dois: delíquio

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"Já a antevia ajoelhada, com os braços postos nos seus joelhos, a cabeça nas mãos e os olhos nele, gratos, devotos, amorosos, toda implorativa, toda nada." Machado de Assis, Quincas Borba.


Adeus aos conservatórios musicais da Europa. Adeus aos colegas, amigos e professores. Adeus aos museus famosos, aos trens que ligam todos os países e às viagens extraordinárias; aos cafés parisienses, às antigas construções ocidentais, às flores da Holanda, à névoa da Inglaterra, à comida da Itália, ao vento à beira do Mar Mediterrâneo... e olá à cidade natal. Ao seu país de origem, aos desconhecidos, ao túmulo dos avós que não via desde os doze anos, e à mãe que não via desde os dez, exceto pelo dia do funeral e os três dias que se seguiram, enquanto ela arrumava tudo para que o mais novo gênio da família estudasse na Europa e voltasse para ser o violoncelista mais famoso da Coreia do Sul.

Então ali estava Jeon Jeongguk, nove anos depois. Havia descido em um aeroporto do qual não se lembrava, e tido um pouco de dificuldade em se expressar na língua materna, já que não a usava integralmente desde a pré-adolescência. Sua mãe o esperara na saída da imigração, tão bonita quanto ele se lembrava. Na verdade, ele quase não se lembrava dela. Não a teria reconhecido se ela não houvesse caminhado até ele. Contudo, pelo pouco que se recordava, sua mãe não parecia ter envelhecido um único dia desde que se despediram. Ele se lembrava do dia que ela o trouxera até o aeroporto para vê-lo embarcar sozinho para um país distante. Naquela época estava tão bonita quanto agora, em elegantes roupas pretas e um coque francês. Ela o puxou sutilmente para um abraço da exata forma como fizera há nove anos, e Jeongguk sentiu as mesmas mãos de pianista afagarem suas costas. "Senti sua falta, meu amor", ela lhe dissera com uma voz doce, e depois o levara para jantar em um restaurante dentro do aeroporto.

Sua mãe não lhe perguntou sobre os nove anos que estivera longe dela. Ela já sabia, afinal. Todo mês recebia seus resultados nos conservatórios e acatava os conselhos dos professores, inscrevendo-o em todos os possíveis concursos. Jeongguk era um prodígio do violoncelo desde antes de seus sete anos, e muitos viam nele o futuro Yo-Yo Ma. Era o que seus avós sempre lhe diziam. Era o que sua mãe lhe dizia silenciosamente com seu olhar enquanto tocavam juntos. Ela, o piano. Ele, o violoncelo.

Todo ano, sua mãe era aclamada pela crítica por concertos magníficos ou pela criação de uma trilha sonora impecável e tocante. Ela era um dos maiores nomes da música clássica do país, e na última década havia se arriscado a compor para filmes. Jeongguk havia assistido a cada um dos filmes que levavam o nome "Jeon Jihyun" nos créditos e admitia orgulhosamente o quanto sua mãe era talentosa. Suas músicas tiravam o fôlego por si só, fato que tornava as cenas ainda mais emocionantes.

Ele estava de volta para ajudá-la em um novo contrato. Um dos escritores mais famosos da atualidade havia vendido seus direitos para a indústria do cinema nacional, que rapidamente contatara Jeon Jihyun com um contrato irrecusável. Uma das cláusulas, no entanto, ao que parecia, exigida pelo próprio escritor, pedia que o filho de Jeon Jihyun participasse da composição. O pedido era expressivo: o violoncelo devia ser o instrumento principal da trilha sonora, e Jeon Jeongguk devia tocá-lo.

Jeongguk deixara a vida na Europa em troca de um nome em seu país de origem. "Você ficará famoso aqui, meu amor, não precisa mais pensar em ficar por aí... a indústria de entretenimento cresce muito por aqui, por que não tenta seguir meus passos?", dissera-lhe sua mãe ao telefone quando lhe oferecera a parceria. "Você não pode perder essa chance. Se não gostar, pode voltar no final do ano". Ele concordara, porque não queria desagradá-la nem prejudicá-la. Se exigiam que ele estivesse ali para fechar o contrato, então ele estaria. Além disso, Jeongguk não conseguia parar de pensar que, na verdade, ele parecia já ser conhecido em sua terra natal. Como fora requisitado se "ninguém o conhecia"? Sua mãe costumava dizer que ele não ficaria famoso no próprio país ficando fora, mas... então como aquele escritor havia pedido sua participação? Talvez alguém o conhecesse, afinal...

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