trinta e três: anima sola

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Jihyun estava entretida em tocar o prelúdio para as Bachianas brasileiras número 3 quando a empregada bateu à porta da sala de música e com a voz calma avisou que um pacote havia sido entregue há poucos minutos. Assim, a pianista resolveu fazer uma pausa em seu longo treino para enfim descansar e ver o que havia recebido, embora não estivesse esperando por nada.

O pacote estava na cozinha, ao lado de uma redoma de vidro que cobria três cookies de sabores diferentes.

— O que é isso? — perguntou Jihyun à empregada.

— Seu filho comprou hoje pela manhã e deixou aqui para se você quisesse comer o que sobrou — a empregada deu um sorrisinho e continuou: — Ele também deixou alguns para nós... — explicou, referindo-se aos empregados da casa. — Está tão gostoso que já comemos todos.

— Ah... — Jihyun assentiu e escolheu um cookie para comer. Estavam realmente muito gostosos. A textura estava macia e a doçura, na medida certa, como Jihyun gostava. Ela ficou surpresa por Jeongguk ter feito algo assim, mas considerando que havia dado aos empregados, provavelmente tinha deixado para a mãe apenas por educação.

Depois de tomar um pouco de água e levar as mãos, Jihyun procurou por um estilete e se ocupou em abrir a pequena caixa da encomenda, que devia ter o tamanho de um livro comum, não muito mais do que isso. Não havia nome do remetente, apenas um endereço para devolução caso o destinatário não fosse encontrado.

Tirou o papel que cobria o conteúdo e se deparou com uma tela de pintura virada para baixo. Havia uma folha dobrada no centro e, ao pegá-la, viu que era uma página arrancada de uma Bíblia, com um verso sublinhado. "E vi uma mulher montada numa besta cor de escarlata, que estava cheia de nomes de blasfêmia, e que tinha sete cabeças e dez chifres. A mulher estava vestida de púrpura e de escarlate, e adornada de ouro, pedras preciosas e pérolas; e tinha na mão um cálice de ouro, cheio de abominações e da imundice da prostituição; e na sua fronte estava escrito um nome simbólico: A grande Babilônia, a mãe das prostituições e das abominações da terra".

Com as mãos trêmulas, bastante confusa e assustada, Jihyun tirou a tela para observá-la. Era uma pintura medonha, com tons sombrios e sangrentos que a lembraram dos quadros mais estranhos de Goya. Então percebeu que reconhecia aquele traço e aquele tema — aquela mulher. "A grande Babilônia" — a mulher montada na besta, adornada em joias, com uma taça de vinho na mão — era ela mesma, coberta em sangue, como dizia outro trecho daquela página. No canto inferior da tela, perdido nos tons escuros, estava o nome de Kim Taehyung, assinado junto ao ano 2012. Jihyun correu à procura de um isqueiro e colocou fogo no quadro imediatamente. Jogou-o em um vaso de plantas vazio e inutilizado no jardim. Sentindo falta de ar, ela se abaixou segurando as bordas do vaso, e começou a chorar. O pulmão parecia prestes a rasgar conforme o ar entrava e saía com dificuldade.

Se aquela data era verdadeira, então Taehyung havia pintado aquilo pouco tempo depois de ter sido preso, talvez após um ano. E mesmo que fosse mentira, mesmo que tivesse pintado aquilo agora e lhe enviado, não mudava o fato de que a estava retratando como aquela mulher imunda e abominável.

O que mais ela tinha de fazer? O que mais era preciso dizer, quanto mais tinha de sofrer para que ele entendesse que estava arrependida de todas as coisas que fizera na juventude? Ela era uma menina tola e apaixonada, facilmente corruptível, facilmente enganada. Também havia sofrido naquela época e não deixara de sofrer nenhum dia desde que seu relacionamento com Kim Sungwoong acabara. A culpa pelo que acontecera com Minsi e Lisa a assombrava, assim como os dois bebês perdidos, mas ela sempre dizia a si mesma que não era apenas sua culpa. Por que Kim Sungwoong continuava a viver como se nada tivesse acontecido? Por que Kim Taehyung a perseguia como se ela fosse a única culpada? Jihyun não podia deixar de pensar em como Taehyung a culpava por tudo em sua família, mas não percebia como toda a situação era inevitável — não tivesse sido ela a amante de seu pai, teria sido outra mulher, e Taehyung teria certamente acabado matando parte de sua família. Ele tinha arranjado uma ótima justificativa para si mesmo ao se convencer de que fizera tudo pela família, mas não passava de um garoto hipócrita e psicopata que precisava de um motivo aparentemente racional e lógico para seus impulsos violentos. Se não tivesse sido Jihyun, poderia ter sido qualquer coisa. Se Taehyung não tivesse atirado em Lisa sem querer, provavelmente a teria matado em um golpe de fúria ou em um plano meticuloso e sem rastros alguns anos mais tarde. Talvez teria assassinado a família inteira, não só a irmã.

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