Aquela havia sido uma surpresa impactante para Matteo, ver Gael chorar, apesar de seu olhar manter uma apatia paradoxal, fez com que algo dentro de si falhasse, talvez aquela parte que tinha medo do que o outro era capaz de fazer. Entretanto, vê-lo em uma posição em que se permitia chorar em sua frente, havia colocado a ideia de que era sim possível que ele tivesse algum sentimento, mas só não o soubesse colocar em palavras.
Talvez os sentimentos e reações da memória repercutissem em seu corpo, mas não os associasse consigo, mas sim, com o passado, não como um sentimento presente.
— Como está se sentindo? — perguntou Matteo enquanto mantinha sua mão acarinhando o maior, mesmo sabendo que ele não sentia seus toques.
— Estranhamente cansado e minha cabeça está doendo aqui. — O outro colocou a mão sobre a lateral direita de seu rosto, em seguida Matteo o imitou, deixando seus dedos massagearem a região.
— Chorar é cansativo... Sua cabeça deve doer pelo cansaço e pelo choro — pontuou o menor, seu corpo se ajeitando na cama e puxando o outro consigo. — Tente dormir um pouco mais, você se sentirá melhor depois de um bom descanço.
— Mas e se eu dormir e voltar a me lembrar de algo?
— Está com medo de sentir?
— Não sei... Acho que não gosto dessa sensação de vazio dentro de mim... Não sei se quero sentir ela de novo...
— Sensações podem ser estranhas a princípio, mas você pode aprender a reconhecer cada uma delas e como lidar com o tempo... Eu também não gosto de me sentir vazio, mas é algo que eu aprendi a lidar.
— E por que você se sente vazio?
— Tristeza, saudades, melancolia... Ausências...
— Então, me sentir assim é como estar triste?
— Às vezes sim... Talvez você esteja com saudades e sente a ausência daqueles que não estão mais na sua vida...
— Como você sente do Dante?
— Algo assim.
Gael pareceu pensar sobre aquilo, processando suas sensações físicas e os sentimentos e palavras. Realmente sentia saudades das pessoas de sua memória? Aquelas sensações eram, afinal, sentimentos?
— Você já sentiu algo em seu corpo que fosse diferente do habitual?
— Algo no meu corpo? Meu estômago tem ficado estranho... Dói um pouco, mas talvez seja apenas descostume do meu corpo com a alimentação daqui.
— Pode ser... É possível, você devia se alimentar melhor lá no alto...
— Por que a pergunta? Será que estou doente?
— Não, só estava curioso... Você nunca fala quando está sentindo algo, se estiver com dor deveria dizer, se sentir algo de diferente em qualquer momento, você precisa me contar.
— Certo... Obrigado por se preocupar...
— Não precisa agradecer... Venha, é melhor descansar um pouco mais — falou Matteo, fazendo o maior deitar ao seu lado. — E não se preocupe em se sentir vazio, eu vou estar do seu lado para te ajudar.
— Eu... Tudo bem. — Gael assentiu e se ajeitou na posição em que estava, fechando os olhos para descansar.
Matteo ainda permaneceu um tempo acordado, deixando seu olhar observar Gael até que dormisse uma vez mais. Sua mente pensando sobre todos os indícios e tudo o que o outro lhe dissera, talvez tivesse alguma forma de fazê-lo ter sentimentos, ou ao menos reconhecer que os tinha em seu interior.
[...]
Maya estava sentada em um canto do quarto, havia acordado há um tempo, mas decidiu por permanecer no cômodo em que adormecera com Eva. Após tudo o que passaram na base de Tengu, não foi nem um pouco difícil fazer a mulher deixar que cuidasse de si.
Todas as feridas, hematomas e cortes foram muito bem esfaixados e cuidados pela rosada e a maior não tardou em adormecer depois disso. Estava exausta e isso era bem claro, ter lutado contra 3 aos mesmo tempo enquanto carregava outra pessoa nas costas demandava um esforço físico imenso e Maya estava surpresa que a mulher não havia desmaiado de exaustão em algum momento da volta, muito menos que não houvesse reclamado de tê-la pendurada em suas costas durante o confronto.
Apesar de não parecer, Eva era fisicamente forte, de todas as pessoas que conhecera na vida, Maya a colocava como uma das dez mais fortes, quem sabe até não estava de igual para igual em força física com a que estava em primeiro em sua percepção.
Era fácil perceber que todos tinham suas vantagens e desvantagens em combate, mas Eva conseguia de certa forma lidar com suas desvantagens, assim como fizera consigo ou quando estava em menor número e no escuro. Ela era adaptável e isso por si só era impressionante.
Mesmo que fosse evidentemente alguém de curto alcance, a azulada conseguia alcançar mais longe com suas adagas, apesar de serem menos precisas que seus punhos, ainda assim, não era uma habilidade de se jogar fora. Além de utilizar quase completamente seu corpo em combate.
Via que era completamente diferente de si que se baseava em sua habilidade de longo alcance e armadilhas, além de sua velocidade, se fosse obrigada a lutar frente a frente não conseguiria se adaptar tão bem assim.
E tinha essa sensação com Kitsune, mesmo que ele soubesse usar espadas minimamente, não o vira fazer qualquer menção de que as usaria em um confronto próximo. Ele era em essência um lutador de longa distância como a si própria.
Bakeneko ainda era uma incógnita para si, era evidente que seu estilo era perfeito para um combate frente a frente, mas não o vira se ferir em nenhum momento, seja por ataques de curto ou de longo alcance, além de não ter a certeza do que ele não sabia fazer.
Fora ele quem derrotara Tengu e era claro que fora em um combate frontal com suas espadas, afinal, o outro era um dos maiores e melhores espadachins do Leste, mas fora derrotado por alguém que nunca tocara em uma espada para praticar.
Aquele conhecimento em lutas parecia algo inato, algo que surgia em si quando o momento pedia. Não tinha acompanhado a batalha entre Bakeneko e Ushi-oni ou Ameona, mas sabia que tinha sido uma derrota completa para o lado deles, o que só mostrava a adaptabilidade estrondosa do maior.
Ameona era uma combatente de longa e média distância, de uma agilidade tremenda e não possuía piedade, se haviam saído com vida da base aquela vez fora por causa de Bakeneko, demonstrando sua habilidade em confronto conforme o momento surgia.
O que dava ainda mais margem para Maya chegar a conclusão de que era provável que o outro pudesse se adaptar e se tornar um lutador de longo alcance se precisasse, o que era assustador por um lado, mas totalmente animador por outro.
— Por que está acordada, Maya? — resmungou Eva em voz baixa, se remexendo na cama enquanto abria lentamente os olhos. — Ainda está cedo para levantar.
— Sentiu minha falta na cama? — brincou Maya se levantando e caminhando até a maior. — Quer que eu durma com você?
— Não foi isso que eu disse... Faça o que quiser, eu vou voltar a dormir — anunciou Eva se virando na cama e ficando de costas.
Uma risada baixa e animada deixou os lábios de Maya e, pouco depois, a mulher se deitou, passando seus braços pela cintura de Eva, colando seus corpos sobre o colchão duro.
[...]
O grafite riscava furiosamente o papel, enquanto os dedos vez ou outra tocavam a tela holograma, tentando decodificar as informações.
Gael acompanhava com atenção Matteo transformar símbolos e números em letras e frases, absorvendo a forma como ele fazia tudo de maneira tão empenhada.
— Parece que nossa melhor alternativa para descobrir algo é seguindo para o Norte — comentou Matteo depois de um longo tempo em silêncio, o que fez Gael se aproximar para entender sobre o que o outro falava. — Aqui, está vendo? Esses pontos são as diferentes localizações dos IPs usados em momentos de comunicação do Tengu com alguém. Todos estão espalhados pelo Norte, parece não ter nenhuma correlação entre esses pontos além desse fato.
— Estou... Nem mesmo se interligá-los não chegaria a nenhum lugar específico?
— Não, até pensei nisso, mas todos os pontos de conexão dão em lugares diversos e aparentemente habitados por pessoas normais, se tentassemos ir de uma em uma levaria muito tempo e poderia ser infrutífero...
Gael ficou encarando por um longo tempo as marcações na tela e circulou a área central, a qual não havia nenhuma ligação entre os IPs.
— Essa área é a única em que não tem qualquer linha de correlação, seria um lugar estratégico e lógico para ficar se soubesse que suas localizações chegassem a outras pessoas.
— Faz sentido... Ficariam fora da linha de busca... Você pensa muito rápido... Talvez devessemos perguntar a Íris sobre esse lugar e...
A porta da sala de bugigangas abriu em empolgação, a madeira batendo contra a parede e a figura pequena e agitada de Íris surgiu, deslizando as rodinhas de seu sapato até se aproximar de onde estavam.
— Me perguntar sobre o quê? — questionou a mulher encarando a tela holograma, tentando acompanhar as diversas linhas e marcações feitas sobre o mapa.
— Com as informações que decodifiquei do aparelho que conseguimos, cheguei a essas localizações, são os pontos em que a contraparte de Tengu o acionou, todos estão...
— No Norte... Então é para lá nossa próxima parada.
— Acredito que ele possa estar por essa área — comentou Gael mostrando a região no mapa.
— O triângulo de Valhalla? Podemos verificar... Mas não sei se encontrariamos vida por lá...
A mulher de fios rosados parou de falar ao ouvir mais alguém chegar na sala, a respiração levemente ofegante da azulada indicava o tanto que se esforçara para a acompanhar.
— Não saia correndo por aí de repente — eeclamou Eva, seu corpo se apoiando no batente. — Por que diz que não encontrariamos vida lá?
— Valhalla é a sala dos Mortos, mitologicamente falando, mas no Norte é uma região triangular com as fábricas e usinas mais perigosas em questão de toxinas — afirmou Íris limpando o círculo feito por Gael da tela e desenhando um triângulo. — São 3 no total, uma em cada ponta e, mesmo abandonadas há alguns anos, essa área é extremamente poluída e ninguém que pisou aos arredores voltou com vida, até agora.
— O que quer dizer com "até agora"? Tem algum jeito de entrarmos?
— É evidente, raposinha. Ou você acha que as modificações que indiquei nas máscaras de vocês eram apenas de enfeite? Tudo o que estudei e pesquisei sobre toxinas foi por causa desse lugar... Podemos partir quando vocês dois estiverem completamente curados.
Os outros três concordaram com aquela informação e Íris se sentou na mesa, vendo Matteo encarar a tela pensativo, como se estivesse tentando se lembrar de algo.
— Íris... Você conhece um lugar chamado "Panteão"?
— Por que quer saber?
— Eu me lembrei de algo do meu passado e havia a placa desse lugar — respondeu Gael antes mesmo que qualquer um pudesse dizer algo.
— O Panteão é uma... Área de "diversão" do Centro, muitas pessoas sobrevivem por causa desse lugar... — explicou Íris, suas pernas balançando agitadas. — Alguns frequentadores são do alto que gostam de algo facilmente adquirido com dinheiro, o que inclui pessoas, muitas vezes.
— Os da cidade alta compram pessoas assim? Fácil e rápido? Só indo para esse lugar?
— Na maioria das vezes sim, Eva... Não é nem um pouco incomum que até mesmo os pais costumem vender seus filhos. Primeiro, por uma falsa ideia de que na cidade alta eles serão bem cuidados, e, segundo, pela quantidade de dinheiro variar de acordo com a idade, força física e outros atributos, até mesmo a beleza conta, o que pode manter o resto da família bem por alguns anos.
— Ah... Agora faz sentido... Acho que entendi o que ela quis dizer com "entender melhor" — mencionou Matteo direcionando o olhar para o maior.
— Ela quem? Vocês dois sabem que não nos disseram nada e que não faz qualquer sentido para a gente? — pontuou Eva.
Após esse comentário, Gael explicou tudo o que vira em sua lembrança, todos os detalhes e falas para que as duas mulheres soubessem completamente do contexto, mais até do que havia contado a Matteo.
— Pelo que disse, possivelmente seus irmãos não gostavam mesmo de você — afirmou a rosada, seus pés tocando o chão novamente. — É algo corriqueiro que a criança que nascesse mais saudável e que aparentasse ter mais chances de atrair a atenção do povo do alto recebesse mais em relação a tudo, comida, água, roupas, como um investimento, para realmente atraí-los e conseguir um bom preço para suprir as necessidades familiares... E desde que esse negócio de compra e venda de pessoas começou, cresceu o boato de que a vida de um dos nossos na cidade alta era mil vezes melhor do que a miséria em Unova, talvez uma mentira para acalmar o coração do remorso ou talvez realmente seja verdade, ninguém voltou de lá para confirmar ou desmentir. — Maya direcionou seu olhar para Gael. — Exceto você, mas sem sua memória completa não dá para confirmar qualquer coisa.
— Mas havia a possibilidade de fazerem esse "investimento" e não dar certo, não é? — perguntou Eva tentando processar tudo aquilo que ouvira.
— Havia e era até comum que acontecesse... Mas quando se vive na miséria, até o mais impossível é plausível para sobreviver... — Íris caminhou pela sala, pensando sobre todos os detalhes que Gael havia exposto, verificando se havia dito tudo o que sabia sobre aquela lembrança. — Você falou que sua mãe cantou para você antes de te acordar, não foi, gatinho?
— Foi, a mesma música que você colocou para repetir no bar de Han'yo.
— Vocês dois conheciam essa música também? — Eva e Matteo balançaram a cabeça em negação, o que fez a menor dar uma risada divertida. — Engraçado que vocês do Leste não a conheçam, tirando Han'yo não encontrei mais ninguém que a ouvisse. Foi alguém daqui que espalhou essa música no Centro.
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inafetivo
Ciencia FicciónNaquele mundo em que sobreviver era a lei, os afetos são esquecidos e abandonados desde o berço. Amar se torna um peso, algo difícil de se carregar, uma cruz a qual poucos conseguem lidar. A guerra, a morte e a violência se encontram em cada esquin...