Uma voz doce cantarolava suavemente aquela canção tão conhecida e familiar. A letra era pronunciada de forma estranha, apenas seguindo o ritmo da música, sem realmente saber o seu sentido. Algumas palavras pareciam seguir as sílabas do original, mas outras só lembravam um emaranhado confuso de letras.
Talvez fosse pelo fato de que quem cantava não conhecia a letra, muito menos o idioma, mas havia um trecho que cantava com todo ar que ainda restava em si, a sequência frenética e empolgada de "Linda".
Gael tentou abrir os olhos naquele momento, mas, por algum motivo desconhecido, não o conseguiu fazer. Queria poder enxergar quem era a pessoa que cantava aquela música. Definitivamente não era Matteo, a voz era feminina e gentil demais para se tratar dele, mas também não lhe lembrava o timbre de Eva ou de Íris, entretanto, ainda lhe era familiar.
— Vamos, dorminhoco, hora de acordar, Gael — comentou a voz parando de cantar, o homem podia sentir a presença se aproximando, mas mesmo assim seus olhos não abriam. — Está fingindo dormir de novo, é? Vou ser obrigada a usar meu golpe ultrasecreto e poderoso?
O homem sentiu uma risada subir pela garganta e seu corpo girar para o lado, recobrindo-se com o fino lençol rasgado até a cabeça.
— Que garoto mais safado... Você quem pediu por isso. Ultra ataque de cócegas da mamãe — afirmou a mulher, seus dedos tocando aleatoriamente as costas e costelas, fazendo uma risada alta escapar por debaixo dos lençóis.
Gael tentou se mover, pará-la ou qualquer coisa, mas seu corpo parecia agir sozinho, como se não tivesse o menor controle sobre ele. Em seguida, seu tronco se ergueu e permaneceu sentado ao mesmo tempo em que podia ouvir sua própria voz, ou o que imaginava sê-la já que estava um pouco diferente, rir com aquele ato.
— Bom dia, meu dorminhoco. Todos os seus irmãos acordaram, só falta você — mencionou e o olhar de Gael seguiu automaticamente para seu rosto, os olhos escuros assim como sua pele, os fios negros de seu cabelo eram curtos e encaracolados, aquelas feições eram tão familiares.
Seus pés descalços tocaram o chão e seu olhar percorreu o lugar em que estava: uma sala pequena e repleta de camas largadas no chão, algumas pareciam ter muitos e muitos anos de história, a parte inferior apresentando mofo pelo contato com o chão gélido e úmido.
— Venha, vou te dar um banho — ofereceu a mulher estendendo a mão e a sua própria seguiu, segurando a região.
Gael notou que sua mão parecia bem menor que o normal, assim como sua estatura ao se levantar, tudo ao redor parecia grande demais para si, como se tivesse aumentado de tamanho da noite para o dia, ou talvez fosse ele que encolhera.
Seus pés foram acompanhando a mulher até o banheiro e se deixou conduzir e se banhar, não possuía qualquer controle da situação e nem ao menos conseguia dizer qualquer coisa, sua boca não se movia e nenhum som saia dali.
Podia ouvir a mulher falar consigo, dizendo nomes e situações que lhe pareciam familiar, mas que não conseguia de forma alguma ligar a imagem de algo ou alguém.
Depois disso, a mulher o vestiu e seguiram pela casa. Gael notou todos os detalhes que podia, as paredes mofadas e rachadas, a tinta descascando, os móveis antigos e decrépitos, tudo lhe fazia lembrar de Unova, do Leste, de onde estava, ou deveria estar, naquele momento.
Contudo algo dentro de si sabia que não se tratava do Leste, ou do prédio em que passou a habitar desde que caíra do alto.
— Você já está com quase 3 anos, Gael, quando vai falar mais com a mamãe e os seus irmãos? — questionou a mulher, sua mão pressionando levemente a do homem em tamanho reduzido.
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inafetivo
Science FictionNaquele mundo em que sobreviver era a lei, os afetos são esquecidos e abandonados desde o berço. Amar se torna um peso, algo difícil de se carregar, uma cruz a qual poucos conseguem lidar. A guerra, a morte e a violência se encontram em cada esquin...