiches — ou, quem sabe, suas parafilias. Estava por todos os lados da casa: nas porcelanas, nos quadros, nos instrumentos antigos comprados em leilões, na música que soava incessantemente pelo toca discos ou nos recitais privados que seus pais organizavam, criando um universo efêmero e delicado.

Se Taehyung houvesse esticado um pouco seus olhos ou seus pequenos dedos em direção aos lugares aos quais não prestava atenção, se crescesse um pouco mais e observasse com cuidado por sob a mesa do jantar, teria entendido que seu universo bonito e inocente era tão frágil quanto as teias de aranha que gostava de estragar em suas tardes de brincadeira no jardim, ou as bolhas de sabão que gostava de perseguir e estourar.

Taehyung tinha cinco anos quando a conheceu. Chamava-se Jeon Jihyun e era pianista. Fora considerada um prodígio ainda criança e havia estudado e se apresentado durante anos nos melhores conservatórios musicais da Europa e do país, atraindo a atenção dos pais de Taehyung. Jihyun era filha única de uma família rica, por isso, suas mãos delicadas, capazes de hipnotizar quem a ouvisse reproduzir suas melodias perfeitas, nunca haviam feito esforço algum, conservando-se macias, bonitas e perfeitas. Ela sempre usava vestidos comportados, em tons claros, e adquiria uma aparência ainda mais frágil neles. Sua voz fina e baixa de menina corroborava com a imagem de inocência que seus pais queriam manter, assim como a indústria da música erudita, a qual esperava lucrar com seu talento e, especialmente, com seu rosto.

Ao conhecer Kim Taehyung, aquele menininho quieto, que odiava ter de se sentar para ouvir os recitais e odiava ainda mais ter de mostrar seus desenhos de traços infantis para todos os amigos de seus pais, Jeon Jihyun exalava o frescor da juventude e uma beleza indescritível. Em seus vinte e um anos, insistiam em lhe dizer que parecia ter quinze, como se fosse algum tipo de elogio, e ela logo exibia seu doce sorriso costumeiro, rodando o anel de diamante rosa em um de seus dedos finos e longos. Aquela era sua mania viciosa que Taehyung gostava de observar aos cinco anos, até que um dia Jihyun apareceu com uma gargantilha de pérolas, e passou a colocar os dedos sobre ela ao invés do anel. Sem conseguir tirar os olhos de Jeon Jihyun, Taehyung permanecia vidrado nela, decorando tudo a seu respeito, especialmente suas manias. Ele gostava de desenhá-la e chamá-la para brincar, e mais tarde, na pré-adolescência, ele viria a pintá-la em seus quadros, em completa obsessão por aqueles olhos dos quais ele nunca se esquecera.

Aos cinco anos, Taehyung gostava mais de Jeon Jihyun do que de seu irmão Kim Seokjin, quatro anos mais velho. Taehyung achava que seu irmão também não gostava dele. Nunca brincavam juntos e quase não se viam, porque Seokjin estava sempre ocupado sendo o projeto perfeito de seus pais, embora o mais novo não entendesse isso na época. Seokjin só tinha olhos para a irmã de três anos, Lisa. No entanto, a garotinha — adotada aos seis meses em uma das viagens da família à Tailândia — vivia seguindo Taehyung por todos os lados. No começo, ele se estressava com a bebê e tinha ciúmes da mãe, mas logo se acostumou a ter Lisa em seu encalço. Ela costumava segui-lo por toda a casa, imitava tudo que o irmão fizesse e agarrava suas pernas para chamá-lo para brincar. Estavam sempre juntos, a não ser nos horários livres de Seokjin, que rapidamente aparecia para levar Lisa para longe, enchendo-a de mimos e carinho, mostrando a ela como tocar instrumentos e como cantar.

Jihyun era professora de piano de Seokjin há alguns meses, e logo foi chamada para introduzir o instrumento a Lisa. Com isso, ela passara a frequentar ainda mais a casa, o que deixava Taehyung feliz. O mais novo dos meninos não possuía vontade nem talento para instrumentos, mas os tinha na pintura, de modo que seus pais pretendiam incentivá-lo nas artes plásticas. Taehyung passou a tomar aulas de desenho ao mesmo tempo em que seus irmãos praticavam na sala de música, e em todas as oportunidades que tinha, o garoto dava um jeito de escapar para ver Jihyun ao piano com seus irmãos. Ela sempre sorria gentil e aconselhava baixinho, acariciando seu cabelo: "volte à sua aula antes que briguem com você, Kim Taehyung".

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