deveria confiar?

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No meio da noite o pequeno grupo deixara o prédio abandonado, seguindo pelas ruas e vielas escuras de forma discreta. Dirigiam-se em silêncio pelo local, andando em uma velocidade continua e decidida. 
Matteo seguia um pouco mais a frente do grupo, sua mão boa se mantendo a postos na arma em sua cintura, pronto para disparar a qualquer momento, sem contar seu braço robótico que seguia preparado para atacar se precisasse. 
Eva estava ao seu lado direito, a posição que passara a ocupar desde que o antecessor de Bakeneko partira. Temporária talvez fosse a palavra certa, não era como se houvessem decidido realmente que as coisas se seguiriam daquela forma, tampouco se viam naquelas posições estratégicas. 
Matteo não havia escolhido liderar o pequeno grupo, em suma, se contentava em ocupar o lugar de braço direito como fazia entre os rebeldes, enquanto a mulher de fios azulados era o braço esquerdo. Entretanto, as coisas haviam mudado nos anos subsequentes a morte de Dante, ou Bakeneko como era mais conhecido, os dois tomaram rumos em separado, apesar de ainda se considerarem rebeldes, mas não existia mais aquela força motriz que os ligava fielmente ao movimento. 
Havia sido um rompimento drástico e impactante, um luto que os havia separado completamente da ideia física dos rebeldes. E agora agiam como desgarrados e independentes, mantendo os ideais do grupo, apesar do afastamento. 
Só não lhes fazia mais sentido seguir sem um líder em que confiassem, muito menos fazia sentido ocupar o lugar deixado para trás. Havia sido uma decisão mútua e silenciosa, não ocorreu uma conversa, não ocorreu nada que indicassem que romperiam e colocariam uma barreira ali. 
E agora seguiam, apesar de outras vertentes e caminhos paralelos, o mesmo objetivo dos rebeldes: tentar de alguma forma retomar Unova, destituir pouco a pouco a influência do submundo sobre as decisões da cidade, sobre a vida das pessoas, para assim uni-los em prol de algo benéfico a todos. 
Era algo arriscado, complexo e demandaria esforço, inteligência, estratégia e sangue, não há rebelião e revolução sem que se derrame o líquido carmesim pelas ruas, não por ser um movimento violento, mas por ser uma resposta a altura de um sistema violento que dia após dia derrama sangue em cada esquina. 
Os passos firmes pouco a pouco os levavam para perto da fronteira, o calor da noite lentamente se transformava em uma brisa fétida e densa. Os sons das aves migratórias ecoavam por onde passavam, tornando difícil distinguir qualquer outro som. 
Maya olhou ao redor ao vislumbrar uma movimentação que lhe parecia estranha mais ao longe, mas, quando se aproximaram do local, apenas ratos e pássaros saíram da escuridão. 
A mulher de cabelos rosas se tranquilizou e voltou a caminhar ao lado de Eva, segurando-lhe a mão para manter o ritmo que ela seguia. Eva deixou seus dedos pressionarem as costas da mão da outra mulher e a puxou para mais perto. 
— Não saia do meu lado — murmurou Eva, sua mão livre acionando a adaga do punho inglês, deixando-a pronta para atacar. 
O som de algo metálico se chocando com o chão fez Matteo e Eva se manterem em posição de ataque na direção do barulho. Matteo segurava com firmeza a arma em sua mão boa, enquanto mantinha o braço robótico a postos para um segundo tiro. Uma lata de lixo rolou pela rua em frente a eles, deixando os  diversos restos pelo chão, entretanto, nada mais aconteceu. 
— Não é possível que o vento derrubou uma lixeira tão cheia assim... — comentou Matteo em voz baixa, seu olhar deslizando pelo local. — Nós deviamos procurar ao redor com cautela e... 
— Seja lá quem estiver aí, pode aparecer, estou pronta para arrebentar sua cara se veio aqui nos atrapalhar ou arranjar briga — pontuou Eva em voz alta, soltando Maya de si e a deixando atrás de seu corpo. 
— Karasu... — repreendeu Matteo, mas logo o som de passos o fez parar e direcionar a mira, procurando de onde viera o som. 
Outra lata de lixo foi derrubada, rolando ruidosamente pela rua, a luz intermitente e fraca dos postes não ajudava em nada em visualizar quem quer que fosse. 
— Íris... Não tem nenhum veneno com você que seja útil agora? — perguntou Karasu, seu corpo girando em direção aos passos. 
— Não posso usá-los aqui... Acertaria as pessoas que moram nessas casas — comentou Maya, observando as janelas das residências, vislumbrando que algumas pareciam ocupadas. 
O som das asas dos pássaros voando ao redor os manteve mais próximos, mantendo a mais baixa do grupo no meio, protegida pelos demais. 
— Eu posso ir na frente para ver o que é. Não vou me machucar independente do que seja — disse Gael se movendo em direção ao novo barulho de passos, mas parou quando Matteo o segurou. 
— Não se separe, pode ser apenas um truque para nos dividir, não sabemos quantos eles são, é arriscado ir sozinho. 
— Por isso mesmo eu deveria ir sozinho, não importa quantos sejam, lembra? — falou Gael, se virando para encarar Matteo. — Eu posso enfrentá-los e manter vocês protegidos. 
Kitsune mordeu o interior da bochecha e passou os segundos seguintes pensativo, fazia sentido deixá-lo ir na frente, mas ao mesmo tempo suas emoções deixavam a lógica trêmula, fazendo-o se questionar se realmente era o melhor a se fazer naquele momento. 
Haveria outra opção se não essa? 
— Tudo bem, mas... Recue se sentir que está em perigo. 
— Não se preocupe, eu não sei o que é me sentir em perigo — mencionou se direcionando o mais rápido possível em direção aos barulhos, o que fez Matteo titubear e pensar em ir atrás dele. 
— Deixe-o, você não confia nele? Não foi por isso que disse seu nome para ele? — replicou Eva estendendo seu braço para parar a movimentação do outro. 
Matteo trincou os dentes contrariado, observando as costas largas do meio-homem, meio-robô se embrenharem na escuridão oscilante. Seu coração palpitava com certa angústia ao vê-lo agir sozinho, se afastando de forma que não pudesse fazer nada se algo viesse a acontecer. 
— Mas... Algo pode acontecer com ele... 
— Não acha que está sentimental demais? — retrucou Eva, sua mão dando um leve empurrão para que Matteo voltasse alguns passos. — Se algo acontecer, não vai ser você que conseguirá fazer algo agindo por impulso, você não funciona assim. 
Matteo recuou, sua mão segurou com mais firmeza na arma. Sua mente tentava aceitar que Eva estava certa, não era o tipo de pessoa que se deixava levar pelas emoções em uma luta, mas a conversa com Gael, todo aquele momento a dois havia mexido consigo e a ideia de perdê-lo, de perder mais alguém em confronto por não ter tentado impedir, o assustava e agoniava. 
O barulho de metais se chocando se seguiu após o avanço de Gael e o trio se adiantou para lá depois que perceberam que não parecia haver mais do que uma pessoa confrontando-o pela quantidade de colisões e sequências. 
As lâminas se aproximavam e se afastavam sem realmente possuírem qualquer intenção de matar ou ferir, como se trocassem golpes pelo simples ato de fazê-lo. Os fios negros e compridos presos em duas tranças balançavam conforme as mãos forçavam sua espada para frente e para os lados, golpeando a arma dele. 
— Finalmente chegaram — comentou a mulher morena se afastando de Gael em um pulo, cessando aquela pequena luta entre eles. — Achei que teria que derrubar mais coisas para que viessem me procurar. 
— Yatagarasu... O que pensa que está fazendo aqui? — questionou Eva em um tom ríspido, ainda mantendo Íris atrás de si. 
— Aqui? Eu estava brincando com vocês para ver o quão assustados ficariam — respondeu entre risadas, embainhando sua própria espada. — Soube que conseguiram sair com vida e ainda mataram Tengu da outra vez. 
— Não foi disso que perguntei... O que quer conosco? 
— Relaxa, Zu, eu vim em paz — afirmou a outra erguendo levemente as mãos em sinal de rendição, olhando para Gael e para Íris em seguida. — Parece que ainda não espantou nossos amigos. 
— Ya, achei que não nos veríamos novamente... Para onde pretende ir? — falou Íris, o que atraiu completamente a atenção da outra sobre si. 
— É claro que nos veríamos, o destino mais cedo ou mais tarde nos juntaria mais uma vez, Yuki — afirmou Yatagarasu se aproximando dela, mas parou quando Eva ficou em sua frente. — Qual o problema, Zu? Só quero dar um "oi" para uma mulher bonita. 
— Se quer dar um"oi" para uma mulher bonita, procure outra — rebateu Eva, o que fez a mulher morena encarar com certo espanto por alguns segundos, mas logo rir divertida. 
— Que possessiva... Parece que cheguei tarde pelo jeito... Mas tenho outras duas opções por aqui. — A mulher girou no próprio eixo e seguiu seu olhar pelos dois homens ali presentes. — Qual deles deveria tentar primeiro? O mais bonitinho ou o que tem essa cara de mau? 
— Deveria parar de brincadeiras e falar logo o que quer — respondeu Matteo franzindo o cenho. 
— Vocês dois são muito estraga-prazeres... Mas já que insiste, vim acompanhá-los para o Norte. Tengu já sabia do meu plano em incendiar o laboratório e mandou o carregamento com as drogas para lá — comentou Yatagarasu. — Preciso destruí-las antes que cheguem no destino final. 
— E qual seria o destino final? — Quis saber Gael voltando a se aproximar do trio, mantendo-se ao lado de Matteo, as espadas retornando a suas bainhas. 
— Já falei o quanto você é uma graça quando faz suas perguntas? — mencionou Yatagarasu, seus pés a trazendo para mais perto dele e ela passou um de seus braços pelo do outro, puxando-o para que andassem. — Vamos andando que irei contar o que sei no caminho. 
Gael assentiu e começou a acompanhar a mulher que deu um riso empolgado. Matteo bufou baixo e contrariado com aquela ação e se adiantou em segui-los. 
— Não saia puxando os outros como se soubesse o que está fazendo, não concordamos com sua ideia de nos acompanhar — replicou Matteo, o que só fez a mulher rir.
— E acaso vocês sabem? Vão entrar no Norte e seguir para onde? 
— Você sabe onde podemos encontrar o carregamento, Ya? — questionou Íris, sua mão se segurando na de Eva e a levando para mais perto, acompanhando os demais. 
— Existem dois lugares que para onde podem ter levado as drogas: Niflheim e o triângulo de Valhalla. 
— Niflheim? — repetiu Gael, a sonoridade da palavra parecia estranhamente familiar, como se já tivesse ouvido falar de lá antes, mas se lembrava claramente que não fora em Unova. 
— É a região mais desabitada do Norte devido as baixas temperaturas, é como um deserto congelado — pontuou Íris, seu olhar se alternando entre Yatagarasu e Gael. — Há boatos de que lá seja uma...
— Jazida de petróleo — completou Gael em um modo automático, tentando entender de onde viera aquela informação. 
— Isso... Como sabe disso? 
— Não sei, só foi uma informação que se ligou em minha mente. 
— Minha maior suposição é que as drogas estejam lá para testes em baixas temperaturas, para saber se elas funcionam da mesma maneira ou se há alguma alteração positiva ou negativa. 
— E o triângulo de Valhalla? Acha que temos alguma chance de encontrar algo por lá? — Agora foi Matteo a se pronunciar, sua mente entrando em alerta com o comentário de Gael, havia sido uma memória esporádica de quando estava na cidade alta? Se sim, havia muito mais a se escavar em toda aquela história. 
— Em Valhalla fica o quartel general da líder do submundo do Norte, Hela. 
— Você está cooperando demais conosco, o que quer contando tudo isso assim? — falou Eva em dúvida, desconfiada da ação alheia. 
— Sabe, Zu, não posso fazer tudo sozinha, apesar de ser incrível com qualquer arma e distância, uma pessoa normal tem suas limitações — respondeu Yatagarasu, seu corpo se virando levemente para observar a irmã. — Por isso vim até vocês, sei que têm objetivos próximos aos meus e, independente de aceitarem ou não minha companhia, estão seguindo para o mesmo lugar. 
— Você sempre faz o que lhe dá na telha de toda forma... — murmurou Eva se atendo mais a outra, a luz intermitente das ruas permitindo ter pequenos vislumbres mais claros dela, notando alguns pontos avermelhados e queimados de sua epiderme. — O que aconteceu com você? 
— Comigo? — Yatagarasu se focou para onde Eva olhava e soltou um som compreensivo. — Tengu sabia que em algum momento iria incendiar o laboratório e o deixou o mais inflamável possível, quando o incendiei, o fogo se alastrou rápido demais e tive algumas queimaduras, nada demais. 
— Nada demais? Você deveria ter pensado nessa possibilidade — pontuou Eva, um bufo baixo deixou seus lábios. — Agora vai ficar com essas marcas para sempre... Você é muito imprudente. 
— Aprendi com você — mencionou Yatagarasu dando um sorriso de lado. — Sabia que ainda se preocupava comigo, maninha. 
— Eu não me preocupo, faça o que quiser, não me importo nem um pouco — replicou Eva se adiantando em direção a fronteira. 



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