Capítulo 18: Sangramento

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Inverno, 11° dia.

~•~

Recentemente completados onze anos de idade. Seu presente: a morte de alguém especial. Susanna não precisava que alguém dissesse que ela era amaldiçoada. Ela sabia.

As aulas haviam sido canceladas já a alguns dias. Estavam programadas as caçadas com Klaus. O senhor místico entendeu a situação e permitiu que Susanna ficasse em casa no infame dia de inverno; aproveitaria para concluir o ensino de Eric sobre rastreamento em floresta fechada. Mesmo que estivesse abalado com a notícia da morte de um amigo, a floresta sempre lhe foi a melhor forma de espairecer. Quando Leonor soube da folga que Klaus deu à garota, ficou revoltada. Para ela, não havia desculpas para o descumprimento do dever.

No período da manhã do dia seguinte à notícia, visto que não havia dormido, Susanna se pôs a observar o vale através das janelas arqueadas próximas à biblioteca. Ficou lá por horas, em silêncio, apenas observando a paisagem. Desde então, Kahli, sua mãe, não havia falado com ela, pois achou certo dar-lhe algum tempo. Porém, quando percebeu que o silêncio se estendia muito, preocupou-se e criou coragem para falar com ela.

— Não é bonito? — perguntou a mãe, aproximando-se. Apoiou-se no batente de maneira calma e, ao lado da filha, contemplou os ventos de neve e as nuvens se formando.

Susanna via a mesma coisa, porém com outros olhos. A amplitude do horizonte unindo-se ao céu da mesma cor esbranquiçada, preenchendo a vista como a baía de Alandes em Helonys. O senso pela imensidão a assombrava um pouco; sensação parecida com que o oceano lhe causava.

De repente, Susanna sentia o cheiro do mar. Seus olhos ficaram cegos, pois eles viam outro lugar, outro momento.

"Eu te dou esse pingente para que sempre se lembre de nós..."

Ainda podia ouvir a voz de seu pai nesta lembrança vaga. A voz de sua mãe, ao lado, trazia-a para a realidade, no entanto. Uma realidade distante do que ela sempre imaginou e que lhe frustrava continuamente.

— Filha? — Kahli perguntou outra vez. Sabia que Susanna não tinha ouvido seus chamados. Notou um olhar dela de soslaio, fervoroso. — Eu estou aqui agora... Sabe que não está sozinha, certo?

Susanna apertou o pingente em seu punho, a ponto de amassá-lo. Ela ainda desconhecia a força mística que desenvolvia em seu corpo. Isso justificava a visão turva, a respiração fora de compasso.

— Pode contar com meu apoio, querida — disse Kahli, pondo a mão sobre o ombro dela.

— Apoio? — Susanna tirou forças para exaurir a palavra. — Eu duvido muito disso, pois nunca o tive, mãe.

O silêncio em seguida provinha do espanto de Kahli. Os mesmos olhos dourados que carregavam lágrimas, também tinha raiva e decepção.

— Onde a senhora estava enquanto eu sofria neste lugar? — Susanna falava entre o choro, controlando-se bastante. — Sendo maltratada, trancafiada em calabouços... Desesperada por identidade, por carinho, por afeto... Agora a senhora aparecesse depois destes anos e me diz isso? Que meu pai está morto?

A mãe sentiu as palavras faltarem em sua boca.

— E-eu não sabia que você havia passado por essas coisas, filha... Eu... Estava lutando por você. Me diga, eles te maltrataram aqui? Você está ferida?

Susanna sorriu de maneira irônica.

— Como você iria saber? Me largou aqui como um cão indesejado. Agora já é tarde... Eu estou crescendo e não tenho uma boa memória com a senhora. Querendo ou não, agora este é meu lar, como vocês sempre quiseram... Como a senhora quis. Agora está livre de mim. Não precisa se preocupar com minhas maldições, com meus pesadelos, com nada — a garota desviou o olhar, votando as janelas e à paisagem lá fora.

O Rancor da Mariposa (Saga Kaedra - Lembrança)Onde histórias criam vida. Descubra agora