prólogo

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O cheiro denso e acre era expansivo pelo ar da cidade baixa, não havia uma só esquina que não estivesse impregnada com o odor que carecia de cuidados. Respirar era penoso, principalmente para aqueles que não estavam acostumados ao ar rarefeito e repleto de toxinas, resquícios das bombas nucleares lançadas durante a terceira guerra mundial.

Em um pequeno, quase minúsculo, quarto da periferia de Unova morava um rapaz de olhar astuto e mente afiada. Muitos o comparavam a uma raposa gatuna e sagaz e seu codinome refletia essa comparação: Kitsune. 

Seus olhos eram observadores e perspicazes se comparados aos olhos famintos que vagueavam pelas ruas e vielas de Unova, a cidade das ironias. 

Primeiro por seu nome: Unova, mas a cidade baixa não possuía nada de nova, apenas uma região decrépita a qual o tempo castigou. Segundo por seus habitantes: cada um trazia consigo o destino irônico que a vida, ou quem sabe algum ser divino, lhes impunha. 

Com o rapaz, esquecido em um quarto de um prédio periférico abandonado, não era diferente. Sua ironia estava em seu nome real: Matteo, o qual trazia um significado divino, uma dádiva, mas o Deus que os olhava tinha lá seus desejos sádicos e gostava de brincar cruelmente com seus filhos ou criaturas. 

O jovem de olhos turbulentos e afiados era a própria maldição. Ou talvez tenha sido amaldiçoado por simplesmente ter se agarrado a vida. Dentro de um ventre resistiu as investidas da morte, dos bisturis e dos remédios, tornou-se surdo para os apelos desesperados de quem já não tinha muito para si, quem dirá para outro alguém. 

E assim nasceu, mas como uma maldição, sugou a vida que estava ao seu redor, como se fosse o preço a se pagar por existir, um preço caro demais para um recém-nascido quitar. Entretanto, naquele lugar não havia espaço para questionar, apenas para lutar e sobreviver. 

Era matar ou morrer e com o tempo se descobre que apesar de seus pesares é preferível matar. 

O sangue escorre nas mãos de cada um dos habitantes de Unova, seja por aqueles que levaram para os confins de Hades ou seja por aqueles que foram tomados de si. 

Como havia sobrevivido por tanto tempo era um mistério, mas ali estava ele: em pé, as roupas surradas e mal trapilhas, o cabelo sujo e engrossado pela poluição da cidade, o corpo recoberto por cicatrizes e o braço robótico a qual construira com restos que advinham da cidade alta. 

A mão enferrujada parecia rugir com o movimento de seus dedos, precisava mais do que depressa arranjar um pouco de óleo lubrificante para as porcas e parafusos ou em breve não conseguiria mais mexê-los a seu bel prazer. 

Em passos vagarosos se direcionou para a pequena pia que havia no quarto. Sua mão boa se encheu com a água que escorria lentamente da torneira corroída pela ferrugem e deu longos goles para aliviar sua sede. O gosto era péssimo e ferroso, mas era a única fonte a qual poderia encontrar por ali naquela zona esquecida pelo mundo. 

Em seguida verificou as armas presas e escondidas por seu corpo, as facas e canivetes presas em suas coxas de forma estratégica e a pistola enfiada entre sua pele e a calça larga. 

Não se saia de mãos abanando pela cidade, era uma questão de sobrevivência, viver até ver o amanhecer do novo dia dependia disso. 

Ao abrir a porta, notou uma movimentação próxima bem em frente ao batente, sua mão seguindo inconscientemente para a adaga, mas parou ao perceber que se tratava de uma ratazana cinzenta em busca de comida ou de qualquer coisa que pudesse roer. Às vezes os animais tinham mais sorte em se alimentar do que os humanos ali. 

Depois de trancar seu quarto, Matteo caminhou pelo extenso e vazio corredor. As paredes velhas descascavam e dava para ver por debaixo da tinta a porosidade do material, esfarelando ao toque e deixando um cheiro poeirento no ar. Logo chegou a uma outra porta, a placa envelhecida de "não perturbe" já estava com boa parte de suas letras apagadas e riscos e amassados por todo canto. 

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