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Respire. Inspire. Expire. Apenas respire.

Quase ouvia a voz da minha antiga terapeuta na minha cabeça, repetindo as 5 palavras um milhão de vezes. Depois que larguei as consultas, esse mantra continuou comigo. Era nele que eu me agarrava quando as coisas se tornavam difíceis demais e, na maioria das vezes, adiantava. Nas outras só isso não era o suficiente e quando sentia que meu coração estava prestes a se dilacerar em meu peito eu ligava para ele -o meu melhor amigo , mas, naquela noite, tinha a sensação de que meu coração estava sendo arrancado do peito. E JJ não estava lá.

Sabia que precisava encontrar uma forma de me distrair, que precisava fechar os olhos e os ouvidos para tudo o que acontecia no andar de baixo, mas tudo isso se tornou impossível desde que ouvira o som das porcelanas se quebrando. Enrijeci quando um grito de raiva sacudiu as paredes ao meu redor. Estava tão desnorteada que não sabia se vinha do meu pai ou da minha mãe, mas tive medo. Pavor.

Apertei as pernas contra o peito e fechei os olhos com força. Eu não deveria ouvir... Não deveria deixar que me afetasse...

- Depois de tudo o que eu fiz, você me traiu com aquela vagabunda.

- Por que simplesmente não diz que quer o divórcio? Não tem peito suficiente para assumir que está doida para "experimentar coisas novas", Anna? – meu pai riu. – Não precisa inventar. Todo mundo sabe que você é uma...

- Pare de ouvir – sussurrei para mim mesma. – Pare de ouvir, pare de ouvir, pare de ouvir.

Encolhida no sofá de concha da minha varanda, ouvi quando minha mãe começou a gritar. Falou sobre minha avó e sobre as minhas tias. Minha mãe revirou cada detalhe do passado sombrio da família do meu pai e destrinchou cada trauma colecionado desde a morte dos meus avós em um acidente de carro. Disse que o meu pai odiava a própria mãe, sua mãe morta. E, então, mais uma xícara foi quebrada.

Pare de ouvir, pare de ouvir, pare de ouvir.

Eu não conseguia respirar. Minhas mãos tremiam no meu colo enquanto eu chorava com o rosto enterrado em um travesseiro. Uma pontada de dor pressionou o meu peito quando alguns pensamentos intrusivos feriram a minha mente.

E se meu pai fizesse alguma coisa? E se a minha mãe fizesse alguma coisa?

Não. Aquilo era demais para lidar. As duas pessoas que eu mais amava no mundo estavam destruindo uma a outra no andar de baixo e não havia nada que eu pudesse fazer. A Dra. Rodriguez sempre me disse para ficar longe. Ela repetia em cada sessão que aquilo era problema deles, mas... Como eu poderia simplesmente ignorar?

Era como se a cada segundo meu coração oxidasse um pouco, perdendo um pedaço.

Então, no meio de todo aquele caos, ouvi o farfalhar das árvores. Me convenci de que era o vento e continuei imóvel, atirada no sofá. Mas o vento era muito característico. Ele tinha cabelos loiros, olhos azuis brilhantes e cheiro de banho. O "vento" saltou para dentro da minha varanda. O "vento" me encarou por dois segundos e, no momento seguinte, me ergueu em seus braços fortes como se eu fosse um bebê.

Simplesmente me deixei levar, mesmo que estivesse irritada, mesmo que quisesse empurrá-lo de volta para sua picape e ignorar a sua existência pela próxima semana, mesmo que ele estivesse me tocando com as mesmas mãos que tocaram Bettany. E eu odiava isso.

Fechei os olhos por um momento, finalmente conseguindo me concentrar em qualquer outra coisa que não fosse o caos instalado dentro da minha casa. Meu melhor amigo me pegou desprevenida. JJ enfiou o rosto no meu pescoço e eu precisei fazer muito esforço para controlar os arrepios. Demorei um pouco até passar as mãos pelas suas costas e descansar o rosto em seu ombro.

- Me perdoa – sussurrou com a voz carregada de remorso.

Nada parecia confortável. Na verdade, aquilo mais se parecia com o inferno, menos o abraço dele. Gostava como ele me apertava, como se pudesse juntar os meus pedaços e me reconstruir de novo.

- Princesa... escondi o rosto em seu moletom por tanto tempo que só percebi onde estávamos quando o cobertor tocou as minhas costas.

Ele tirou os sapatos e veio por cima, ajustando os travesseiros na minha costa para que eu ficasse confortável antes de tomar o lugar ao meu lado. Nossos ombros se tocavam e, aos poucos, seus dedos desciam cada vez mais para perto dos meus. Um outro som vindo do andar inferior sacudiu as paredes pela segunda vez.

- O que você acha que foi agora? - perguntei com a voz esganiçada.

- Hum?

- Acha que foi um prato ou uma xícara?

As luzes estavam apagadas e, mesmo com a cortina de lágrimas embaçando os meus olhos, ainda conseguia vê-lo abrir um sorriso reconfortante.

- Não duvido que tenham jogado o armário inteiro no chão – brincou e eu sorri fraco.

Um momento se passou. A única coisa que preenchia o silêncio entre nós eram os gritos dos meus pais. Ainda assim, eu conseguia me concentrar em uma coisa diferente - no seu cheiro, na forma carinhosa como me tocava e no olhar intraduzível que me oferecia. Sabia que eu parecia um cosplay fiel de "a noiva cadáver", porque meus olhos ardiam de tanto chorar e meu nariz escorria como se eu fosse um bebê. Mesmo assim, JJ passou o polegar pela minha bochecha carinhosamente e pousou os lábios na minha testa.

- Sua filha está fugindo de madrugada, desaparecendo por um dia inteiro e nem com isso você se preocupa – minha mãe gritou.

Um arrepio gelado percorreu a minha coluna. Fiquei nervosa instantaneamente e o nó na garganta se apertou tanto que foi difícil respirar.

- Porra - JJ resmungou, me puxando para o seu peito. - Vem cá, princesa.

- Fugindo?

- É, Mike! Fugindo. Deve estar trepando com aqueles garotos. Só isso explica ela agir desse jeito.

Então, eu realmente parei de respirar.

- Bom, eu sei de onde vem a herança de vadia dela, porque nós dois sabemos que a Kiara não é a única a deixar essa casa de madrugada para ir atrás de homem.

O nó da minha garganta se desfez em lágrimas que caíram copiosamente. Fechei os olhos com força, mas não consegui ignorar a sensação de ter o peito dilacerado. Eu estava agarrada à JJ, meu rosto escondido no meio do seu moletom e seus dedos acariciando as minhas costas antes que a palma da sua mão pressionasse a minha cabeça contra o seu corpo.

Demorou menos de um segundo para que ele tomasse o celular do bolso e colocasse um fone no meu ouvido. Não relutei. JJ mexeu os dedos com rapidez na tela do celular e reconheci a primeira melodia.

Lost stars.

Meu coração doía como se mil alfinetes estivessem me perfurando ao mesmo tempo. Eu não deveria absorver, sabia que não deveria, mas às vezes o choque das palavras cruéis era forte demais.

- Respire, Kie – sussurrou, beijando a minha testa.

Meus braços envolveram o seu corpo com força, puxando-o para perto. Ainda que os soluços não parecessem prestes a cessar, o som abafado do ritmo dos seus batimentos me acalmou. E o da música também - porque era exatamente como eu me sentia.

E algo me dizia que JJ também. Éramos dois mares de ideias, sonhos, traumas e memórias desconexas. Mas estávamos juntos, e isso significava o mundo quando não se tem quase nada.

Chorei até dormir em seu peito.

the deal - jiara!Onde histórias criam vida. Descubra agora