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Poucas coisas conseguiam verdadeiramente me alegrar em dias de merda. Uma delas era assistir o Manchester United destruir o Manchester City em campo e a outra era ver minha melhor amiga na minha porta, com uma sacola de batatas fritas e dois copos de milkshake. E ela estava lá, me oferecendo um sorriso breve e sincero.

- Eu disse que você não precisava... - comecei, mas ela enfiou uma batata na minha boca e me fez ficar calado.

- E eu disse que viria mesmo assim.

Kiara tirou os tênis na porta, deixou o casaco no cabide e me convidou para o meu quarto. Eu me deixei levar. O ambiente estava congelando e as luzes, desligadas. No teto haviam pequenas lâmpadas amarelas que imitavam estrelas - era o único toque da minha mãe que não tinha sido mudado na casa inteira. Kiara ligou o pequeno interruptor e sentou na cama minúscula, bem no final, onde pode encostar as costas na parede.

- O que vamos fazer? – perguntei, passando as mãos nos cabelos, bagunçando-os freneticamente.

Eu não era o tipo de cara que gostava de encarar os problemas de frente, ou falar sobre eles. Quando as coisas ficavam dificeis, eu me trancava no meu quarto até que a sensação de merda evaporasse - o que normalmente demorava a acontecer.

- Contando que não esteja esperando um boquete, o que você quiser.

Mordi os lábios para conter a risada, mas foi um desperdício. Por fim, me rendi a Kiara e deitei na cama. Meu rosto apoiado entre as suas pernas de uma forma que com certeza renderia piadas eróticas se eu estivesse em um dia bom. Mas eu não estava. Por isso, fiquei calado enquanto recebia um cafuné.

Ela suspirou.

- Quer conversar, J? - perguntou, hesitante.

- Por que está aqui, princesa? Sua mãe voltou e se ela...

- Eu não me importo – interrompeu. - E talvez eu tenha colocado um barulho de ronco na minha caixinha de som para que ela não perceba que eu saí, mas isso é o de menos.

Eu ri.

- Você é uma rata.

- Situações desesperadas pedem medidas desesperadas.

- Eu não estava desesperado.

- Mas você é o meu melhor amigo - retrucou. - Agora pode, por favor, parar de questionar meus motivos? Eu estou aqui e não vou sair até que me jogue para fora.

Suspirei, desistindo de contrariá-la porque sabia que era uma guerra perdida. Kiara conseguia ser bem teimosa quando queria e, para ser bem sincero, disse a ela que ficasse em casa implorando mentalmente que não me desse ouvidos, porque as coisas pareciam mais fáceis depois de compartilhar milkshake, batatas fritas e cafuné – não com qualquer pessoa, mas especificamente com ela, Kiara.

Fiquei um tempo em silêncio, sentindo seu toque delicado passeando pelos meus ombros, peito, braços e cabelos. Sabia que podia confiar nela, por isso respirei fundo e me esforcei para vomitar as palavras.

- Eu não consigo perdoar ele – confessei depois de tomar fôlego. - Eu quero, Kiara, e eu juro que estou tentando, mas todas as vezes que eu olho para o meu pai, eu lembro... Eu lembro de como as coisas eram antes da reabilitação. Odeio isso, porque ele merece uma segunda chance. Porra, quem sou eu para dizer que alguém não merece?

Ri sem humor. Meus olhos começaram a arder e eu pisquei várias vezes, só por precaução.

- Eu não consigo – esfreguei as mãos no rosto. - Ele está fazendo tudo o que pode, Kie. Sábado meu pai vai ter um jantar com os chefes e me convidou para ir e... Merda, eu sequer consegui responder as mensagens dele. Eu só... Eu não consigo.

Minha respiração começou a ficar trêmula. Os lábios de Kiara tocaram a minha testa delicadamente e, meio desajeitada, ela se inclinou para me abraçar antes de voltar a me fazer cafuné.

- Ele machucou você, J- sussurrou. -E uma agressão como aquela... Caramba, não é algo que alguém supere rápido. É um processo.

Se eu fechasse os olhos, ainda conseguia lembrar do choque do seu punho contra a minha boca, conseguia lembrar da dor de cabeça no dia seguinte e do olhar quebrado que Kiara me lançou todas as vezes que recuava quando o chumaço de algodão embebido de remédio tocava os meus cortes.

- Ele estava drogado.

- Mas você não- retrucou. - Não é como se você pudesse esquecer isso do dia para a noite. Ele errou, J, e sabe que vai ser difícil reconquistar a sua confiança. Você precisa parar de se cobrar. Você lembra do que me disse na jacuzzi?

Continuei calado.

- Você é a vítima, J. Não fica tentando mudar de posição para carregar uma culpa que não é sua. Isso é... Autossabotagem.

Passei um tempo absorvendo as suas palavras, sem saber exatamente como responder, ou se deveria responder. Kiara tinha razão. Sabia que tudo era um processo e que meu pai estava dando duro para se recuperar e ficar limpo, mas às vezes precisava de alguém que me lembrasse que eu também era humano.

Kiara era esse alguém.

- Please, don't see just a boy caught up in dreams and fantasies -começou a cantar e as batidas do meu coração ficaram instáveis. – Please, see me reaching out for someone I can't see.

Enlacei os dedos nos seus, deixando um beijo demorado no dorso das suas mãos.

Quase não acreditei. Havia algo de muito tocante em tê-la cantando para mim depois de ter recusado por um tempo e, principalmente, cantando Lost Stars. Por algum motivo, senti que aquela música havia se tornado a música dos nossos momentos de caos.

O aperto ficou mais forte nas minhas mãos e eu fiquei ali, ouvindo cada palavra saindo melodicamente pela sua boca, me confortando mais do que uma dúzia de conselhos. Quando a música acabou, tomei o meu lugar ao seu lado, nossos dedos ainda juntos.

- Melhorou?

Acenei com a cabeça.

Eu me sentia vulnerável e exposto falando sobre as minhas fraquezas, mas por milhões de motivos diferentes, eu não tinha medo, não de Kiara, porque quando tudo era uma variável na minha vida, ela era a minha única certeza. Quando as dores se tornavam insuportáveis, ela estava comigo.

E quando olhei para ela naquela noite, vi não só a minha melhor amiga, mas também a garota por quem estava apaixonado.

the deal - jiara!Onde histórias criam vida. Descubra agora