Capítulo 16: Chama acesa

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Inverno, 7° dia.

~•~

No dia seguinte, Susanna acordou com o clima mais ameno. Era vésperas de seu aniversário. Ela sabia que essa data costumava trazer coisas ruins, mas não era como se aquilo determinasse algo sobre si. Pensava apenas se seus pais a visitariam.

Ainda que a porta da biblioteca estivesse trancada, ela não foi impedida de dormir na sala de espera que a antecedia. Com a luz fresca da manhã, ela se levantou do sofá, notando que a lareira, antes apagada, estava acesa.

Talvez Nayoung tenha acendido, ela pensou, observando as brasas queimarem além duma grade escura de metal. De fato, lembrava-se de ter passado bastante frio no início da noite e, então, não mais.

Ela vestia um pijama simples, feito de um tecido grosso: uma das roupas que ela havia trazido de sua antiga casa. Ao lado do sofá vermelho onde dormia, avistou sua mala, seu caderno, e uma vestimenta nova em cima da cômoda, que muito a surpreendeu: uma blusa de material fino, bordado de raízes sobre o tecido negro opaco, gola alta e mangas largas; uma calça preta; e, pendurado ao lado num cabideiro velho, um casaco negro de lã vasto para seu tamanho.

Pregado no cabideiro havia um bilhete:

"O inverno chegou e não é certo que uma senhora do vale fique com frio. Estas são as primeiras roupas que teci para você este ano. Espero que goste e que não tenha se importado por eu ter acendido a lareira à noite.

~Nayoung."


O dia parecia particularmente bom. Por um momento, Susanna tinha esquecido de algumas de suas angústias e sentia renovada por ter recebido roupas novas; mas quando se dirigiu ao salão de celebrações suas conjecturas se desfizeram e ela teve seus pés bem fixados ao chão. Leonor, portando uma faca afiada, cortava um pedaço de carne sangrenta em seu prato. Eric e Klaus descascavam grandes ovos que foram cozidos. Além das chamas das várias lareiras e da fragrância amadeirada, o cheiro de carne fresca que subiu à narina dela lhe causou náusea.

— Klaus me disse que você se saiu bem em sua primeira caçada, vermezinha. Não vejo motivos para você continuar comendo legumes — comentou Leonor, demonstrando ironia. Trajava um longo vestido azul neon, com penas de corvo sobre os ombros. Seu broche negro fixava-se ao peitoral esquerdo, prendendo a capa de cetim.

Susanna se sentiu mal. Sentou-se à mesa e olhou para o prato que lhe foi entregue por um dos cozinheiros. A carne mal-passada ainda tinha a forma de quando o animal estava vivo, um filhote de ave. A pele arrancada, as pernas e cabeça cortada eram o que ainda o separavam de ser um corpo inteiro.

Ela se lembrou rapidamente da Casa Rochedo e da tortura que aguentou. A dor ainda era fresca em sua memória. Desde então, havia decidido se render a uma aparente gratidão e não mais desafiar seus senhorios, mesmo que isso lhe doesse muito por dentro.

Com o garfo e faca em mãos, ela se submeteu a encarar o prato por alguns segundos. Observou o olhar de Klaus como se dissesse: "Nem pense em recusar a comida". Talvez Eric dissesse consigo: "Por favor, seja forte!". Leonor a pressionava com os olhos, e o clima inquietante se tornava cada vez mais fugaz.

Susanna dispensou os talheres; agarrou o alimento com as duas mãos, vendo o sangue escorrer entre seus dedos, torceu o nariz, e então abocanhou um pedaço, antes que o medo a dominasse. A garota nunca tinha sentido seus caninos perfurarem uma carne fibrosa anteriormente. Sua boca se inundou pelo gosto amargo, a sensação hostil. Antes que pudesse evitar, uma forte repulsa fez seu estômago embrulhar, então ela vomitou tudo ao lado da mesa. A vontade vinha como se para lavar seu estômago, e então vomitou outra vez em seguida.

O Rancor da Mariposa (Saga Kaedra - Lembrança)Onde histórias criam vida. Descubra agora