Capítulo 19: Dores congeladas

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Inverno, 12° dia.

~•~

Quando Susanna abriu os olhos, deparou-se em outro lugar. Piso de madeira, paredes ornadas em madeira e bronze. Deitada na cama de um quarto fechado, pôs a mão na cabeça, sentindo dores. Lembrava-se pouco do dia anterior. Na verdade, não queria se lembrar de nada.

Ela se ergueu com dificuldade, percebendo que vestia uma roupa limpa, leve de cor branca. Com certo esforço, caminhou até a janela e, abrindo-a, sentiu uma brisa fria. Estava na parte mais alta da Mansão, a torre. Provavelmente havia chegado ali pelo elevador de serviço, levada por alguém. A neve caía e se acumulava no telhado cinzento, ela observou. Pensava no que havia dito para sua mãe, em como a havia tratado. Isso se confundia com suas dores corporais e emocionais, fazendo com que ela mantivesse a constante expressão congelada no rosto.

Sentindo que o simples fato de estar em pé lhe exigia muita energia, Susanna voltou a deitar, e lá ficou. Seu ventre ainda doía. Nayoung não demorou a aparecer ali, levando sopa temperada com ervas medicinais. A criada cuidava dela com absoluto esmero. Susanna enxergava suas próprias maldições, não se dava conta de alguns privilégios. Um deles era o conhecimento. Naquele dia, ela teve à sua disposição alguns pedaços de pergaminhos levados secretamente por Nayoung. Cada folha dos manuscritos antigos, qualquer coisa que a informasse sobre espiritualistas, os supostos algozes de seu pai. Sua mãe havia os mencionado. A garota somente tinha conhecimento que eram seres fanáticos das florestas, mas no passado em Helonys nunca havia tido problemas com eles.

Misturado ao ódio silencioso, surgia nela uma nostalgia cruel, remetendo-a às boas memórias que jamais retornariam. E ela se alimentava dessas memórias.

Sua mãe, Kahli, era de Onosis, o que Susanna descobriu pouco tempo depois de chegar a Mansão do Vale. Isso justificava em parte o fato dela nunca se apegar à casa que tinham em Poços Verdes. Já seu pai, era de solo ithílico, assim como a garota. Foi ele quem a ensinou a adestrar Bietra, sua mariposa de estimação. Susanna sempre o teve como alguém que partilhava seus sentimentos pela floresta e pela cultura mística. A lembrança estava tão distante que lhe parecia um sonho. Era como se sua mente não suportasse mais dores e parte delas se perdessem com o tempo.

Susanna permaneceu quieta no leito e, pouco a pouco, sentia-se corroendo por dentro. Os pensamentos acabavam, dando espaço para o silêncio e para o vazio. Suas mãos vacilaram, e o livro que lia caiu sobre a coxa, emborcado; algumas páginas sendo amassadas. Ela recostou na cabeceira da cama, e, por um tempo, permitiu a si mesma que chorasse. Algumas lágrimas escorriam depressa. Outras pareciam vir da força com que ela tensionava os olhos.

Sentia raiva. Apertava os punhos trêmulos.

Eu não quero ser assim. Isso não pode ser real. Eu não quero ser assim..., repetia em sua mente como um mantra. Deixava evidente o quanto se sentia presa a algo macro, feito para torturá-la.

Enquanto se tomava por desesperança, uma memória vinha a ela:

"Susanna, alguns objetos carregam sentimentos negativos e se amaldiçoam. Outros, sentimentos positivos, e se tornam encantados..."

Nesse caso, ela considerava ser o próprio objeto amaldiçoado, carregada de sentimentos negativos. Tudo fazia sentido.

Por isso, elevou a visão ao alto. Sabia que implicitamente esse gesto trazia noção de boas perspectivas. Era quase como se dissesse: "Alguém está me ouvindo? Alguém pode estender a mão para mim?"

Mas não aguentava a si própria. Sua presença corpórea preenchendo uma porção do espaço da existência. Seu coração constante. Sua respiração quente. O peito vazio. Uma morta-viva.

O Rancor da Mariposa (Saga Kaedra - Lembrança)Onde histórias criam vida. Descubra agora