Capítulo 36: Sentimentos estranhos

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Lamadis, capital de Jossanam

Início de Inverno do ano 442.

~•~

Sentada no peitoril da janela, Susanna observava as cores vibrantes do amanhecer e o recair da neve sobre as construções vermelhas de Lamadis. Do penúltimo andar do prédio, os sons eram distantes. Os humanos lá em baixo, na praça leste, indo a estação de trem, tinham a liberdade de ir e vir, sentimento que ela não se lembrava de ter possuído algum dia.

Pensava em como o tempo havia passado desde que ela saiu de Helonys. Algumas coisas permaneciam iguais. Ela se preparava para completar treze anos, e não esperava qualquer festa. Não era mais uma criança. Tinha o corpo de uma adulta; a alma já desenvolvida.

Ela se manteve inerte, encaixotada naquele cômodo, cercada pela capital do país estrangeiro; não lavou os cabelos, nem cuidou da arrumação do lugar. Deteve-se a pequena mesa circular próxima a janela, onde passou a maior parte do tempo com seu caderno de memórias, lendo ou escrevendo, tentando dizer adeus a alguns pensamentos, mas eles insistiam em voltar a queimar.

O apartamento que Klaus havia alugado era pequeno, porém aconchegante; paredes de tom avermelhado que acompanhavam as cores das construções da cidade. O cômodo principal era amplo e decorado; uma cama de casal no centro, de frente para uma televisão que Susanna não sabia utilizar. A cozinha ficava aos fundos, de frente para a porta de entrada. Após a cama, a janela, a pequena mesa, e o banheiro ali perto. O aquecedor emitia um zunido ininterrupto que às vezes a incomodava.

Com o passar dos primeiros dias, a nevasca apresentou uma breve trégua. Susanna tinha conhecimento do mercado ali perto. Ela se vestiu de seu antigo casaco negro de lã e foi até lá, encapuzada e evitando contatos, pois preferia ainda ser invisível; isso ajudava com o fato de precisar esvaziar sua mente.

O mercado leste era assustador. Pontes acima, como passarelas, que ligavam três pares de torres vermelhas ao longo da extensa via. Múltiplos níveis pareciam pouco para tanta gente. Ela tinha apenas um cartão de crédito limitado disponibilizado por Klaus, restringindo-se a comprar alguns poucos ingredientes culinários das cabanas comandadas por Rasaras. Eles pareciam bem a vontade na capital, vindo de longe para vender temperos e matérias primas. Já ela, considerou uma experiência bem negativa. Muitos a olhavam, fazendo com que parecesse real, e ela se encolhia.

De volta a casa, Susanna guardou os grãos comprados num alçapão no canto da cozinha. O pouco gás que tinha no encanamento guardava para o banho quente e às vezes para o fogão. Quando a água escorria por ela na ducha, trazia algumas dores. Várias marcas de queimadura onde antes estavam as bolhas de sangue. Cada dia que essas dores voltavam, ela se lembrava de seu recente passado e entendia as consequências.

Cabeças cortadas. Corações partidos.

Silêncio.

O inverno em Lamadis era ainda mais frio do que em Onosis. Ela se aquecia com um suéter tricotado por sua vizinha piedosa, a Sra. Gokle, que ia muitas vezes ali, fornecendo o mínimo de comida. Susanna não se sentia viva. O chá quente era o pouco que tinha. Ela se preparava para mais uma noite fria, até que ouviu uma batida na porta. Ficou alarmada, pois não podia ser a senhora humana àquela hora da madrugada. Indo até a porta, deparou-se com uma visita inesperada.

— Eric?? — ela pronunciou, quase que pelo susto.

— Oi, Su — ele respondeu com um suspiro de alívio. Carregava uma grande mala ao seu lado.

Ela foi de encontro a ele num abraço súbito. Não se importou por estar com um casaco muito acima de sua medida, ou com os cabelos desarrumados, embora eles tivessem cheiro doce. Ficou feliz por vê-lo e se emocionou ao apertá-lo.

O Rancor da Mariposa (Saga Kaedra - Lembrança)Onde histórias criam vida. Descubra agora