O som das ferramentas e pequenas batidas preenchiam completamente a sala de bugigangas. Matteo montava e remontava a caixa de toca discos, girando e retorcendo os ferros de seu interior para se encaixarem.
Enquanto o moreno dava um jeito de fazer aquilo funcionar, Gael estava sentado próximo, os cotovelos apoiados nos joelhos observando tudo o que o outro fazia, pegando aos poucos os trejeitos e maneiras com que ele usava as ferramentas.
— Você frequenta lá há muito tempo? — questionou o maior, seu olhar não se desviando um segundo sequer das mãos do outro.
— Desde que me entendo por gente. Foi por lá que eu vivi minha infância. Jizo me odiava quando era mais novo — comentou o menor, uma risada baixa deixando seus lábios. — Aquele lugar, apesar de tudo, é um dos cantos mais seguros para as crianças por causa do Jizo.
— Ele parece gostar de você agora, eu acho — mencionou Gael, seus dedos batendo suavemente contra suas bochechas. — Ele funciona como um pai para aquelas crianças?
— E quem não gostaria? — falou o menor com certa ironia, rindo em seguida. — Eu era terrível, não que tenha mudado muito, mas ele ficava irado com frequência e sempre achava que era eu quem roubava as tralhas daquela loja dele, não que fosse mentira, boa parte das vezes fui eu. — Matteo ajeitou a agulha na caixa e passou para os últimos ajustes. — No Japão, há muitos e muitos anos atrás, tinha uma lenda budista sobre Jizo, ele era um deus protetor das crianças que morriam prematuras.
— Se eu tivesse algum sentimento, eu gostaria de você — pontuou o maior, o que fez o moreno parar o que fazia, encarando fixamente o toca discos, os dedos soltando as ferramentas sobre a mesa por longos segundos antes de retomá-las e continuar o que fazia. — Mas era seu jeito de sobreviver, não era? E por que proteger as crianças que morrem prematuras?
— A maioria das crianças acabam indo para o roubo ou assassinatos para sobreviver, muitas morrem sem nem ao menos ter um nome... Conta a lenda que as crianças que morrem cedo são enviadas para o mundo inferior por causarem sofrimento aos pais. Quando chegam lá, são torturados por uma bruxa chamada Shozuka no Baba e Jizo, compadecido pela situação, intervém para salvá-las.
— Pensei que se desse nome as crianças antes mesmo delas nascerem... E é isso que o Jizo faz para as crianças daqui? Intervém para salvá-las?
— Por aqui, dar um nome para um recém-nascido é sinal de mau agouro, não que eu acredite nisso já que ainda estou em pé. A maioria dos bebês acaba morrendo antes mesmo de completar um ano de vida e dar um nome a alguém é uma forma de se apegar, o apego dói quando se parte. — O moreno respirou fundo e pegou o LP, encaixando-o no toca discos, seus dedos ajeitando a agulha sobre o disco de vinil. — Algo assim... Lá elas têm um teto sobre suas cabeças e não correm o risco de serem atacadas por gente de fora. O resto... Jizo não faz milagres.
— Você recebeu seu nome quando nasceu? E contar seu nome para alguém tem algum significado? — Gael se aproximou em passos tranquilos, observando o disco preto girar e o baixo som um pouco falho sair. — E como elas ficam protegidas de gente de fora? Nós entramos e saimos de lá sem problema.
— Foi... A parteira quem me deu esse nome, é irônico que significa "dádiva de Deus", mas só recebi esse nome porque nasci, simplesmente por isso, contrariando todas as adversidades... Talvez "maldição de Deus" fosse um significado melhor. — O moreno levantou a agulha do disco e o parou, abrindo-o novamente e mexendo em seu interior. — Essas velharias sempre levam mais tempo do que o esperado... Existem muitas formas de ver nome e codinome, muitos sentidos distintos, mas para mim o nosso nome é quem nós realmente somos e o codinome quem queremos ser, ou quem queremos que os outros vejam que somos. Quando dei meu nome para você, entreguei quem eu sou em suas mãos, uma prova de confiança. Você confia em mim?
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inafetivo
Science FictionNaquele mundo em que sobreviver era a lei, os afetos são esquecidos e abandonados desde o berço. Amar se torna um peso, algo difícil de se carregar, uma cruz a qual poucos conseguem lidar. A guerra, a morte e a violência se encontram em cada esquin...